12/05/2017

Caça às pacas (Conto), de Urbano Duarte


Caça às pacas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O meu vizinho Gustavo não gosta de teatros, nem de pagodeiras, nem de comes e bebes. O seu supremo e único prazer consiste em caçar pacas.
Aos domingos e dias feriados, invariavelmente, ele sai de casa pela madrugada, com botas, chapéu de lebre, sacola ao lado, espingarda embrulhada e acompanhado por dois cães atrelados.
E vai-se por esse recôncavo da Guanabara à porfia das pacas.
Tudo pega.
Eu raciocinava assim: se esse homem acha prazer tão grande em matar pacas, é porque deve ser coisa boa.
E veio-me um desejo enorme de experimentar a nova emoção. Nesta vida cumpre aproveitarmos os gozos que se nos deparam, para compensar os pesares que aparecem sem ser chamados.
Manifestei a minha vontade ao Gustavo. Ele acolheu-a sem alacridade, exclamando:
— Amanhã mesmo vamos caçar no Buriti!
— Há lá muita caça?
— Paca ali é mato! Apronte-se. Partiremos às 4 da manhã.
No dia seguinte, domingo, antes do raiar da aurora, embarcávamos ambos, e mais os dois cães, em um carro da Estrada de Ferro do Norte, na estação de São Francisco Xavier.
Eu tinha tomado por empréstimo um par de botas de montaria a um amigo que calçava o n. 39, sendo 41 o meu ponto.
A princípio, as botas me couberam perfeitamente, como uma luva; o calçado apertado é traiçoeiro, só começa a nos martirizar o pé tempos depois, quando menos o esperamos.
Foi o que me sucedeu. Os canhões de couro, sem elástico, puseram-se a magoar-me o ossinho do artelho, justamente quando o Gustavo, risonho o influído, me narrava as suas proezas venatórias por aquelas redondezas.
O vagão era em feitio de bonde.
No momento em que o trem, nas alturas da Penha, fazia uma curva, recebemos em cheio um violento golpe de vento vindo do mar.
Os nossos chapéus voaram.
O meu companheiro, um tanto aborrecido com aquele incidente inesperado, recuperou logo a sua jovialidade, e disse: — Isso não é nada! Arranjaremos outros chapéus.
— Contanto que a caça seja boa, o mais pouco importa —  retorqui eu, fingindo não me incomodar com o contratempo.
— Afirmo-lhe que hoje jantaremos paca assada!
— Pois então vai tudo bem.
Descemos na estação do Atura, onde só há duas ou três choupanas.
O Gustavo procedeu a uma rápida pesquisa, a ver se descobria dois chapéus velhos. Voltou desenganado e triste. Os habitantes tinham saído.
— E agora? O sol já queima...
— Ora adeus! — articulei com gesto despachado e resoluto. — Você não tem expediente. Tenho aqui os jornais do dia. Arranjemos dois chapéus armados e está salva a pátria!
E com as folhas confeccionamos os chapéus armados.
— E então? Parecemo-nos com os generais Robert e Kitchner à caça dos boeres...
O Gustavo, pequeno de estatura, colocou o seu transversalmente, à moda de Bonaparte, e metido nas enormes botas apresentava figura assaz ratônica.
Crismei-o de "Napoleão das pacas".
Entretanto, cada vez me doíam mais os pés, sob a pressão do couro.
Perguntei: 
—  Quanto dista daqui ao rio Buriti?
— Meia légua, se tanto...
— Oh! com seiscentos! Neste caso vou tirar as botas.
— Não faça isso — contestou o Gustavo. — Há muito espinho e muita cobra. Andemos devagarinho. Não temos pressa.
Os raios solares nos castigavam o rosto, incompletamente abrigados pelos improvisados cobre-cabeças.
De repente o Gustavo disse:
— Ah! tenho uma boa ideia. Transformemos estes chapéus armados em toucas de irmãs de caridade. Têm abas mais largas.
Sentando-se ao meio da estrada, deu umas tantas dobras nas gazetas e as transformou em andorinhas das usadas pelas religiosas de São Vicente de Paula.
Seguimos caminho.
Os bois olhavam para nós com espanto; os burros empinavam as orelhas e fugiam à disparada.
— Contanto que matemos caça... (dizia eu) tudo vai bem.
— Havemos de jantar hoje paca assada garantiu-me o Gustavo pela décima vez.
Chegamos finalmente ao riacho Buriti. Gustavo lá encontrou o seu canoeiro. Soltou os cães. Nós entramos para o batel.
— Sente-se no centro da canoa e não se mexa. Qualquer movimento em falso faz virar a canoa.
Obedeci à determinação.
De sorte que desde às nove da manhã até às duas da tarde, cinco longas horas, permaneci de cócoras ao fundo da canoa, os pés em fogo, na cabeça a touca de irmã de caridade, espingarda em punho, à espera que a paca, acossada pelos cães, viesse atirar-se ao rio.
Nem sombra!
Quando, não podendo mais, eu bulia com o corpo, o canoeiro gritava: Não se mexa, patrão!
À volta, resolvi vir sem chapéu. Caminhava dois minutos e descansava cinco.
E à noite, em casa, para descalçar as malditas botas, foi necessário escorar-me à parede e pedir o auxílio de toda a família.

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