12/02/2017

Claudius Hermann (Conto), de Álvares de Azevedo


Claudius Hermann
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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...Ecstacy!
My guise as yours doth temperately keep time
And makes a healthful music: It is not madness.
That I have utter'd.
 "Hamlet". Shakespeare

 — E tu, Hermann! Chegou a tua vez. Um por um evocamos ao cemitério do passado um cadáver. Um por um erguemo-lhe o sudário para amostrar-lhe uma nódoa de sangue. Fala que chegou tua vez.

— Claudius sonha algum soneto ao jeito do Petrarca, alguma auréola de pureza como a dos espíritos puros da Messiada! disse entre uma fumaça e uma gargalhada Johann erguendo a cabeça da mesa.

— Pois bem! quereis um historia? Eu pudera contá-las, como vos, loucuras de noites de orgia; mas para que? Fora escárnio Fausto ir lembrar a Mefistófeles as horas de perdição que lidou com ele. Sabei-las... essas minhas nuvens do passado, leste-lo à farta o livro desbotado de minha existência libertina. Se o não lembrásseis, a primeira mulher das ruas pudera contá-lo. Nessa torrente negra que se chama a vida, e que corre para o passado enquanto nos caminhamos para o futuro, também desfolhei muitas crenças, e lancei despidas as minhas roupas mais perfumadas, para trajar a túnica da Saturnal! O passado é o que foi, é a flor que murchou, o sol que se apagou, o cadáver que apodreceu. Lágrimas a ele? fora loucura! Que durma com suas lembranças negras! revivam: acordem apenas os miosótis abertos naquele pântano! sobreague naquele não-ser o eflúvio de alguma lembrança pura!

— Bravo! Bravíssimo! Claudius, estas completamente bêbedo! bofé que estas romântico!

— Silêncio, Bertram! certo que esta não é uma lenda para inscrever-se após das vossas: uma dessas coisas que se contêm com os cotovelos na toalha vermelha, e os lábios borrifados de vinho e saciados de beijos... Mas que importa?

Vos todos, que amais o jogo, que vistes um dia correr naquele abismo uma onda de ouro e redemoinhar-lhe no fundo, como um mar de esperanças que se embate na ressaca do acaso, sabeis melhor que vertigem nos tonteia então... ideai-la melhor a loucura que nos delira naqueles jogos de milhares de homens, onde fortuna, aspirações, a vida mesma vão-se na rapidez de uma corrida, onde todo esse complexo de misérias e desejos, de crimes e virtudes que se chama a existência se joga numa parelha de cavalos!

Apostei como homem a quem não doera empobrecer: o luxo também sacia, e essa uma saciedade terrível! para ela nada basta... nem as danças do Oriente, nem as lupercais romanas, nem os incêndios de uma cidade inteira lhe alimentariam a seiva de morte, essa vitalidade do veneno de que fala Byron. Meu lance no turf foi minha fortuna inteira. Eu era rico, muito rico então: em Londres ninguém ostentava mais dispendiosas devassidões: nenhum nababo numa noite esperdiçava somas como eu. O suor de três gerações derramava-o eu no leito das perdidas e no chão das minhas orgias.

No instante em que as corridas iam começar, em que todos sentiam-se febris de impaciência, um murmúrio correu pelas multidões, um sorriso... e depois eram as frontes que se expandiam e depois uma mulher passou a cavalo.

Víssei-la como eu, no cavalo negro, com as roupas de veludo, as faces vivas, o olhar ardente entre o desdém dos cílios, transluzindo a rainha em todo aquele ademã soberbo: víssei-la bela na sua beleza plástica e harmônica, linda nas suas cores puras e acetinadas, nos cabelos negros, e a tez branca da fronte, o oval das faces coradas, o fogo de nácar dos lábios finos, o esmero do colo ressaltando nas roupas de amazona: víssei-la assim e, à fé, senhores, que não havíeis rir de escárnio como rides agora!

— Romantismo! deves estar muito ébrio, Claudius, para que nos teus lábios secos de Lovelace e na tua insensibilidade de D. Juan venha a poesia ainda passar-te um beijo!

