Assombramento
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
À beira do
caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela d’ema e o
pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de
pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de
longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços
abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado onde não ria ao sol o
verde-escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava mais ainda o verde
esmaiado dos campos.
E quem não
fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande
porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era
tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da
tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho
afora.
Entestando
com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e
moirões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando
o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedras com
vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, espojadouros de
animais vagabundos.
Muitas
vezes, os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá,
esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as
cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes
à espera da descarga, até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo
enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.
Por que
seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a
tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar,
quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a
encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por
essas abusões, e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.
Montado em
sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome "Fidalgo",
— dizia ele que tinha corrido todo este mundão, sem topar coisa alguma, em dias
de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir
sozinho na tapera e ver até aonde chegavam os receios do povo.
Dito e
feito.
Passando por
aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E
enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava
das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas, e os tocadores,
acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes
de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um
moirão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua
aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.
Os
tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o
costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada
forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o
Manuel Alves continuava quieto.
As
sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos
montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a
bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em
cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho
— denunciaram ao arrieiro que a descarga fora feita com a ordem do costume,
mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.
Então, o
arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as
pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da
mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capão, onde
costumam crescer as ervas venenosas.
Dos
camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo, os dois
tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na
era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões do pouso,
um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou
estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma
cantilena saudosa.
Venâncio
queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel
Alves, ficando aí, tramava alguma das dele.
— O macho
lunanco está meio sentido da viagem, sô Manuel.
— Nem por
isso. Aquele é couro n’água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.
— Pois olhe:
não dou muito para ele urrar na subida do morro.
— Este? não
fale!
— Inda
malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.
— Ora!
— Vossemecê
bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar
amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos
daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece
desbarrigada que é um Deus nos acuda.
— Deixe de
poetagens, Venâncio! Eu sei cá.
— Vossemecê
pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a
arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão, e, — Venâncio pr’aqui, Venâncio
pr’acolá.
Manuel deu
um muxoxo. Em seguida, levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante
a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas
trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:
— Vou dormir
na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.
— Hum, hum!
está aí! Eia, eia, eia!
— Não temos
eia, nem peia! Puxe para fora minha rede.
— Já vou,
patrão. Não precisa falar duas vezes.
E daí a
pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas
pendentes.
— Que é que
vossemecê determina agora?
— Vá lá à
tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui
também se vai cuidando do jantar.
O caldeirão
preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca chiava no espeto e a
camaradagem, rondando à beira do fogo, lançava às vasilhas olhares ávidos e
cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem, atiçava
o fogo, outro carregava o ancorote cheio d’água fresca; qual corria a lavar os
pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.
Houve um
momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos
parceiros dizendo-lhes:
— Arre! tem
tempo, gente! Parece que vocês nunca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se
não querem sair daqui a poder de tição de fogo!
Os camaradas
se afastaram, não querendo turrar com o cozinheiro em momento assim melindroso.
Pouco
depois, chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.
Os tropeiros
formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam
valentemente.
— Então? —
perguntou Manuel Alves ao seu malungo.
— Nada,
nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!
— Uai! é
estúrdio!
— E
vossemecê pousa lá mesmo?
— Querendo
Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.
— Sua alma,
sua palma, meu patrão. Mas... é o diabo!
— Ora! pelo
buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto,
se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la.
Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.
— Su’alma,
sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto
muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu
nunca quis foi saber de negócio com sombração. Isso de coisa do outro mundo
pr’aqui mais pr’ali — terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um
gesto de quem se benze.
Manuel Alves
riu-se, e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e
começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos... A camaradagem,
reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando
no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola; e outro — namorado
talvez — encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do
céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, coa voz tremente, à sua
amada distante...
CAPÍTULO 2
Enoitara-se
o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e
pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o
fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que
latia, lá, num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de
luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada, pastando espalhada pelo
campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do
animal, sonorizava aquela grave extensão erma.
