Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Li algures que, na China,
quando nasce um infante, os pais plantam uma árvore. À medida que a criança vai
crescendo, vai a árvore ganhando vigor e beleza; e quando o petiz, ainda mal
seguro nas pernas, sai, arrastando pela cauda um minúsculo papagaio de papel de
arroz, pintado a cores, a sua verde irmã, lá de longe, acena-lhe com todos os seus
ramos viçosamente cobertos de folhas e, se é precoce, recamados de flores.
Para alentá-lo tem o jovem
chim os cuidados domésticos — os pais não o perdem de vista e a ama tártara,
solicita e carinhosa, segue-o a toda a parte, protegendo-o, ao sol, com a sua
sombra, equilibrando-o com os seus braços, animando-o com o seu canto monótono
e, à noite, depois de o adormecer com uma história maravilhosa, deita-se-lhe
junto ao berço de laça, em fina esteira e, ao mais leve resmungo, ei-la de pé,
debruçada, a examinar a cócedra macia, a sacudir o mosquiteiro ou a balançar, de
leve, o berço delicado. De manhã, lá o leva ao ar puro, aos jardins, a correr
na relva ainda úmida e, quando o sol aquece, vai ficar à beira dos lagos que parecem
dormir um sono doce e eterno e sobre os quais as aves, que se refletem
ligeiramente, passando e fugindo no ar, são como iterativos sonhos.
A arvorezinha tem apenas o sol
e as chuvas que a vão nutrindo e, nos tempos secos, duas vezes ao dia, ao partir
e ao chegar das pombas domésticas, a rega do velho tangia melancólico. Ninguém
a agasalha — dorme exposta ao tempo, ao clarão dos luares, e cresce, enfolha-se,
frondeja e floresce.
O jovem chim deixa os braços
da ama e, seguindo para um quiosque forrado de seda, alto como um tai, agasalhado discreta, silenciosamente
num bosque de bambus, entrega-se a um velho letrado que lhe fala dos grandes
espíritos do império: Laotseu propagando a doutrina de Tao, Confúcio ditando
aos discípulos as tais sábias leis puras da moral dos lamas contemplativos que descem
do Tibete, como uma corrente beneficiadora, fazendo crescer nas almas a
esperança e, por desfastio, de quando em quando, lá lhe põe ante os olhos uma
peça dramática composta por alguma das mulheres do régio liarem para os cômicos
da corte.
Depois são as armas — é um
espadachim que lhe transmite a sua ágil ciência, manejando uma espada ou enristando
uma lança; depois o mestre de equitação que aderência um alfario árdego até
que, um dia, moço e lindo, gracioso e robusto, para continuar a glória da sua casa,
os pais, depois de muitas consultas, resolvem dar-lhe por esposa uma princesa
manchu senhora de terras vastas, ricas em arroz e em árvores de laça.
Contratada a aliança,
determinado o dia dos esponsais, é logo chamado um artista perito para construir
o leito nupcial. E a árvore que, ia fora, toda se enfeita ao sol, a árvore
plantada no dia do nascimento do noivo, alta e forte, verde e em flor, é sacrificada
como uma vítima. Recebe no tronco um golpe fundo, outro logo, ainda outro,
cava-se uma cinta donde escorre, como sangue novo e sadio, a seiva loura,
saltam aparas e a madeira ringe, estrepita, estala, oscila e pende. A fronde
ainda resiste, mas a uma leve aragem, derreia-se languidamente e, ao peso da
folhagem, inclina-se com fragor atroante e tomba com sonoro farfalhar de folhas
e de galhos.
É depois arrastada, entra na
oficina, é serrada, acepilhada, torneada e vai, pouco a pouco, sob os ferros do
artista, tomando a feição graciosa de um leito. Os embutidos enfeitam-na, os
vernizes emprestam-lhe brilho resplandecente, o ouro enriquece-a em filetes de
caprichosas voltas e, no respaldar, o dragão emblemático de rútilas escamas, contorce-se,
de olhos fuzilantes, com as garras de ouro esmagando crisântemos e lírios sobre
um fundo vago, indefinido, onde voam garças.
É nesse leito que se reúnem os
membros da nova família. A árvore torna-se assim como um elo humano — o seu
destino é nobre, a sua genitora é poética e, à proporção que sobe, vão os pais sentindo
que o tempo de cuidar das bodas e ela, toucando-se de flores, parece estar a
chamar a linda noiva, que deve repousar nos seus braços e gerar no seu colo.
Eis aí um culto poético que,
se não garante a eternidade do vegetal, estabelece, ao menos, a obrigação do
replantio. Assim, na China, enquanto nascerem infantes, nascerão árvores. Um
pimpolho que engatinha indica que há uma ramaria a dar sombra e flor, um tronco
forte, não longe, destinado a ser o tálamo sagrado — e ganha a natureza com essa
tradição poética, criada, sem dúvida, por um filósofo budista, defensor de
animais e florestas.