— Ride, sim! misérrimos! que não compreendeis o que porventura vai de incêndio por aqueles lábios de Lovelace e como arqueja o amor sob as roupas gotejantes de chuvas de D. Juan —o libertino! Insano, que nunca sonhastes Lovelace sem sua máscara talvez chorando Clarisse Harlowe, pobre anjo, cujas asas brancas ele ia desbotar maldizendo essa fatalidade que fez do amor uma infâmia e um crime. Mil vezes insanos que nunca sonhastes o Espanhol acordando no lupanar, passando a mão pela fronte e rugindo de remorso e saudade ao lembrar tantas visões alvas do passado!

— Bravo! bravo!

— Poesia! poesia! murmurou Bertram.

— Poesia! por que pronunciar-lho à virgem casta o nome santo como um mistério, no lodo escuro da taverna? Por que lembrá-la a estrela do amor a luz do lampião da crápula? Poesia! sabeis o que é a poesia?

— Meio cento de palavras sonoras e vãs que um pugilo de homens pálidos entende, uma escada de sons e harmonias que aquelas almas loucas parecem ideias e lhes despertam ilusões como a lua as sombras... Isto no que se chama os poetas. Agora, no ideal, na mulher, o ressaibo do último romance, o delírio e a paixão da última heroína de novela e o presente incerto e vago de um gozo místico, pelo qual a virgem morre de volúpia, sem sabê-lo por que...

— Silêncio, Bertram! teu cérebro queimaram-to os vinhos, como a lava de um vulcão as relvas e flores da campina. Silêncio! és como essas plantas que nascem e mergulham no mar morto: cobre-as uma cristalização calcária, enfezam-se e mirram. A poesia, eu to direi também por minha vez, é o voo das aves da manhã no banho morno das nuvens vermelhas da madrugada, é o cervo que se role no orvalho da montanha relvosa, que se esquece da morte de amanhã, da agonia de ontem em seu leito de flores!

— Basta, Claudius: que isso que aí dizes ninguém o entende: são palavras, palavras e palavras, como o disse Hamlet; e tudo isso é inanido e vazio como uma caveira seca, mentiroso como os vapores infectos da terra que o sol no crepúsculo irisa de mil cores, e que se chamam as nuvens, ou essa fada zombadora e nevoenta que se chama a poesia!

— A história! a historia! Claudius, não vês que essa discussão nos fez bocejar de tédio?

— Pois bem, contarei o resto da história.

No fim desse dia eu tinha dobrado minha fortuna. No dia seguinte eu a vi: era no teatro. Não sei o que representaram, não sei o que ouvi, nem o que vi; sei só que lá estava uma mulher, bela como tudo quanto passa mais puro à concepção do estatuário. Essa mulher era a duquesa Eleonora... No outro dia vi-a num baile... Depois... Fora longo dizer-vos: seis meses! concebes? seis meses de agonia e desejo anelante, seis meses de amor com a sede da fera! seis meses! como foram longos!

Um dia achei que era demais. Todo esse tempo havia passado em contemplação, em vê-la, amá-la e sonhá-la: apertei minhas mãos jurando que isso não iria além, que era muito esperar em vão e que se ela viria, como Gulnare aos pés do Corsário, a ele cabia ir ter com ela.

Uma noite tudo dormia no palácio do duque. A duquesa, cansada do baile, adormecia num diva. A lâmpada de alabastro estremecia-lhe sua luz dourada na testa pálida. Parecia uma fade que dormia ao luar...

O reposteiro do quarto agitou-se: um homem aí estava parado, absorto. Tinha a cabeça tão quente e febril e ele a repousava no portal.

A fraqueza era covarde: e demais, esse homem comprara uma chave e uma hora a infâmia venal de um criado, esse homem jurava que nessa noite gozaria aquela mulher: fosse embora veneno, ele beberia o mel daquela flor, o licor de escarlate daquela taça. Quanto a esses prejuízos de honra e adultério, não riais deles — não que ele ria disso. Amava e queria: a sua vontade era como a folha de um punhal — ferir ou estalar.

Na mesa havia um copo e um frasco de vinho, encheu o copo: era vinho espanhol...

