Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Capitão Jerônimo Ferreira,
morador da antiga vila de São João Batista de Faro, voltava de uma caçada a que
fora para distrair-se do profundo pesar causado pela morte da mulher, que o
deixara subitamente só com uma filhinha de dois anos de idade.
Perdida a calma habitual de
velho caçador, Jerônimo Ferreira transviou-se e só conseguiu chegar às
vizinhanças da vila quando já era noite fechada.
Felizmente, a sua habitação
era a primeira, ao entrar na povoação pelo lado de cima, por onde vinha
caminhando, e por isso não o impressionaram muito o silêncio e a solidão que a
modo se tornavam mais profundos à medida que se aproximava da vila. Ele já
estava habituado à melancolia de Faro, talvez o mais triste e abandonado dos
povoados do vale do Amazonas, posto que se mire nas águas do Nhamundá, o mais
belo curso d’água de toda a região. Faro é sempre deserta. A menos que não seja
algum dia de festa, em que a gente das vizinhas fazendas venha ao povoado,
quase não se encontra viva alma nas ruas. Mas se isso acontece à luz do sol, às
horas de trabalho e de passeio, à noite a solidão aumenta. As ruas, quando não
sai a lua, são de uma escuridão pavorosa. Desde as sete horas da tarde, só se
ouve na povoação o pio agoureiro do murucututu ou o lúgubre uivar de algum cão
vagabundo, apostando queixumes com as águas múrmuras do rio.
Fecham-se todas as portas.
Recolhem-se todos, com um terror vago e incerto que procuram esconjurar,
invocando:
— Jesus, Maria, José!
Vinha, pois, caminhando o capitão
Jerônimo a solitária estrada, pensando no bom agasalho da sua fresca rede de
algodão trançado e lastimando-se de não chegar a tempo de encontrar o sorriso
encantador da filha, que já estaria dormindo. Da caçada nada trazia, fora um
dia infeliz, nada pudera encontrar, nem ave nem bicho, e ainda em cima
perdera-se e chegava tarde, faminto e cansado. Também quem lhe mandara sair à
caça em sexta-feira? Sim, era uma sexta-feira, e quando depois de uma noite de
insônia se resolvera a tomar a espingarda e a partir para a caça, não se
lembrara que estava num dia por todos conhecido como aziago, e especialmente
temido em Faro, sobre que pesa o fado de terríveis malefícios.
Com esses pensamentos, o
capitão começou a achar o caminho muito comprido, por lhe parecer que já havia
muito passara o marco da jurisdição da vila. Levantou os olhos para o céu a ver
se se orientava pelas estrelas sobre o tempo decorrido. Mas não viu estrelas.
Tendo andado muito tempo por baixo de um arvoredo, não notara que o tempo se
transtornava e achou-se de repente numa dessas terríveis noites do Amazonas, em
que o céu parece ameaçar a terra com todo o furor da sua cólera divina.
Súbito, o clarão vivo de um
relâmpago, rasgando o céu, mostrou ao caçador que se achava a pequena distância
da vila, cujas casas, caiadas de branco, lhe apareceram numa visão efêmera. Mas
pareceu-lhe que errara de novo o caminho, pois não vira a sua casinha
abençoada, que devia ser a primeira a avistar. Com poucos passos mais, achou-se
numa rua, mas não era a sua. Parou e pôs o ouvido à escuta, abrindo também os
olhos para não perder a orientação de um novo relâmpago.
Nenhuma voz humana se fazia
ouvir em toda a vila; nenhuma luz se via; nada que indicasse a existência de um
ser vivente em toda a redondeza. Faro parecia morta.
Trovões furibundos começaram a
atroar os ares. Relâmpagos amiudavam-se, inundando de luz rápida e viva as
matas e os grupos de habitações, que logo depois ficavam mais sombrios.
Raios caíram com fragor enorme,
prostrando cedros grandes, velhos de cem anos. O capitão Jerônimo não podia
mais dar um passo, nem já sabia onde estava. Mas tudo isso não era nada. Do
fundo do rio, das profundezas da lagoa formada pelo Nhamundá, levantava-se um
ruído que foi crescendo, crescendo e se tomou um clamor horrível, insano, uma
voz sem nome que dominava todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só
comparável ao brado imenso que hão de soltar os condenados no dia do Juízo
Final.
