Ardil
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
— A que devo o prazer de uma
visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia
quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e
admiravelmente calçado.
Ergueu-se a formosa visitante,
e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos
consuetudinários, sentaram-se ambas.
— O visconde ainda dorme?
— Ainda, e não acordará tão
cedo: são apenas sete horas.
— Posso falar sem receio?
— Estamos completamente sós.
— Temos então algum mistério?
interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de
rendas brancas. Histórias do coração, aposto?
— Do coração? Não sei. Há quem
diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça... Em todo caso,
fazem padecer.
— A quem o dizes!
— Não durmo há duas noites...
Há três dias não abro o piano... Amor? — sei lá! Despeito, raiva, talvez...
— Conta-me tudo, disse a
viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da
amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às
ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.
— Fale mais baixo.
— Não tenhas medo.
— Sim, venho ainda uma vez ao
encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a
subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor;
hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua
experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobretudo, a sua amizade, me
indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para
mim. A senhora teve quatro amantes...
— Três, interrompeu
serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais
que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.
— Pois bem, três, e nenhum
deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos
três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do
visconde: Fui eu que não quis mais...
Houve outra pausa.
— Imagine, prosseguiu a
baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante
os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu
marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive
resposta!
— Que horror! murmurou a
viscondessa, profundamente impressionada.
— Vamos... diga-me...
aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o
meu primeiro amante...
— Deixa-me pensar, filhinha,
deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de
olhos! E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos
braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho
advogado, comprometido a defender causa importante.
— Vejamos: o Bittencourt,
segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu
marido...
— Sim, creio que sim... O
barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele
belo emprego...
— Uma verdadeira sinecura.
— Mas... que tem isso?
— Tem tudo, filhinha; a moral
fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam
favores ao marido.
— Quer isso dizer que tais
favores são pagos à custa do nosso amor próprio?
— E do nosso próprio amor: o
sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!
— Mas, por fim das contas, que
devo fazer?
— Guerrear e vencer os
escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva. Verba volant, scripta moment.
— Não sei latim.
— Quero dizer que nenhum
homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se
compromete. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu
cavalheirismo — o seu cavalheirismo pelo menos — o obrigará a cumpri-las. E
quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém
esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.
— Mas por amor de Deus,
viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem
resposta?
— A que lhes vai escrever agora
não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado.
Vem cá, acompanha-me.
A doutora levantou-se e
dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.
— Senta-te, e escreve o te vou
ditar.
No dia seguinte o Bittencourt
recebia este bilhete:
Tenho-lhe escrito três cartas,
e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdoo: o senhor deve andar muito
preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem
honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às
responsabilidades da vida prática. Paciência.
Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim
esta carta pedir-lhe a resposta das outras. — Sua quand même, L.
Post-scriptum — Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter
selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à
cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil-réis que inclusos encontrarás, compre
cinquenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me
responder. — Sua L.
E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma
nota de cinco mil-réis!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...