12/08/2017

Away! (Conto), de Coelho Neto


Away!
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Michelet compara os dias a pontes que, uma vez atravessadas, abatem desaparecendo no abismo do tempo. Ninguém retrocede — a Fatalidade lá está para cortar a retirada. Não há exemplo de um só homem que tenha, da velhice embranquecida e gelada, recuado aos claros dias da mocidade.

Mal passamos a ponte, sem que ouçamos o fragor da queda, sentimo-la aluir-se, vemo-la desaparecer no vértice fundo, onde pululam milhões de vidas.

Do outro lado os mais fortes deixam pegadas eternas, os semeadores deixam germens esparsos que darão aos vindouros sombra e fruto, os tristes deixam lágrimas que formam nateiros fecundos, mas nenhum regressa àquela barranca adorada cuja paisagem, à distância, esbatida na saudade, como que se torna mais fagueira, porque ninguém vê os curtos e agudos espinhos nem os calhaus afiados, mas a massa de verdura imponente, a sempre viçosa e admirável natureza e a estrada lisa e plana, ora larga, ora augusta, entre penhas alcandoradas ou frescos vergéis floridos.

E indo, em tumulto alegre, acenando com palmas e flores, vão as crianças através da ponte. Que lhes importa que alua aquela passagem que as conduz ao futuro? Não voltam os olhos porque não têm saudades, correm ansiosas, aligeirando cada vez mais os passos porque entendem que a felicidade está além, no brumal distante e lá vão! Mas acompanhai o velhinho e vê-lo-eis voltar-se, a todo o instante, diminuindo os passos, porque um minuto que avança na manhã apressa o esplendor, um segundo que passa no crepúsculo leva à desesperança. A ascensão é lenta, o mergulho é instantâneo.

Para os que agora entram na vida o tempo é festivo. Ano novo! Ano novo! Ai! dos que caminham carregados de anos! Para esses os novos dias serão um fardo pesadíssimo que ainda mais os curvará na estrada.

Lá vão eles tardigrados, arquejando, com os corações transbordantes e os olhos marejados. Quantos abismos vencidos e, no fundo deles, quantos sonhos, quanta ventura, quanta ilusão perdida.

Quis Deus nascer nos últimos dias do ano como para tornar a sua creche um diversório bendito onde as almas repousem e tomem o viático da esperança com que se alentem na Terra.

E ali, na gruta paupérrima, entre o jumento e o boi, sobre a palha olorante que Jesus se exibe.

Chegam-se todos os crentes ao tugúrio, ourem os cantos angélicos, escutam a égloga dos pastores e contemplam a Santa Família que rodeia o predestinado Mártir. Os mais aflitos sentem-se alivia-os na suave companhia e recobram a coragem para a jornada fatal. Enquanto adoram o Infante esquecem os tormentos e pensam na redenção futura, no prêmio magnífico que lhes está reservado no céu e, retomando o cajado, lá vão contentes, ao longo da estrada luminosa.

Ano Novo! Que veremos nós além da ponte de São Silvestre? Chegarão todos à outra margem? Quantos se abismarão com a trilha oscilante?! Que desapareçam! o Tempo não se fatiga e, para os que chegam, lança novas passagens e logo as retira como o soldado do castelo recolhia a levadiça à entrada do último falcoeiro e do último montaraz, quando o senhor tornava, com estrondo de charamelas e ladrar de matilhas, das montarias que fizera com a gente nobre do seu solar.

Nem todos atravessarão a ponte que nos vai ligar ao ano próximo, mas para que a vida continue, basta que passe um casal, como o que saiu do Paraíso no dia do pecado e esse, entretido com o amor, nem dará pelo silêncio propício, nem se lembrará da mortalha que ficou atrás.

O melhor é seguirmos despreocupadamente — não imitemos a mulher de Ló. A ponte é frágil, Deus assim a fez para que não retrocedêssemos e pudéssemos conhecer todos os bens, e todos os males da vida.

Se nos fosse dado permanecer num mesmo sítio, à sombra acetosa da mesma árvore redolente e frutífera, com um claro arroio para nossa sede serpeando à volta do nosso descanso, ficaríamos satisfeitos com essa sossegada e doce existência? não! Havíamos de querer avançar e falaríamos com a mesma ânsia com que falou o astuto Ulisses desligando-se dos encantos de Ogígia e das seduções de Calipso à medida que ia prendendo, com fortes pregos de bronze, os grossos troncos de cedro e de teca da sua jangada:

“Oh! Deusa, não te escandalizes! mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura, não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma e se suja e se espedaça e se corrompe. Oh! Deusa imortal, eu morro com saudades da morte”!

Não é essa, em verdade, uma perfeita e saliente representação da eterna e insaciável curiosidade do homem que nem com o bem se contenta e vai caminho do mistério só para ver “algo nuevo” como o navegador? Se isso ó próprio da condição humana, vamos ao nosso destino de curiosos, mas vamos contentes, cantando e rindo, como os companheiros de Taillefer, em Hastings.

Deixemos que o abismo atroe com o rolar dos destroços da ponte atravessada — ó o nosso passado que rola, é o dia de ontem que lá fica e que nunca mais avistaremos. Deixemo-lo no abismo e vamos para o amanhã, para a linda e refulgente ponte de cristal que reluz ao sol entre as duas margens — a do que foi e a do que vai ser.

Que há nos longes? névoas; e dentro das névoas? a glória, talvez, talvez... Que importa! vamos ver “algo nuevo”!

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