As estrelas,
em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de
langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com
o rosto voltado para o céu.
Um dos
tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos
aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria,
sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à
independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam
em coro, cantando o estribilho. A princípio, timidamente, as vozes meio veladas
deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi
se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e
simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou
geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira — irmã gêmea das vozes das feras,
dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das
aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a
tragédia, viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa
linguagem brutesca da tropeirada.
E, enquanto
um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os
perigos da noite nesse ermo — consistório das almas penadas — outro, o Joaquim
Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na
campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido,
fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense
peitudo, gritando-lhes:
— Ché, povo!
Tá chegando a hora!
O último
estribilho:
Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar!
A lagoa há de secar!
expirou
magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo
mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus
namorados fiéis:
Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar!
A lagoa há de secar!
O tropeiro
apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto
a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes; e quando emudeceu a voz
dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em
tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau
'Té pra cachorro passar!
'Té pra cachorro passar!
— Tá chegando a hora!
— Hora de
quê, Joaquim?
— De
aparecerem as almas perdidas. Ih! vamos acender fogueiras em roda do rancho.
Nisto,
apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.
— Gente! o
patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas, vocês sabem:
ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.
— Escute,
tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de
deixar o patrão sozinho?
— Que se há
de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos, e havia de ir só, porque
assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.
— O povo diz
que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas, no dia
seguinte, os companheiros tinham de trazer defunto para o rancho, porque dos
que dormem lá não escapa nenhum.
— Qual,
homem, isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto; eu cá não vou
me fiando muito na boca do povo; por isso é que eu não gosto de pôr o sentido
nessas coisas.
A conversa
tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e
a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco,
filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência
das aparições.
E foram-se
amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas
alguns, e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e
gabolas, diziam alto:
— Cá por
mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida —
e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.
Súbito,
ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de
um animal ferido de morte.
Os tropeiros
pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.
Mas o
Venâncio acudiu logo, dizendo:
— Até aí vou
eu, gente! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso
contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas
ouve. Vocês têm razão: faz medo.
E os
paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.
CAPÍTULO 3
Manuel
Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a
tapera, caminhando vagarosamente.
Antes de
sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo,
metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua
franqueira aparelhada de prata, levou-a também, enfiada no correão da cintura.
Não lhe esqueceu o rolo de cera, nem um maço de palhas. O arrieiro partira
calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou
no pátio pela grande porteira escancarada.
Era noite.
Tateando com
o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga,
fez fogo. Ajuntou mais lenha, arrancando paus de cercas velhas, apanhando
pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso formou uma grande fogueira.
Assim alumiado o pátio, o arrieiro acendeu o rolo e começou a percorrer as
estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha
oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.
— Quero ver
se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho-do-mato.
E andava
pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora
desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos
caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!
— Senhor!
por que seria? — inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma
senzala, olhando para o meio do pátio, onde uma caveira alvadia de boi espácio,
fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.
Encaminhou
para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um
lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu
vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra
avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da
porta, noutro tempo. Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande
fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado
a dois passos no assoalho.
Entrou. Viu
na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria,
um grande oratório com portas de almofadas entreabertas. Subiu a um banco de
recosto alto, unido à parede, e chegou o rosto perto do oratório, procurando
examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto,
ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram
ameaçadores.
— Que é lá
isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus
e a Virgem Maria...
O arrieiro
voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro, e, cerrando a
porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor
comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão
espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa
escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia
e negra.
O teto de
estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma
nesga de céu por uma frincha do telhado. Por aí corria uma goteira no tempo das
chuvas e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse
despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por
um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um
quarto, cujo solho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e
viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras,
roldando. Um outro quarto havia junto deste, e o olhar do arrieiro deteve-se,
acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras
fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato
antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja
cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.
Um zunido de
vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez
o arrieiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casarão
abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao
longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som
continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas
sempre ao longe.
— É o vento,
talvez, no sino da capela.
E penetrou
num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia
avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí.
O arrieiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e
entestou com a outra parede.
— Acaba aqui
— murmurou.
Três grandes
janelas no fundo estavam fechadas.
— Que haverá
aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver.
Tentou abrir
uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma
vara de queixadas em rodamoinho no mato.
Manuel fez
vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arrieiro
recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela,
num grito estardalhaçante, escancarou-se e uma rajada rompeu por ela adentro,
latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um
ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.
A chama do
rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.
Lembrando-se
da binga, sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o
fuzil: as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se
logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando, até tocar a parede
do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas,
procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo:
uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente,
alentando-a com carinho; a princípio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de
repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o
úmido: tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a
fogueira no pátio e percorria as dependências deste.
Meteu a
binga no bolso e disse:
— Espera,
diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.
Nesse
entrementes, a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então,
o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como
um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a
treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um
jaguar que prepara o bote.
No teto
soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu
proferir uma imprecação. O arrieiro assentou-se nos calcanhares, apertou o
ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos
fechos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos, e esperou. O ruído cessara; só
a zoada do sino continuava, intermitentemente.
Nada
aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas; mas, desta vez, a
garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a
úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o
cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor afora,
apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou, ouvindo um farfalhar
distante, um sibilo como o da refega no buritizal.
Pouco
depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a ventania — alcateia de
lobos rafados — investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela.
Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se,
precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente pelos salões vazios.
Ao mesmo
tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que
ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo
ressoou um psiu, psiu, psiu, psi... e um bando enorme de morcegos sinistros
torvelinhou no meio da ventania.
Manuel foi
impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do
assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a
alucinação que o invadia, o arrieiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos;
depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como
um sabujo que negaceia.
E foi
rompendo a escuridão à caça desse ente maldito, que fazia o velho casarão falar
ou gemer, ameaçá-lo ou repeli-lo, num conluio demoníaco com o vento, os
morcegos e a treva.
Começou a
sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez em quando,
parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos
desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo,
um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de
outro.
— Ah! vocês
não me hão de levar assim, não! — exclamava o arrieiro para o invisível. — Pode
que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! eu mostro!
E batia com
força a coronha da garrucha no solo ecoante.
Súbito, uma
luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto
branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando-se, sacudindo-se. O
vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os
lamentos do sino, mais acentuados agora.
Manuel
estacou com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca
semiaberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na
garganta seca, sarjando-a, e o arrieiro roncou como um barrão acuado pela
cachorrada. Correu a mão pelo solho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os
dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro;
uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traía.
A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arrieiro arrojou contra o
monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:
—
Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram
medo dos dentes de minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações
do demônio!
De um salto,
arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa
e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo
meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.
A queda
assanhou-lhe a fúria e o arrieiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada
um farrapo branco que ondulava no ar; deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um
como tecido grosso. Durante alguns momentos, ficou no lugar, hirto, suando,
rugindo.
Pouco a
pouco, foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus
dedos arrochavam: era um pano, de sua rede talvez, que o Venâncio armara na
sala da frente.
Neste
instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios
dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro — Manuel, Manuel,
Manuel — em frases tartamudeadas. O arrieiro avançou como um possesso, dando
pulos, esfaqueando sombras que fugiam.
Foi dar na
sala de jantar, onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas
longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas
rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.
O arrieiro
não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações
musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:
—
Traiçoeiras! eu queria carne para rasgar com este ferro! eu queria osso para
esmigalhar num murro!
As sombras
fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o
rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados, ou dançando-lhe na
frente. Era como uma chusma de meninos endemoninhados a zombarem dele,
puxando-o daqui, beliscando-o d’acolá, açulando-o como a um cão de rua.
O arrieiro
dava saltos de tigre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica:
rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa
a presa. Houve um momento em que uma coreia demoníaca se concertava ao redor
dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles
círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo,
precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no
chão ou saracoteando desenfreadamente.
Um longo
soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo, e o arrieiro deixou
cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um
morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então,
Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira
fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam
dispostas a esperar o embate.