Por que não havemos nós de
imitar, no amor, essa gente bárbara, que vive confinada entre as altas muralhas,
além das quais não chega a civilização? Se um bruto mongol entrasse em uma das
nossas matas e encontrasse o lenhador derrubando velhíssimos troncos, não para
aproveitá-los em úteis construções, mas para reduzi-los a achas, certamente, e
com razão, tomá-lo-ia por um bárbaro. Pois esses bárbaros constituem legiões —
do extremo Norte ao estremo Sul do Brasil o machado trabalha desapiedadamente,
sem descontinuar, devastando.
Quem percorre o interior
paulista vê, ao longo das linhas férreas, altas trincheiras de lenha — é o tributo
florestal. As locomotivas, como os dragões das lendas medievais, exigem esse
repasto cruel. A tarasca de Ehódano reclamava virgens; o monstro de ferro exige
o cedro, e a selva despovoa-se em proveito do que chamam — o progresso.
A área esterilizada pelo
machado é imensa — o cálculo feito por um distinto engenheiro, o dr. João Pedro
Cardoso, assombra e prova, com algarismos irrefutáveis, que se os lavradores
não tratarem, em tempo, de sustar a depredação, dentro em breve uma grande área
do riquíssimo Estado de São Paulo não será mais que vageiro esmarrido.
Com a morte das árvores
desaparecem as fontes: rios que rolavam águas abundantes derivam agora em
filetes rasos e tão escassos que uma quente semana de verão à bastante para
secá-los; a caça rareia. Estrangeiros, que percorrem o interior, voltam
impressionados com a ausência de pássaros — não se ouve um gorjeio, não se vê
um ninho — tudo é silencioso, e viaja-se longamente, ao sol, sem um oásis, sem
uma árvore, mas os tocos adustos, que apontam à flor da terra, atestam a
existência anterior de florestas grandiosas — levou-as o machado, arrasou-as o
fogo, e, sobre, o terreno, nu e sáfaro, cresce a erva maninha que apenas serve
de abrigo à serpe. O ar vicia-se, o mesmo clima modifica-se, e isso é notado
pelos velhos moradores desses lugares, dantes bem regados e sadios, e hoje secos,
ingratos e insalubres, onde o homem não vive nem a sementeira vinga.
Além das estradas de ferro,
que devoram as florestas, grande número de fábricas não queima outro
combustível senão a lenha, e já não falo na que se consome nos fogões
domésticos.
O lenhador vive folgadamente,
sem preocupações — não tem o cuidado do lavrador que se alarma quando, no tempo
da florada, o sol abrasa ou grandes chuvas assolam; não lhe importa a geada, as
larvas são-lhe indiferentes — sempre é tempo para destruir e o mercado é sempre
lucrativo.
Um ferro de bom geme, o carro
e quatro juntas de bois bastam ao que vai à floresta, e quem atravessa as
estradas ouve monotonamente os golpes do machado, de repente um grito de aviso
e logo o estrondo da queda da árvore talhada.
Parece, entretanto, que já se
vai sentindo a necessidade do replantio; os mesmos “fazedores de desertos”,
como muito bem lhes chamou Euclides da Cunha, começam a compreender o mal que fizeram,
mas não se atrevem a repará-lo, porque é mais difícil construir que destruir —
emigram, talvez com remorsos, passam adiante, de olhos compridos, consultando
os horizontes rasos, e onde descobrem verduras frondosas, aí ficam, afiam os ferros,
armam ranchos e entram em exercício.
Dizem-me que há leis
decretadas em favor das árvores, afirmam-me que o Congresso já se preocupou com
essas míseras autóctones, mas quem há de fazer respeitar a lei? Onde estão os nossos
guardas florestais, a nossa polícia das matas e dos campos? Ninguém os viu até
hoje. O homem, que atravessa a trilha com a caçadeira e um cão, é um pobre
matuto que vai bater a macega ou o cerrado, ver se levanta uma perdiz. As árvores
não têm defensores.
As municipalidades evitam, com
esperta prudência, a luta. O fazendeiro declara que as matas lhe pertencem, são
seus bens, pôde mandar destruí-las se assim lhe convier. Que lhe importa a manutenção
dos mananciais que abeberam a cidade ou a vila? a lenha é tão sua como o café e
o milho, a cana e o feijão, o arroz, a batata e a mandioca que ele colhe e
manda ao mercado, e o lenhador errante é um voto certo e será um terrível capataz
da oposição se a municipalidade lhe sair ao encontro proibindo-lhe a faina
cruel.
E, dia a dia, vão os bosques
desaparecendo. A região privilegiada e formosa das árvores será, em breve, mais
árida e mais nua do que a Líbia estéril. Os mais belos espécimes da nossa flora
riquíssima somem-se reduzidos a cinzas e os animais emigram, fogem: uns pela
terra, outros pelos ares, buscando novos abrigos, e a terra alhanada, deserta,
com uma hirsuta felpa de capins ressequidos, estende-se, plana e solitária, ao
sol que a queima, cheia de cepos tostados, que são como fragmentos de colunas, restos
de um fastígio morto, escombros de uma glória extinta, ou cipós funerais num
cemitério.
O arvoredo é o grande químico
de Deus. Felizmente o alarma, que repercute em todo o Estado, vai despertando a
atenção dos que ainda se interessam pela sorte desta terra formosa, rica e desgraçada.
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