Away!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Michelet compara os dias a
pontes que, uma vez atravessadas, abatem desaparecendo no abismo do tempo.
Ninguém retrocede — a Fatalidade lá está para cortar a retirada. Não há exemplo
de um só homem que tenha, da velhice embranquecida e gelada, recuado aos claros
dias da mocidade.
Mal passamos a ponte, sem que
ouçamos o fragor da queda, sentimo-la aluir-se, vemo-la desaparecer no vértice
fundo, onde pululam milhões de vidas.
Do outro lado os mais fortes
deixam pegadas eternas, os semeadores deixam germens esparsos que darão aos
vindouros sombra e fruto, os tristes deixam lágrimas que formam nateiros
fecundos, mas nenhum regressa àquela barranca adorada cuja paisagem, à
distância, esbatida na saudade, como que se torna mais fagueira, porque ninguém
vê os curtos e agudos espinhos nem os calhaus afiados, mas a massa de verdura
imponente, a sempre viçosa e admirável natureza e a estrada lisa e plana, ora
larga, ora augusta, entre penhas alcandoradas ou frescos vergéis floridos.
E indo, em tumulto alegre,
acenando com palmas e flores, vão as crianças através da ponte. Que lhes importa
que alua aquela passagem que as conduz ao futuro? Não voltam os olhos porque
não têm saudades, correm ansiosas, aligeirando cada vez mais os passos porque
entendem que a felicidade está além, no brumal distante e lá vão! Mas
acompanhai o velhinho e vê-lo-eis voltar-se, a todo o instante, diminuindo os
passos, porque um minuto que avança na manhã apressa o esplendor, um segundo
que passa no crepúsculo leva à desesperança. A ascensão é lenta, o mergulho é
instantâneo.
Para os que agora entram na
vida o tempo é festivo. Ano novo! Ano novo! Ai! dos que caminham carregados de
anos! Para esses os novos dias serão um fardo pesadíssimo que ainda mais os curvará
na estrada.
Lá vão eles tardigrados,
arquejando, com os corações transbordantes e os olhos marejados. Quantos
abismos vencidos e, no fundo deles, quantos sonhos, quanta ventura, quanta
ilusão perdida.
Quis Deus nascer nos últimos
dias do ano como para tornar a sua creche um diversório bendito onde as almas
repousem e tomem o viático da esperança com que se alentem na Terra.
E ali, na gruta paupérrima,
entre o jumento e o boi, sobre a palha olorante que Jesus se exibe.
Chegam-se todos os crentes ao
tugúrio, ourem os cantos angélicos, escutam a égloga dos pastores e contemplam
a Santa Família que rodeia o predestinado Mártir. Os mais aflitos sentem-se alivia-os
na suave companhia e recobram a coragem para a jornada fatal. Enquanto adoram o
Infante esquecem os tormentos e pensam na redenção futura, no prêmio magnífico
que lhes está reservado no céu e, retomando o cajado, lá vão contentes, ao
longo da estrada luminosa.
Ano Novo! Que veremos nós além
da ponte de São Silvestre? Chegarão todos à outra margem? Quantos se abismarão
com a trilha oscilante?! Que desapareçam! o Tempo não se fatiga e, para os que chegam,
lança novas passagens e logo as retira como o soldado do castelo recolhia a
levadiça à entrada do último falcoeiro e do último montaraz, quando o senhor
tornava, com estrondo de charamelas e ladrar de matilhas, das montarias que
fizera com a gente nobre do seu solar.
Nem todos atravessarão a ponte
que nos vai ligar ao ano próximo, mas para que a vida continue, basta que passe
um casal, como o que saiu do Paraíso no dia do pecado e esse, entretido com o amor,
nem dará pelo silêncio propício, nem se lembrará da mortalha que ficou atrás.
O melhor é seguirmos
despreocupadamente — não imitemos a mulher de Ló. A ponte é frágil, Deus assim
a fez para que não retrocedêssemos e pudéssemos conhecer todos os bens, e todos
os males da vida.
Se nos fosse dado permanecer
num mesmo sítio, à sombra acetosa da mesma árvore redolente e frutífera, com um
claro arroio para nossa sede serpeando à volta do nosso descanso, ficaríamos satisfeitos
com essa sossegada e doce existência? não! Havíamos de querer avançar e
falaríamos com a mesma ânsia com que falou o astuto Ulisses desligando-se dos
encantos de Ogígia e das seduções de Calipso à medida que ia prendendo, com
fortes pregos de bronze, os grossos troncos de cedro e de teca da sua jangada:
“Oh! Deusa, não te
escandalizes! mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem
esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque,
na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz,
esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca
vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou
de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos
ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes... Deusa, há oito
anos que não olho para uma sepultura, não posso mais com esta serenidade sublime!
Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma e se suja e se espedaça e se
corrompe. Oh! Deusa imortal, eu morro com saudades da morte”!
Não é essa, em verdade, uma
perfeita e saliente representação da eterna e insaciável curiosidade do homem
que nem com o bem se contenta e vai caminho do mistério só para ver “algo
nuevo” como o navegador? Se isso ó próprio da condição humana, vamos ao nosso
destino de curiosos, mas vamos contentes, cantando e rindo, como os companheiros
de Taillefer, em Hastings.
Deixemos que o abismo atroe
com o rolar dos destroços da ponte atravessada — ó o nosso passado que rola, é
o dia de ontem que lá fica e que nunca mais avistaremos. Deixemo-lo no abismo e
vamos para o amanhã, para a linda e refulgente ponte de cristal que reluz ao
sol entre as duas margens — a do que foi e a do que vai ser.
Que há nos longes? névoas; e
dentro das névoas? a glória, talvez, talvez... Que importa! vamos ver “algo nuevo”!
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