Chegou-se a ela, ergueu-a com suas roupas de veludo desatadas, seus cabelos a meio soltos ainda entremeados de pedraria e flores, seus seios meio-nus, onde os diamantes brilhavam como gotas de orvalho, ergueu-a nos braços, deu-lhe um beijo. Ao calor daquele beijo, seminua, ela acordou: entre os vagos sonhos se lhe perdia uma ilusão talvez; murmurou “amor!” e com olhos entreabertos deixou cair a cabeça e adormeceu de novo.

O homem tirou do seio um frasquinho de esmeralda. Levou-o aos lábios entreabertos dela e verteu-lhe algumas gotas que ela absorveu sem senti-las. Deitou-a e esperou. Daí a instantes o sono dela era profundíssimo...

A bebida era um narcótico onde se misturaram algumas gotas daqueles licores excitantes que acordam a febre nas faces e o desejo voluptuoso no seio.

O homem estava de joelhos, o seu peito tremia e ele estava pálido como após de uma longa noite sensual. Tudo parecia vacilar-lhe em torno... Ela estava nua: nem veludo, nem véu leve a encobria. O homem ergueu-se, afastou o cortinado.

A lâmpada brilhou com mais força e apagou-se... O homem era Claudius Hermann.

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Quando me levantei, embucei-me na capa e sai pelas ruas. Queria ir ter a meu palácio, mas estava tonto como um ébrio. Titubeava e o chão era lúbrico como para quem desmaia.

Uma ideia contudo me perseguia. Depois daquela mulher nada houvera mais para mim. Quem uma vez bebeu o suco das uvas purpurinas do paraíso, mais nunca deve inebriar-se do néctar da terra... Quando o mel se esgotasse, o que restava a não ser o suicídio?

Uma semana se passou assim: todas as noites eu bebia nos lábios à dormida um século de gozo. Um mês, o mês em que delirantes iam os bailes do entrudo, em que mais cheia de febre ela adormecia quente, com as faces em fogo...

Uma noite — era depois de um baile — eu a esperei na alcova, escondido atrás do seu leito. No copo cheio d'água que estava junto a sua cabeceira derramara as últimas gotas do filtro, quando entrou ela com o Duque.

Era ele um belo moço! Antes de deixá-la passou-lhe as duas mãos pelas fontes e deu-lhe um beijo. Embevecido daquele beijo, o anjo pendeu a cabeça no ombro dele, e enlaçou-o com seus braços nus, reluzentes das pulseiras de pedraria.

O duque teve sede, pegou no copo da duquesa, bebeu algumas gotas; ela tomou-lhe o copo, bebeu o resto. Eu os vi assim: aquele esposo ainda tão moço, aquela mulher — ah! e tão bela!... de tez ainda virgem — e apertei o punhal...

— Viras hoje, Maffio? disse ela.

— Sim, minh'alma.

Um beijo sussurrou, e afogou as duas almas. E eu na sombra sorri, porque sabia que ele não havia de vir.

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Ele saiu, ela começou a despir-se. Eu lhas vi uma por uma caírem as roupas brilhantes, as flores e as joias, desatarem-se-lhe as tranças luzidias e negras e depois aparecia no véu branco do roupão transparente, como as estátuas de ninfas meio-nuas, com as formas desenhadas pela túnica repassada da água do banho.

O que vi... foi o que sonhara e muito, o que vos todos, pobres insanos, idealizastes um dia como a visão dos amores sobre o corpo da vendida! Eram os seios níveos e veiados de azul, trêmulos de desejo, a cabeça perdida entre a chuva de cabelos negros, os lábios arquejantes, o corpo todo palpitante: era a languidez do desalinho, quando o corpo da beleza mais se enche de beleza, e, como uma rosa que abre molhada de sereno, mais se expande, mais patenteia suas cores.

O narcótico era fortíssimo: uma sofreguidão febril lhe abria os beiços: extenuada e lânguida, caída no leito, com as pálpebras pálidas, os braços soltos e sem forca, parecia beijar uma sombra.

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Ergui-a do leito, carreguei-a com suas roupas diáfanas, suas formas cetinosas, os cabelos soltos úmidos ainda de perfume, seus seios ainda quentes…

Corri com ela pelos corredores desertos, passei pelo pátio — a última porta estava cerrada — abri-a.

Na rua estava um carro de viagem: os cavalos nitriam e escumavam de impaciência. Entrei com ela dentro do carro. Partimos.

