12/12/2017

A Quadrilha de Jacob Patacho (Conto), de Inglês de Souza



A Quadrilha de Jacob Patacho

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva. Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranquilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.

— Ouvem? — perguntou.

O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:

— É uma canoa que sobe o rio.

— Quem há de ser?

— A estas horas — opinou a sora Maria dos Prazeres — não pode ser gente de bem.

— E por que não, mulher? — repreendeu o marido — isto é alguém que segue para Irituia.

— Mas quem viaja a estas horas? — insistiu a timorata mulher.

— Vem pedir-nos agasalho, redarguiu. — A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.

A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.

Mas o ruído do bater dos remos n’água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:

— Onde vais, ó Felix?

Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos.

Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas.

— Boa noite, meu branco.

Quem está aí? — indagou o português: — Se é de paz, entre com Deus.

Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisas de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.

Tranquilo, o português afastou-se para dar entrada aos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.

Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.

Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo.

Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente Seu João, levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual, posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e Seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse mundo, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.

No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do Seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido:

— Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos.

O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoitavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.

— Agasalhe-se bem, patrício — gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família.

Logo depois desejavam boa noite uns aos outros; o hóspede, que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra Seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.

A Anica, depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.

E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava.

Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azinhavrada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora.

Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o Sairé. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.

Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma ideia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha infligia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade?

A ideia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família.

Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o Seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão.

A noite estava belíssima.

O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.

A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa.

Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem.

Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.

Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heroica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:

— Aqui del-rei! Os de Jacob Patacho!

A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido.

A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça, ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima.

Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:

— Acudam, acudam, que me matam!

Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça, advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.

O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que, abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio, que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.

Seu João, o companheiro de Saraiva, mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem:

— Mata marinheiro! Mata! Mata!

Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de maçaranduba e os três portugueses, que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.

O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem.

Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1832 pelo sítio de Félix Salvaterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumeeira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranquila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.

Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça.

A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência.

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