Os cabelos do capitão Ferreira
puseram-se de pé e duros como estacas.
Ele bem sabia o que aquilo
era. Aquela voz era a voz da cobra grande, da colossal sucuriju que reside no
fundo dos rios e dos lagos. Eram os lamentos do monstro em laborioso parto.
O capitão levou a mão à testa
para benzer-se, mas os dedos trêmulos de medo não conseguiram fazer o
sinal-da-cruz. Invocando o santo do seu nome, Jerônimo Ferreira deitou a correr
na direção em que supunha dever estar a sua desejada casa. Mas a voz, a
terrível voz aumentava de volume. Cresceu mais, cresceu tanto afinal, que os
ouvidos do capitão zumbiram, tremeram-lhe as pernas e caiu no limiar de uma
porta.
Com a queda, espantou um
grande pássaro escuro que ali parecia pousado, e que voou cantando:
— Acauã, acauã!
Muito tempo esteve o capitão
caído sem sentidos. Quando tornou a si, a noite estava ainda escura, mas a
tempestade cessara. Um silêncio tumular reinava; Jerônimo, procurando
orientar-se, olhou para a lagoa e viu que a superfície das águas tinha um
brilho estranho como se a tivessem untado de fósforo. Deixou errar o olhar sobre
a toalha do rio, e um objeto estranho, afetando a forma de uma canoa,
chamou-lhe a atenção. O objeto vinha impelido por uma força desconhecida em direção
à praia para o lado em que se achava Jerônimo. Este, tomado de uma curiosidade
invencível, adiantou-se, meteu os pés na água e puxou para si o estranho
objeto. Era com efeito uma pequena canoa, e no fundo dela estava uma criança
que parecia dormir. O capitão tomou-a nos braços. Nesse momento, rompeu o sol
por entre os animais de uma ilha vizinha, cantaram os galos da vila, ladraram
os cães, correu rápido o rio perdendo o brilho desusado. Abriram-se algumas
portas.
À luz da manhã, o capitão Jerônimo
Ferreira reconheceu que caíra desmaiado justamente no limiar da sua casa.
No dia seguinte, toda a vila
de Faro dizia que o capitão adotara uma linda criança, achada à beira do rio, e
que se dispunha a criá-la, como própria, conjuntamente com a sua legítima
Aninha.
Tratada efetivamente como
filha da casa, cresceu a estranha criança, que foi batizada com o nome de
Vitória.
Educada da mesma forma que
Aninha, participava da mesa, dos carinhos e afagos do capitão, esquecido do
modo por que a recebera.
Eram ambas moças bonitas aos
14 anos, mas tinham tipo diferente. Ana fora uma criança robusta e sã, era agora
franzina e pálida. Os anelados cabelos castanhos caíam-lhe sobre as alvas e
magras espáduas. Os olhos tinham uma languidez doentia. A boca andava sempre
contraída, numa constante vontade de chorar. Raras rugas divisavam-se-lhe nos
cantos da boca e na fronte baixa, algum tanto cavada. Sem que nunca a tivessem
visto verter uma lágrima, Aninha tinha um ar tristonho, que a todos
impressionava, e se ia tomando cada dia mais visível.
Na vila dizia toda a gente:
— Como está magra e abatida a
Aninha Ferreira que prometia ser robusta e alegre.
Vitória era alta e magra, de
compleição forte, com músculos de aço. A tez era morena, quase escura, as
sobrancelhas negras e arqueadas; o queixo fino e pontudo, as narinas dilatadas,
os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho. Apesar da incontestável
formosura, tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos modos. A boca,
ornada de magníficos dentes, tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os
homens até obrigá-los a baixar os olhos.
As duas companheiras afetavam
a maior intimidade e ternura recíproca, mas o observador atento notaria que
Aninha evitava a companhia da outra ao passo que esta a não deixava. A filha do
Jerônimo era meiga para com a companheira, mas havia nessa meiguice um certo
acanhamento, uma espécie de sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um
terror vago, quando a outra cravava-lhe nos olhos dúbios e amortecidos os seus
grandes olhos negros.