Era tempo. Uma hora depois amanhecia.

Breve estivemos fora da cidade.

A madrugada aí vinha com seus vapores, seus rosais borrifados de orvalho, suas nuvens aveludadas, e as águas salpicadas de ouro e vermelhidão. A natureza corava ao primeiro beijo do sol, como branca donzela ao primeiro beijo do noivo: não como amante afanada de noite voluptuosa como a pintou o paganismo, antes como virgem acordada do sono infantil, meio ajoelhada ante Deus, que ora e murmura suas orações balsâmicas ao céu que se azula, à terra que cintila, às águas que se douram. Essa madrugada baixava a terra como o bafo de Deus; e entre aquela luz e aquele ar fresco a duquesa dormia, pálida como os sonos daquelas criaturas místicas das iluminuras da Idade Media, bela como a Vênus dormida do Ticiano, e voluptuosa como uma das amásias do Veroneso.

Beijei-a: eu sentia a vida que se me evaporava nos seus lábios. Ela sobressaltou-se, entreabriu os olhos; mas o peso do sono ainda a acabrunhava, e as pálpebras descoradas se fecharam...

A carruagem corria sempre.

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O sol estava a prumo no céu — era meio-dia: o calor abafava: pela fronte, pelas faces, pelo colo da duquesa rolavam gotas de suor como aljôfares de um colar roto... Paramos numa estalagem: lancei-lhe sobre a face um véu, tomei-a nos meus braços, e levei-a a um aposento.

Ela devia ser muito bela assim! os criados paravam nos corredores: era assombro de tanta beleza, mais ainda que curiosidade indiscreta.

A dona da casa chegou-se a mim.

— Senhor, vossa esposa ou irmã, quem quer que ela seja, de certo precisara de uma criada que a sirva...

— Deixai-me: ela dorme.

Foi essa a minha única resposta.

Deitei-a no leito, corri os cortinados, cerrei as janelas para que a luz lhe não turbasse o sono. Não havia ali ninguém que nos visse, estávamos sós, o homem e seu anjo; e a criatura da terra ajoelhou-se ao pé do leito da criatura do céu.

Não sei quanto tempo correu assim, não sei se dormia, mas sei que sonhava muito amor e muita esperança, não sei se velava, mas eu a via sempre ali, eu lhe contemplava cada movimento gracioso do dormir, eu estremecia a cada alento que lhe tremia os seios, e tudo me parecia um sonho, um desses sonhos a que a alma se abandona como um cisne, que modorra, ao som das águas... Não sei quanto tempo correu assim: sei só que o meu delíquio quebrou-se, a duquesa estava sentada sobre o leito, com os braços nus afastava as ondas do cabelo solto que lhe cobria o rosto e o colo.

— É um sonho? murmurou. Onde estou eu? quem esse homem encostado em meu leito?

O homem não respondeu.

Ela desceu da cama: seu primeiro impulso foi o pudor: quis encobrir com as mãozinhas os seios palpitantes de susto. Sentiu-se quase nua, exposta às vistas de um estranho, e tremia como contam os poetas que tremera Diana ao ver-se exposta, no banho, nua às vistas de Acteon.

— Senhor, dizei-me por compaixão, se tudo isso não é uma ilusão... se não fora uma infâmia! Nem quero pensá-lo. Maffio não deve tardar, não é assim? o meu Maffio! Tudo isso é uma comédia… Mas que alcova é esta? Eu adormeci no meu palácio... como despertei numa sala desconhecida? Dizei, tudo isso é um brinco de Maffio? quer se rir de mim... Mas, vede, eu tremo, tenho medo.

O homem não respondia: tinha os olhos a fito naquela forma divina. — Seria a estátua da paixão na palidez, no olhar imóvel, nos lábios sedentos, se o arfar do peito lhe não denunciasse a vida.