O arrieiro
rugiu:
— Eu mato,
eu mato, mato! — e acometeu com fúria de alucinado aqueles entes malditos. De
um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes; um fragor medonho se
fez ouvir; o assoalho podre cedeu e um barrote, roído de cupins, baqueou sobre
uma coisa que se desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo
buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som
vibrante de metal, um tilintar como o de moedas derramando-se pela fenda de uma
frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arrieiro.
Manuel, lá
no fundo, ferido, ensanguentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra
como um ururau golpeado de morte; em todo o corpo estendido com o ventre na
terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: — "Eu
mato! mato! ma..." — e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.
CAPÍTULO 4
O dia estava
nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia-luz, crepitava
a labareda embaixo do caldeirão, cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam,
rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada
espalhava-se com a viração da madrugada.
Venâncio,
dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a
sobrecarga. Joaquim Pampa, fazendo cruzes na boca aos bocejos frequentes, por
impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos,
guiando-se pela cor dos topes cosidos àqueles. Os tocadores, pelo campo afora,
ecoavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em
rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.
Pouco
depois, ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava
alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de
arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que
principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.
— Eh! gente!
o orvalho ’stá cortando. Eta! Que tempão tive briquitando co’aquele macho "pelintra".
Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as
trilhas, por não deixar rasto.
— E a "andorinha"?
Isso é que é mulinha desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e
desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto, que eu soltei nela um matacão de
pedra, de que ela havia de gostar pouco.
A rapaziada
chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.
— Que é da
jeribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o
guampo, Aleixo.
— Uma hora é
frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo! — gritou o
Venâncio.
— Largue da
vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de
querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já
estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo,
feito um cachorro velho.
— Tá bom, tá
bom! Não quero muita conversa comigo, não. Vão tratando de chegar os burros às
estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco, e o patrão chega de uma
hora para a outra. Fica muito bonito, se ele vem encontrar essa sinagoga aqui!
E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! mas eu não pude fechar
os olhos esta noite! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma
que pudesse suceder a sô Manuel. Deus é grande!
Logo-logo, o
Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.
— Deixemos
esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.
Nesse
instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e
seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.
Logo à
saída, o velho tropeiro refletiu um pouco e disse alto:
— É bom
ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.
Seguiram os
três, calados, pelo campo afora, na luz suave da antemanhã. Concentrados em
conjeturas sobre a sorte do arrieiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno,
andando lépido e de rosto tranquilo; cada qual, porém, escondia do outro a
angústia do coração e a fealdade do prognóstico.
José
Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:
A barra do dia aí vem!
A barra do sol também,
Ai!
A barra do sol também,
Ai!
E lá foram,
cantando todos três, por espantar as mágoas.
Ao entrarem
no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves
tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria
do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo.
Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e
não cedeu.
Forcejaram
os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e
trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de
um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques
violentos, cujo fragor se foi avolumando pelo casarão adentro em roncos
profundos.
Em alguns
instantes, o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A
caliça que caía encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos
tropeiros — e a porta escancarou-se.
Na sala da
frente deram com a rede toda estraçalhada.
— Mau, mau,
mau! — exclamou o Venâncio, não podendo mais conter-se; os outros tropeiros, de
olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com
cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas
do outro mundo.
Correram a
casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.
— Gente,
onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? — exclamou o
Venâncio.
Joaquim
Pampa e José Paulista calavam-se, perdidos em conjeturas sinistras.
Na sala de
jantar, mudos, um em frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que
somente se lhes comunicassem os espíritos; mas, de repente, creram ouvir, pelo
buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio
debruçou-se, sondando o porão da casa.
A luz, mais
diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu
um vulto estendido.
— Nossa
Senhora! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo estirado!
Precipitaram-se
todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram
o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele afora e, embaixo
das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:
O arrieiro,
ensanguentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com
torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de
ouro luzia.
— Meu
patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! que mandinga
foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!
Os tropeiros
acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus
dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara
no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe
grudara na pele.
