Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O meu
vizinho Gustavo não gosta de teatros, nem de pagodeiras, nem de comes e bebes.
O seu supremo e único prazer consiste em caçar pacas.
Aos
domingos e dias feriados, invariavelmente, ele sai de casa pela madrugada, com
botas, chapéu de lebre, sacola ao lado, espingarda embrulhada e acompanhado por
dois cães atrelados.
E vai-se
por esse recôncavo da Guanabara à porfia das pacas.
Tudo
pega.
Eu
raciocinava assim: se esse homem acha prazer tão grande em matar pacas, é
porque deve ser coisa boa.
E veio-me
um desejo enorme de experimentar a nova emoção. Nesta vida cumpre aproveitarmos
os gozos que se nos deparam, para compensar os pesares que aparecem sem ser
chamados.
Manifestei
a minha vontade ao Gustavo. Ele acolheu-a sem alacridade, exclamando:
— Amanhã
mesmo vamos caçar no Buriti!
— Há lá
muita caça?
— Paca
ali é mato! Apronte-se. Partiremos às 4 da manhã.
No dia
seguinte, domingo, antes do raiar da aurora, embarcávamos ambos, e mais os dois
cães, em um carro da Estrada de Ferro do Norte, na estação de São Francisco
Xavier.
Eu tinha
tomado por empréstimo um par de botas de montaria a um amigo que calçava o n.
39, sendo 41 o meu ponto.
A
princípio, as botas me couberam perfeitamente, como uma luva; o calçado
apertado é traiçoeiro, só começa a nos martirizar o pé tempos depois, quando
menos o esperamos.
Foi o que
me sucedeu. Os canhões de couro, sem elástico, puseram-se a magoar-me o ossinho
do artelho, justamente quando o Gustavo, risonho o influído, me narrava as suas
proezas venatórias por aquelas redondezas.
O vagão
era em feitio de bonde.
No
momento em que o trem, nas alturas da Penha, fazia uma curva, recebemos em cheio
um violento golpe de vento vindo do mar.
Os nossos
chapéus voaram.
O meu
companheiro, um tanto aborrecido com aquele incidente inesperado, recuperou
logo a sua jovialidade, e disse: — Isso não é nada! Arranjaremos outros
chapéus.
— Contanto
que a caça seja boa, o mais pouco importa — retorqui eu, fingindo não me
incomodar com o contratempo.
— Afirmo-lhe
que hoje jantaremos paca assada!
— Pois
então vai tudo bem.
Descemos
na estação do Atura, onde só há duas ou três choupanas.
O Gustavo
procedeu a uma rápida pesquisa, a ver se descobria dois chapéus velhos. Voltou
desenganado e triste. Os habitantes tinham saído.
— E
agora? O sol já queima...
— Ora
adeus! — articulei com gesto despachado e resoluto. — Você não tem expediente.
Tenho aqui os jornais do dia. Arranjemos dois chapéus armados e está salva a
pátria!
E com as
folhas confeccionamos os chapéus armados.
— E
então? Parecemo-nos com os generais Robert e Kitchner à caça dos boeres...
O
Gustavo, pequeno de estatura, colocou o seu transversalmente, à moda de Bonaparte,
e metido nas enormes botas apresentava figura assaz ratônica.
Crismei-o
de "Napoleão das pacas".
Entretanto,
cada vez me doíam mais os pés, sob a pressão do couro.
Perguntei:
— Quanto dista daqui ao rio Buriti?
— Meia
légua, se tanto...
— Oh! com
seiscentos! Neste caso vou tirar as botas.
— Não
faça isso — contestou o Gustavo. — Há muito espinho e muita cobra. Andemos
devagarinho. Não temos pressa.
Os raios
solares nos castigavam o rosto, incompletamente abrigados pelos improvisados
cobre-cabeças.
De
repente o Gustavo disse:
— Ah!
tenho uma boa ideia. Transformemos estes chapéus armados em toucas de irmãs de
caridade. Têm abas mais largas.
Sentando-se
ao meio da estrada, deu umas tantas dobras nas gazetas e as transformou em
andorinhas das usadas pelas religiosas de São Vicente de Paula.
Seguimos
caminho.
Os bois
olhavam para nós com espanto; os burros empinavam as orelhas e fugiam à
disparada.
— Contanto
que matemos caça... (dizia eu) tudo vai bem.
— Havemos
de jantar hoje paca assada garantiu-me o Gustavo pela décima vez.
Chegamos
finalmente ao riacho Buriti. Gustavo lá encontrou o seu canoeiro. Soltou os
cães. Nós entramos para o batel.
— Sente-se
no centro da canoa e não se mexa. Qualquer movimento em falso faz virar a canoa.
Obedeci à
determinação.
De sorte
que desde às nove da manhã até às duas da tarde, cinco longas horas, permaneci
de cócoras ao fundo da canoa, os pés em fogo, na cabeça a touca de irmã de
caridade, espingarda em punho, à espera que a paca, acossada pelos cães, viesse
atirar-se ao rio.
Nem
sombra!
Quando,
não podendo mais, eu bulia com o corpo, o canoeiro gritava: Não se mexa,
patrão!
À volta,
resolvi vir sem chapéu. Caminhava dois minutos e descansava cinco.
E à
noite, em casa, para descalçar as malditas botas, foi necessário escorar-me à
parede e pedir o auxílio de toda a família.
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