Ela ajoelhou-se: nem sei o que ela dizia. Não sei que palavras se evaporaram daqueles lábios: eram perfumes, porque as rosas do céu só têm perfumes; eram harmonias, porque as harpas do céu só têm harmonias; e o lábio da mulher bela é uma rosa divina e seu coração e uma harpa do céu. Eu a escutava, mas não a entendia, sentia só que aquelas falas eram muito doces, que aquela voz tinha um talismã irresistível para minh'alma, porque só nos meus sonhos de infante que se ilude de amores, uma voz assim me passara. Os gemidos de duas virgens abraçadas no céu, doiradas da luz da face de Deus, empalidecidas pelos beijos mais puros, pelo tremuloso dos abraços mais palpitantes, não seriam tão suaves assim!

A moça chorava, soluçava: por fim ela ergueu-se. Eu a vi correr a janela, ia abri-la... Eu corri a ela e tomei-a pelas mãos...

— Pois bem, disse ela, eu gritarei... se não for um deserto, se alguém passar por aqui... talvez me acudam... Socor...

Eu tapei-lhe a boca com as mãos...

— Silêncio, senhora!

Ela lutava para livrar-se de minhas mãos: por fim sentiu-se enfraquecida. Eu soltei-a de pena dela.

— Então, dizei-me onde estou... dizei-mo, ou eu chamarei por socorro...

— Não gritareis, senhora!

— Por compaixão então esclarecei-me nesta dúvida: por que tudo isso que eu vejo? Tudo o que penso, o que adivinho é muito horrível!

— Escutai pois, disse-lhe eu. Havia uma mulher... era um anjo. Havia um homem que a amava, como as águas amam a lua que as prateia, como as águias da montanha o sol que as fita, que as enche de luz e de amor. Nem sei quem ele era: ergueu-se um dia de uma vida de febre, esqueceu-a; e esqueceu o passado, diante de uns olhos transparentes de mulher, as manchas de sua história, numa aurora de gozos, onde se lhe desenhava a sombra desse anjo... Escutai: não o amaldiçoeis! Esse homem tinha muita infâmia no passado: profanara sua mocidade, prostituíra-a como a borboleta de ouro a sua geração, lançando-a no lodo; frio, sem crenças, sem esperanças, abafara uma por uma suas ilusões, como a infanticida seus filhos... Deus o tinha amaldiçoado talvez! ou ele mesmo se amaldiçoara... Esquecera que era homem e tinha no seu peito harmonias santas como as do poeta... Ele as esquecera e elas dormiam-lhe no mistério como os suspiros nas cordas de uma guitarra abandonada. Esquecera que a natureza era bela e muito bela, que o leito das flores da noite era recendente, que a lua era a lâmpada dos amores, as aragens do vale, os perfumes do poeta no seu noivado com os anjos e que a aurora tinha eflúvios frescos... e com suas nuvens virginais, suas folhas molhadas de orvalho, suas águas nevoentas tinha encantos que só as almas puras entendem! Tudo isso enjeitou, esqueceu... para só o lembrar a furto e com escárnio nas horas suarentas da devassidão... Ele era muito infame!

— Mas tudo isso não me diz quem sois vos... nem porque estou aqui...

— Escutai: — O libertino amou pois o anjo, voltou o rosto ao passado, despiu-se dele como de um manto impuro. Retemperou-se no fogo do sentimento, apurou-se na virgindade daquela visão, porque ela era bela como uma virgem, e refletia essa luz virgem do espírito, nesse brilho d'alma divina que alumia as formas que não são da terra, mas do céu. Ainda o tempo não eivara o coração do insano de uma lepra sem cura, nem selo inextinguível lhe gravara na fronte — impureza! Deixou-se do viver que levara, desconheceu seus companheiros, suas amantes venais, suas insônias cheias de febre, quis apagar todo o gosto da existência, como o homem que perdeu uma fortuna inteira no jogo quer esquecer a realidade.

E o homem pode esquecer tudo isto.

Mas ele não era ainda feliz. As noites passava-as ao redor do palácio dela, via-a às vezes bela e descorada ao luar, no terraço deserto, ou distinguia suas formas na sombra que passava pelas cortinas da janela aberta de seu quarto iluminado. Nos bailes seguia com olhares de inveja aquele corpo que palpitava nas danças. No teatro, entre o arfar das ondas da harmonia, quando o êxtase boiava naquele ambiente balsâmico e luminoso, ele nada via senão ela — e só ela! E as horas de seu leito... suas horas de sono não, que mal as dormia, porque às vezes eram longas de impaciência e insônia, outras vezes eram curtas de sonhos ardentes! O pobre insano teve um dia uma ideia: era negra sim mas era a da ventura.