Nas relações de todos os dias,
a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a de Vitória, áspera e dura.
Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto da senhora.
Tudo, porém, correu sem
novidade, até ao dia em que completaram 15 anos, pois se dizia que eram da
mesma idade. Desse dia em diante, Jerônimo Ferreira começou a notar que a sua filha
adotiva ausentava-se da casa frequentemente, em horas impróprias e suspeitas,
sem nunca querer dizer por onde andava. Ao mesmo tempo que isso sucedia, Aninha
ficava mais fraca e abatida. Não falava, não sorria, dois círculos arroxeados
salientavam-lhe a morbidez dos grandes olhos pardos. Uma espécie de cansaço
geral dos órgãos parecia que lhe ia tirando pouco a pouco a energia da vida.
Quando o pai chegava-se a ela
e lhe perguntava carinhosamente:
— Que tens, Aninha?
A menina, olhando assustada
para os cantos, respondia em voz cortada de soluços:
— Nada, papai.
A outra, quando Jerônimo a
repreendia pelas inexplicáveis ausências, dizia com altivez e pronunciado
desdém:
— E que tem vosmecê com isso?
Em julho desse mesmo ano, o
filho de um fazendeiro do Salé, que viera passar o São João em Faro,
enamorou-se da filha de Jerônimo e pediu-a em casamento. O rapaz era
bem-apessoado, tinha alguma coisa de seu e gozava de reputação de sério. Pai e
filha anuíram gostosamente ao pedido e trataram dos preparativos do noivado. Um
vago sorriso iluminava as feições delicadas de Aninha. Mas um dia em que o
capitão Jerônimo fumava tranquilamente o seu cigarro de tauari à porta da rua,
olhando para as águas serenas do Nhamundá, a Aninha veio se aproximando dele a
passos trôpegos, hesitante e trêmula, e, como se cedesse a uma ordem
irresistível, disse, balbuciando, que não queria mais casar.
— Por quê? — foi a palavra que
veio naturalmente aos lábios do pai tomado de surpresa.
Por nada, porque não queria.
E, juntando as mãos, a pobre menina pediu com tal expressão de sentimento, que
o pai enleado, confuso, dolorosamente agitado por um pressentimento negro,
aquiesceu, vivamente contrariado.
— Pois não falemos mais nisso.
Em Faro, não se falou em outra
coisa durante muito tempo, senão na inconstância da Aninha Ferreira. Somente
Vitória nada dizia. O fazendeiro do Salé voltou para as suas terras, prometendo
vingar-se da desfeita que lhe haviam feito.
E a desconhecida moléstia da
Aninha se agravava a ponto de impressionar seriamente o capitão Jerônimo e toda
a gente da vila.
Aquilo é paixão recalcada,
diziam alguns. Mas a opinião mais aceita era que a filha do Ferreira estava
enfeitiçada.
No ano seguinte, o coletor
apresentou-se pretendente à filha do abastado Jerônimo Ferreira.
— Olhe, seu Ribeirinho,
disse-lhe o capitão, é se ela muito bem quiser, porque não a quero obrigar. Mas
eu já lhe dou uma resposta nesta meia hora.
Foi ter com a filha e achou-a
nas melhores disposições para o casamento. Mandou chamar o coletor, que se
retirara discretamente, e disse-lhe muito contente:
— Toque lá, seu Ribeirinho, é
negócio arranjado.
Mas, daí alguns dias, Aninha
foi dizer ao pai que não queria casar com o Ribeirinho.
O pai deu um pulo da rede em
que se deitara havia minutos para dormir a sesta.
— Temos tolice?
E como a moça dissesse que
nada era, nada tinha, mas não queria casar, terminou em voz de quem manda:
— Pois agora há de casar que o
quero eu.
Aninha foi para o seu quarto e
lá ficou encerrada até ao dia do casamento, sem que nem pedidos nem ameaças a
obrigassem a sair.
Entretanto, a agitação de
Vitória era extrema.
