Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Eram sete horas, a noite
estava escura, e o céu ameaçava chuva. Terminara a ceia, composta de cebola
cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores
recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de
algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um
par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz
baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de
azeite, reinava um ar tépido de tranquilidade e sossego, convidativo do sono.
Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das
pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um
ruído surdo que se aproximava lentamente.
— Ouvem? — perguntou.
O pai e os irmãos escutaram
também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes
de lugares ermos:
— É uma canoa que sobe o rio.
— Quem há de ser?
— A estas horas — opinou a
sora Maria dos Prazeres — não pode ser gente de bem.
— E por que não, mulher? —
repreendeu o marido — isto é alguém que segue para Irituia.
— Mas quem viaja a estas
horas? — insistiu a timorata mulher.
— Vem pedir-nos agasalho,
redarguiu. — A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.
A sora Maria continuou a
mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos
assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror
indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que
não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a
personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se
pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas.
Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas
em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos
bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.
Mas o ruído do bater dos remos
n’água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se
Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:
— Onde vais, ó Felix?
Os rapazes lançaram vistas
cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com
bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram
o movimento do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e
para os irmãos.
Ouviram-se passos pesados no
terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da
mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas
uma voz rústica saiu das trevas.
— Boa noite, meu branco.
Quem está aí? — indagou o
português: — Se é de paz, entre com Deus.
Então dois caboclos apareceram
no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam
calças e camisas de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto
nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.
Tranquilo, o português
afastou-se para dar entrada aos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua
modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.
Vinham de Santarém, e iam a
Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por
conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro
horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles,
receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam
deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se
a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam
a sua viagem.
Os dois homens falavam
serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que
parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de
extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado,
baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar
de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a
criatura mais inofensiva deste mundo.
Depois que a sora Maria
mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os
restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas
de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em
busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido
naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava
cerimoniosamente Seu João, levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a
qual, posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma
galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo
ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo
companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e Seu Pinto era um
branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não
andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse mundo, acrescentava como um
riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma
gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as
fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.
No fundo quadrava
perfeitamente à sora Maria a resolução do Seu João, não só porque pensava que
mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os
dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança,
dizendo ao marido:
— Deixa lá, homem, cada um
sabe de si e Deus de todos.
O caboclo abriu a porta e saiu
acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe
fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu.
Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoitavam nuvens negras
que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada
soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre
o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.
— Agasalhe-se bem, patrício —
gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de
pau, veio ter com a família.
Logo depois desejavam boa
noite uns aos outros; o hóspede, que deu o nome de Manuel, afundou-se numa
rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra Seu João,
já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do
dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.
A Anica, depois de rezar à
Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a
muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um
roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis
que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela
quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos
tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio
com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de
atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas
sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela
luz vacilante da candeia de azeite de mamona.
E por uma singularidade, que a
rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia
uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que
tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos
incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições
desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no
fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para
apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo
nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de
desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz
chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se
inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a
tragédia feroz que o cérebro imaginava.
Pouco a pouco, procurando
provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que
sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e
inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a
convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que
se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim,
era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas,
aquela boca imunda e servil, a cor azinhavrada, a estatura baixa e vigorosa,
sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na
sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde?
Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia.
Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não
fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em
uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem;
parecia recordar-se agora.
Fora em Santarém, havia coisa
de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa
popular, o Sairé. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto,
patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se
achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a
gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo
e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma
dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada
antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do
Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.
Neste ponto de suas
reminiscências, a Anica foi assaltada por uma ideia medonha que lhe fez correr
um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de
suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho,
cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja
atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da
quadrilha infligia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar
pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro
violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos
serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele
homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói
dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera
germinar o sentimento da piedade?
A ideia da identidade do
tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho gelou-a de
terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça
inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta
da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro;
convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma;
eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos
eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria
resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais
valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem
o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e
correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como
prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que
este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para
chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do
caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos
enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara
aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o
sacrifício pudesse aproveitar à sua família.
Um silvo agudo, imitante do
canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta,
pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a
perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela,
rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano
quando cogitou de estar o outro tapuio, o Seu João, perto da casa para
responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela,
espreitando pelo vão.
A noite estava belíssima.
O vento forte afugentara as
nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas
do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão
molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das
laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.
A princípio a rapariga,
deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras
que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos
de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se
dirigiam para a casa.
Eram quinze ou vinte, mas à
rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua
imaginação fazia um homem.
Não havia que duvidar. Era a
quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.
Todo o desespero da situação
em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar
pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a
denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência
preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e
sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos
do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento
salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror,
com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito,
tomando uma resolução heroica, resumindo todas as forças em um supremo esforço,
fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:
— Aqui del-rei! Os de Jacob
Patacho!
A sua voz nervosa repercutiu
como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se
dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente
e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa,
rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura
de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se
para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo
que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia,
tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse
explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser
pressentido.
A indignação do pudor ofendido
e a repugnância indizível que se apoderou da moça, ao sentir o contato dos
lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico
delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela
branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de
cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca
desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se
ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do
asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em
apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso
pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos
e afilados da vítima.
Mas se a sensualidade feroz do
Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por
sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do
ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho
um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias
em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de
reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos
de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas
teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:
— Acudam, acudam, que me
matam!
Bruscamente o Saraiva largou a
mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os
companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça, advertindo-se
do intento, atravessou-se no caminho com inaudita coragem, opondo-lhe com o
corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento,
abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra,
seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de
Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma
valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.
O português e os filhos mal
despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e
da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que,
abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente
a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de
guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda
do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o
nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o
último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do
tapuio, que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia,
Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de
entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de
havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois
homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.
Seu João, o companheiro de
Saraiva, mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que
o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida,
voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões
de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o
grito de guerra da cabanagem:
— Mata marinheiro! Mata! Mata!
Os bandidos correram e
penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios
armados de terçados e de grandes cacetes quinados de maçaranduba e os três
portugueses, que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas
de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.
O Saraiva recebeu um tiro à
queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo
entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que
por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha,
agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os
filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de
Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo
selvagem.
Quando passei com meu tio
Antônio em junho de 1832 pelo sítio de Félix Salvaterra, o lúgubre aspecto da
habitação abandonada, sob cuja cumeeira um bando de urubus secava as asas ao
sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e
entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranquila
morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os
modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido
ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os
restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus,
enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.
Só muito tempo depois conheci
os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da
desgraça.
A sora Maria dos Prazeres e a
Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica
tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana,
lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que
sofrera em sua atribulada existência.
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