O que fez não sei, nem o sabereis nunca.

E depois bastante ébrio para vos sonhar, bastante louco para nos sonhos de fogo de seu delírio imaginar gozar-vos, foi profano assaz para roubar a um templo o cibório de ouro mais puro. Esse homem... tende compaixão dele, que ele vos amara de joelhos... ó anjo, Eleonora...

— Meu Deus! meu Deus! por que tanta infâmia, tanto lodo sobre mim? Ó minha Madona! por que maldissestes minha vida, por que deixastes cair na minha cabeça uma nódoa tão negra?

As lágrimas, os soluços abafavam-lhe a voz.

— Perdoai-me, senhora, aqui me tendes a vossos pés! tende pena de mim, que eu sofri muito, que vos amei, que vos amo muito! Compaixão! que serei vosso escravo, beijarei vossas plantas, ajoelhar-me-ei à noite à vossa porta, ouvirei vosso ressonar, vossas orações, vossos sonhos... e isso me bastará... Serei vosso escravo e vosso cão, deitar-me-ei a vossos pés quando estiverdes acordada, velarei com meu punhal quando a noite cair, e, se algum dia,. se algum dia vos me puderdes amar... então... então…

— Oh! deixai-me! Deixai-me!...

— Eleonora! Eleonora! Perder noites e noites numa esperança! Alentá-la no peito como uma flor que murcha de frio, alentá-la, revivê-la cada dia, para vela desfolhada sobre meu rosto! Absorver-me em amor e só ter irrisão e escárnio! Dizei antes ao pintor que rasgue sua Madona, ao escultor que despedace a sua estátua de mulher.

Louca, pobre louca que sois! credes que um homem havia de encarnar um pensamento em sua alma, viver desse cancro, embeber-se da vitalidade da dor, para depois rasgá-lo do seio? Credes que ele consentiria que se lhe pisasse no coração, que lhe arrancassem... a ele, poeta e amante! da coroa de ilusões as flores uma por uma, que pela noite da desgraça, ao amor insano de uma mãe lhe sufocassem sobre o seio a criatura de seu sangue, o filho de sua vida, a esperança de suas esperanças?

— Oh! e não tereis vós também dó de mim? não sabei-lo? isto é infame! sou uma pobre mulher. De joelhos eu vos peco perdão se vos ofendi.... Eu vo-lo peço, deixai-me! que me importam vossos sonhos, vosso amor!

Doía-me profundamente aquela dor: aquelas lágrimas me queimavam. Mas minha vontade fez-se rija e férrea como a fatalidade.

— Que te importam meus sonhos, que te importam meus amores? Sim, tens razão! Que importa à água do deserto e à gazela do areal que o árabe tenha sede ou que o leão tenha fome? Mas a sede e a fome são fatais. O amor é como eles:— entendes-me agora?

— Matai-me então! Não tereis um punhal! Uma punhalada pelo amor de Deus! Eu juro, eu vos abençoarei...

— Morrer! e pensas no morrer! Insensata! Descer do leito morno do amor à pedra fria dos mortos! Nem sabes o que dizes. Sabes o que é essa palavra — morrer? É a duvida que afana a existência, é a duvida, o pressentimento que resfria a fronte do suicida, que lhe passa nos cabelos como um vento de inverno, e nos empalidece a cabeça como Hamlet! Morrer! é a cessação de todos os sonhos, de todas as palpitações do peito, de todas as esperanças! É estar peito a peito com nossos antigos amores e não senti-los! Doida! é um noivado medonho o do verme, um lençol bem negro o da mortalha! Não fales nisso: por que lembrar o coveiro junto ao leito da vida? Põe a mão no teu coração... bate... e bate com força, como o feto nas entranhas de sua mãe. Há aí dentro muita vida ainda, muito amor por amar, muito fogo por viver! Oh! se tu me quisesses amar!

Ela escondeu a cabeça nas mãos e soluçou.

— É impossível, eu não posso amar-vos!