Entrava a todo o momento no
quarto da companheira e saía logo depois com as feições contraídas pela ira.
Ausentava-se da casa durante
muitas horas, metia-se pelos matos, dando gargalhadas que assustavam os
passarinhos. Já não dirigia a palavra a seu protetor nem a pessoa alguma da
casa.
Chegou, porém, o dia da
celebração do casamento. Os noivos, acompanhados pelo capitão, pelos padrinhos
e por quase toda a população da vila, dirigiram-se para a matriz. Notava-se com
espanto a ausência da irmã adotiva da noiva. Desaparecera, e, por maiores que
fossem os esforços tentados para a encontrar, não lhe puderam descobrir o
paradeiro. Toda a gente indagava, surpresa:
— Onde estará Vitória?
— Como não vem assistir ao
casamento da Aninha?
O capitão franzia o sobrolho,
mas a filha parecia aliviada e contente. Afinal como ia ficando tarde, o
cortejo penetrou na matriz, e deu-se começo a cerimônia.
Mas eis que na ocasião em que
o vigário lhe perguntava se casava por seu gosto, a noiva põe-se a tremer como
varas verdes, com o olhar fixo na porta lateral da sacristia. O pai, ansioso,
acompanhou a direção daquele olhar e ficou com o coração do tamanho de um grão
de milho.
De pé, à porta da sacristia,
hirta como uma defunta, com uma cabeleira feita de cobras, com as narinas
dilatadas e a tez verde-negra, Vitória, a sua filha adotiva, fixava em Aninha
um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio que parecia querer pregá-la
imóvel no chão. A boca entreaberta mostrava a língua fina, bipartida como
língua de serpente. Um leve fumo azulado saía-lhe da boca, e ia subindo até ao
teto da igreja. Era um espetáculo sem nome!
Aninha soltou um grito de
agonia e caiu com estrondo sobre os degraus do altar. Uma confusão fez-se entre
os assistentes. Todos queriam acudir-lhe, mas não sabiam o que fazer. Só o
capitão Jerônimo, em cuja memória aparecia de súbito a lembrança da noite em
que encontrara a estranha criança, não podia despegar os olhos da pessoa de
Vitória, até que esta, dando um horrível brado, desapareceu, sem se saber como.
Voltou-se então para a filha e
uma comoção profunda abalou-lhe o coração. A pobre noiva, toda vestida de
branco, deitada sobre os degraus do altar-mor, estava hirta e pálida. Dois
grandes fios de lágrimas, como contas de um colar desfeito, corriam-lhe pela
face. E ela nunca chorara, nunca desde que nascera se lhe vira uma lágrima nos
olhos!
— Lágrimas! — exclamou o
capitão, ajoelhando ao pé da filha.
— Lágrimas! — clamou a
multidão tomada de espanto.
Então convulsões terríveis se
apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora de borracha. O seio
agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria. Arrancava com as mãos o
lindo cabelo. Os pés batiam no soalho. Os olhos reviravam-se nas órbitas, escondendo
a pupila. Toda ela se maltratava, rolando como uma frenética, uivando
dolorosamente.
Todos os que assistiam a esta
cena estavam comovidos. O pai, debruçado sobre o corpo da filha, chorava como
uma criança.
De repente, a moça pareceu
sossegar um pouco, mas não foi senão o princípio de uma nova crise.
Inteiriçou-se. Ficou imóvel.
Encolheu depois os braços, dobrou-os a modo de asas de pássaro, bateu-o por
vezes nas ilhargas, e, entreabrindo a boca, deixou sair um longo grito que nada
tinha de humano, um grito que ecoou lugubremente pela igreja:
— Acauã!
— Jesus! — bradaram todos
caindo de joelhos.
E a moça, cerrando os olhos
como em êxtase, com o corpo imóvel, à exceção dos braços, continuou aquele
canto lúgubre:
— Acauã! Acauã!
Por cima do telhado, uma voz
respondeu à de Aninha:
— Acauã! Acauã!
Um silêncio tumular reinou
entre os assistentes. Todos compreendiam a horrível desgraça. Era o Acauã!
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