— Sô
Manuelzinho! Ai, meu Deus! pra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo
obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me
livre!
— Qual, tio
Venâncio — disse por fim o José Paulista. — Eu já sei a coisa. Já ouvi contar
casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que
está com a boca virada para o terreiro. Aí é que está a coisa. Ou esse dinheiro
foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda
não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o
dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar
alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem
mesmo! Na hora de ver a sombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um
ferro na boca, pr’amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!
E os
tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em
tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam o
que quer que fosse — "para as ondas do mar" ou "para as
profundas, onde não canta galo, nem galinha".
Enquanto
conversavam, iam procurando levantar do chão o corpo do arrieiro, que
continuava a tremer; às vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado
lhe rebentava da garganta.
— Ah!
patrão! patrão! Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus!
São Bom Jesus do Cuiabá! olha sô Manuel, tão devoto seu! — gemia o Venâncio.
O velho
tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do
chão o corpo do arrieiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços,
trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse
ao José Paulista:
— Eu não
pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.
Paulista
encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu
tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara
estava afincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no
alto, bem acima do forno, o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.
— É alto
deveras! Que tombo! — disse de si para si. — Que há de ser do patrão? Quem viu
sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! esse dinheiro
há de ser de pouca serventia. Para mim eu não quero: Deus me livre; então é que
eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!
O forno
estava levantado junto de um pilar de pedra, sobre o qual uma viga de aroeira
se erguia, suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se
para a direita até ao fundo escuro.
José
Paulista principiou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de
cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão,
o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente.
Escarafunchando os escombros do forno, achou mais moedas e com estas encheu o
chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo
vagarosamente o arrieiro.
As névoas
volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos
pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das
árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão
uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava
com os olhos o grupo que o precedia de longe.
Houve um
instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho
tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando nos braços
o ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe
o chapéu."
Aí chegando,
José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e,
levantando de novo a carga, seguiu caminho afora.
À beira do
rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando, à
espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho
adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.
Às vezes
ouvia-se um grito: — Toma, diabo! — e um animal espirrava para o campo à tacada
de um tropeiro.
Quando lá do
rancho se avistou o grupo onde vinha o arrieiro, correram todos. O cozinheiro,
que vinha do olho-d’água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e
disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se, escoravam nos
cabrestos. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó,
proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque
voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.
O Aleixo
veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.
Foram
chegando e José Paulista chegou por último. Os tropeiros olharam com estranheza
a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta:
contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos
demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?
O ferido foi
colocado na rede havia pouco armada. Um dos tropeiros chegou com uma bacia de
salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para
extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do
arrieiro, cujo corpo vibrava, então, fortemente.
Os animais
olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.
Então
Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apojadura de lágrimas, exclamou aos
parceiros:
— Minha
gente! aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! — E
ajoelhando-se de costas para o Sol que nascia, começou a entoar um — "Senhor
Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!" — E trechos de
salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa,
afloraram-lhe à boca.
Os outros
tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro, que parecia
transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que
ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de
almas, um apelo fremente in excelsis,
na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, talvez, a própria
voz do deserto malferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso
cuiabano.
De feito,
não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de
socorro, que subia do seio largo do deserto às alturas infinitas: — "Meu
coração está ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde
nas solidões!... Atendei propício à oração do desamparado e não desprezeis a
sua súplica..."
E assim, em
frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes
exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados.
Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos
peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso
e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao Agios Ischiros, ao formidável Sanctus,
Sanctus, Dominus Deus Sabaoth.
Os raios do
Sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros,
esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus
formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose
e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles
que, prostrados em terra, chamavam por Ele.
Os ventos
matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capão,
carregando feixes de folhas que se espalhavam no alto. Uma ema, abrindo as
asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz,
entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam
fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.
Súbito,
Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e
incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se
apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta... e seus lábios
murmuraram ainda, em ameaça suprema: — "Eu mato!... mato!... ma..."
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