Eu disse-lhe:

— Eleonora, ouve-me, deixo-te só, velarei contudo sobre ti daquela porta. Resolve-te, seja uma decisão firme sim, mas pensada. Lembra-te que hoje não poderás voltar ao mundo: o duque Maffio seria o primeiro que fugiria de ti, a torpeza do adultério senti-la-ia ele nas tuas faces, creria roçar na tua boca a umidade de um beijo de estranho. E ele te amaldiçoaria! Vê: além a maldição e o escárnio, a irrisão das outras mulheres, a zombaria vingativa daqueles que te amaram e que não amaste. Quando entrares, dir-se-á: ei-la! Arrependeu-se! o marido... pobre dele! Perdoou-a... As mães te esconderão suas filhas, as esposas honestas terão pejo de tocar-te... E aqui, Eleonora, aqui terás meu peito e meu amor, uma vida só para ti, um homem que só pensará em ti e sonhará sempre contigo, um homem cujo mundo serás tu, serão teus risos, teus olhares, teus amores: que se esquecerá de ontem e de amanhã para fazer, como um Deus, de ti a sua eternidade.

Pensa, Eleonora! se quisesses, partiríamos hoje; uma vida de venturas nos espera. Sou muito rico, bastante para adornar-te como uma rainha. Correremos a Europa, iremos ver a Franca com seu luxo, a Espanha, onde o clima convida ao amor, onde as tardes se embalsamam nos laranjais em flor, onde as campinas se aveludam e se matizam de mil flores, iremos à Itália, à tua pátria e, no teu céu azul, nas tuas noites límpidas, nos teus crepúsculos suavíssimos viver de novo ao sol meridional!… Se quiseres… Senão seria horrível… não sei o que aconteceria: mas quem entrasse neste quarto levaria os pés ensopados de sangue…

Sai: duas horas depois voltei.

— Pensaste, Eleonora?

Ela não respondeu. Estava deitada com o rosto entre as mãos. À minha voz ergueu-se. Havia um papel molhado de sues lágrimas sobre o leito. Estendi a mão para tomê-lo, ela entregou-mo.

Eram uns versos meus. Olhei para a mesa, minha carteira de viagem, que eu trouxera do carro, estava aberta, os papéis eram revoltos. Os versos eram estes.

Claudius tirou do bolso um papel amarelado e amarrotado, atirou-o na mesa. Johann leu:

Não me odeies, mulher, se no passado
Nódoa sombria desbotou-me a vida,
— É que os lábios queimei no vício ardente
E de tudo descri com fronte erguida.

A máscara de Don Juan queimou-me o rosto
Na fria palidez do libertino:
Desbotou-me esse olhar... e os lábios frios
Ousam de maldizer do meu destino.

Sim! longas noites no fervor do jogo
Esperdicei febril e macilento
E votei o porvir ao Deus do acaso
E o amor profanei no esquecimento!

Murchei no escárnio as coroas do poeta,
Na ironia da glória e dos amores:
Aos vapores do vinho, a noite insano
Debrucei-me do jogo nos fervores!

A flor da mocidade profanei-a
Entre as águas lodosas do passado...
No crânio a febre, a palidez nas faces,
Só cria no sepulcro sossegado!

E asas límpidas do anjo em colo impuro
Mareei nos bafos da mulher vendida,
Inda nos lábios me roxeia o selo
Dos ósculos da perdida.

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E a mirra das canções nem mais vapora
Em profanada taça eivada e negra:
Mar de lodo passou-me ao rio d'alma,
As níveas flores me estalou das bordas.
Sonho de glórias!... só me passa a furto,
Qual flor aberta a medo em chão de tumbas
— Abatida e sem cheiro...

O meu amor… o peito o silencia:
Guardo-o bem fundo em sombras do sacrário.
Onde ervaçal não se abastou nos ermos.
Meu amor... foi visão de roupas brancas
Da orgia à porta, fria e soluçando,
Lâmpada santa erguida em leito infame,
Vaso templário da taverna à mesa,
Estrela d'alva refletindo pálida
No tremedal do crime.

Como o leproso das cidades velhas
Sei me fugiras com horror aos beijos.
Sei, no doido viver dos loucos anos
As crenças desflorei em negra insânia...
— Vestal, prostitui as formas virgens,
Lancei eu próprio ao mar da coroa as folhas,
Troquei a rósea túnica da infância
Pelo manto das orgias.

Oh! não me ames sequer! Pois bem! um dia
Talvez diga o Senhor ao podre Lázaro:
Ergue-te aí do lupanar da morte,
Revive ao fresco do viver mais puro!
E viverei de novo: a mariposa
Sacode as asas, estremece-as, brilha,
Despindo a negra tez, a baba imunda
Da larva desbotada.

Então, mulher , acordarei do lodo,
Onde Satã se pernoitou comigo,
Onde inda morno perfumou seu molde
Cetinosa nudez de formas níveas.
E a loira meretriz nos seios brancos
Deitou-me a fronte lívida, na insônia
Quedou-me a febre da volúpia à sede
Sobre os beijos vendidos.

E então acordarei ao sol mais puro,
Cheirosa a fronte às auras da esperança!
Lavarei-me da fé nas águas de ouro
De Madalena em lágrimas!... e ao anjo
Talvez que Deus me de, curvado e mudo,
Nos eflúvios do amor libar um beijo,
Morrer nos lábios dele!

Ela calou-se: chorava e gemia.

Acerquei-me dela, ajoelhei-me como ante Deus.

— Eleonora, sim ou não?

Ela voltou o rosto para o outro lado, quis falar... interrompia-se a cada sílaba.

— Esperai, deixai que ore um pouco, a Madona talvez me perdoe.

Esperava eu sempre. — Ela ajoelhou-se.

— Agora... disse ela erguendo-se e me estendendo a sua mão.

— Então?

— Irei contigo.

E desmaiou.

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Aqui parou a historia de Claudius Hermann.

Ele abaixou a cabeça na mesa, não falou mais.

— Dormes, Claudius? Por Deus! ou esta bêbedo ou morto!

Era Archibald que o interpelava: sacudia-o a toda a força.

Claudius levantou um pouco a cabeça, estava macilento, tinha os olhos fundos numa sombra negra.

— Deixai-me, amaldiçoados! Deixai-me pelo céu ou pelo inferno! não vedes que tenho sono... sono e muito sono?

— E a história, a historia? bradou Solfieri.

— E a duquesa Eleonora? perguntou Archibald.

— É verdade... a história. Parece-me que olvidei tudo isso. Parece que foi um sonho!

— E a Duquesa?

— A Duquesa?... Parece-me que ouvi esse nome alguma vez... Com os diabos, que me importa? Aí quis prosseguir, mas uma forca invencível o prendia.

— A Duquesa… é verdade! Mas como esqueci tudo isso que não me lembro!… Tirai-me da cabeça esse peso… Bofé que encheram-me o crânio de chumbo derretido!…e ele batia na cabeça macilenta como um médico no peito do agonizante para encontrar um eco de vida.

— Então?

— Ah! ah! ah! gargalhou alguém que tinha ficado estranho a conversa.

— Arnold ! cala-te!

— Cala-te antes, Solfieri! eu contarei o fim da história.

Era Arnold — o louro, que acordava.

— Escutai vos todos, disse:

— Um dia Claudius entrou em casa. Encontrou o leito ensopado de sangue e num recanto escuro da alcova um doido abraçado com um cadáver. O cadáver era o de Eleonora, o doido nem o pudéreis conhecer tanto a agonia o desfigurara! Era uma cabeça hirta e desgrenhada, uma tez esverdeada, uns olhos fundos e baços onde o lume da insânia cintilava a furto, como a emanação luminosa dos pauis entre as trevas…

Mas ele o conheceu... — era o Duque Maffio…

Claudius soltou uma gargalhada. — Era sombria como a insânia, fria como a espada do anjo das trevas. Caiu ao chão, lívido e suarento como a agonia, inteiriçado como a morte...

Estava ébrio como o defunto patriarca Noé, o primeiro amante da vinha, virgem desconhecida, até então e hoje prostituta de todas as bocas… ébrio como Noé, o primeiro borracho de que reza a história! Dormia pesado e fundo como o apóstolo São Pedro no Horto das Oliveiras… O caso é que ambos tinham ceado à noite...

Arnold estendeu a capa no chão e deitou-se sobre ela.

Daí a alguns instantes as seus roncos de barítono se mesclavam ao magno concerto dos roncos dos dormidos…

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