A pobre
cega
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Na cidade de Vitória, no Espírito
Santo, havia uma ceguinha que, por ser muito amiga de crianças, ia todos os
dias sentar-se perto de uma escola, num caminho ensombrado por bambus.
Entretinha-se ela ouvindo as conversas da pequenada que subia para as aulas.
As auras do mar vinham de longe
queimar-lhe o rosto trigueiro. Imóvel, com o cajado nas mãos pequenas, ela
imaginava quanto os rapazinhos deveriam estar pimpões dentro das suas roupinhas
bem lavadas, e ria-se quando, a qualquer ameaça ou repelão de um dos mais
velhos, os pequenos gritavam:
— Eu vou dizer à mamãe!
E havia sempre um coro de
gargalhadas, a que se juntava uma voz lamurienta.
Um dia, dois dos estudantes mais
velhos, já homenzinhos, desciam para o colégio, quando verificaram ser ainda
muito cedo, e sentaram-se também numas pedras, a pequena distância da mendiga.
O dever da pontualidade, que não deve ser esquecido em nenhum caso da vida,
aconselhou-os a ficarem ali até a hora fixada pelo mestre para a entrada na
escola. Entretanto, para não perderem tempo, repassaram os olhos pela lição,
lendo alto, cada um por sua vez, o extrato que tinham feito em casa, de uma
página de História do Brasil.
A cega, satisfeita por aquela
inesperada diversão, abriu os ouvidos à voz clara de um dos meninos, que dizia
assim:
"A civilização adoça os
costumes e tem por objetivo tornar os homens melhores, disse-me ontem o meu
professor, obrigando-me a refletir sobre o que somos agora e o que eram os
selvagens antes do descobrimento do Brasil. Eu estudei história como um papagaio,
sem penetrar nas suas ideias, levado só por palavras. Vou meditar sobre muita
coisa do que li. Que eram os selvagens, ou os índios, como impropriamente os
chamamos? Homens impetuosos, guerreiros com instintos de animal feroz.
Entregues absolutamente à natureza, de que tudo sugavam e a que por modo algum
procuravam nutrir e auxiliar, estavam sujeitos às maiores privações; bastando
que houvesse uma seca, ou que os animais emigrassem para longe das suas tabas,
para sofrerem os horrores da fome. Sem cuidar da terra e sem amor ao lar,
abandonavam as suas aldeias, poucos anos habitadas, e que ficavam pobres
“taperas” sem único indício de saudade daqueles a quem agasalharam! Elas
ficavam mudas, com os seus telhados de palma apodrecidos, sem ninhos, sem aves,
que as flechas assassinas tinham espantado, sem flores, sem o mínimo vestígio
do carinho que temos por tudo que nos rodeia. Abandonando as tabas, que por um
par de anos os tinham abrigado, os donos iam plantar mais longe novos arraiais.
Os homens marchavam na frente, com o arco pronto para matar, e as mulheres iam
atrás, vergadas ao peso das redes, dos filhos pequenos e dos utensílios de
barro de uso doméstico. O índio vivia para a morte; era antropófago, não por
gula, mas por vingança.
Desafiava o perigo, embriagava-se
com sangue e desconhecia a caridade. As mulheres eram como escravas, submissas,
mas igualmente sanguinárias. Não seriam muito feios se não achatassem os
narizes e não deformassem a boca, furando beiços. Além da guerra e da caça,
entretinham-se tecendo as suas redes, bolsas, cordas de algodão e de embira, e
polindo machados de pedra com que cortavam lenha. Quero crer que as melhores
horas da sua vida seriam passadas nessas últimas ocupações.
Que alegria invade o meu espírito
quando penso na felicidade de ter nascido quatrocentos anos depois desse tempo,
em que o homem era uma fera, indigno da terra que devastava, e como estremeço
de gratidão pelas multidões que vieram redimir essa terra, cavando-a com a sua
ambição, regando-a com seu sangue, salvando-a com a sua cruz!
Graças a elas, agora, em vez de
devastar, cultivamos, e socorremo-nos e amamo-nos uns aos outros!
Pedro Álvares Cabral, Pêro Vaz de
Caminha, Frei Henrique de Coimbra, vivei eternamente no bronze agradecido, com que
no Rio de Janeiro vos personificou o mestre dos escultores brasileiros!”
Vinham já os outros rapazes muito
apressados a caminho da escola. A cega calculou pelas vozes o tipo e a estatura
de cada um, e, quando já se perdia ao longe o rumor dos passos da maior parte
deles, sentiu, como nos outros dias, cair-lhe devagarinho no colo uma laranja e
um pedaço de pão.
Nenhuma palavra costumava
acompanhar aquela dádiva, mas uma corridinha leve denunciou, como das outras
vezes, o fugitivo, o Chico, que não tendo nunca dinheiro para dar à pobrezinha,
dava-lhe a sua merenda!
Nesse dia as crianças voltaram
imediatamente do colégio: o professor adoecera e não havia aula. Sentindo-os, a
cega levantou o bastão para que parassem e perguntou:
— Como se chama o menino que
todos os dias me mata a fome, dando-me a sua merenda?
Ninguém respondeu. Como a pobre
renovasse a pergunta, Chico fugiu envergonhado. Reconhecendo-o pela bulha dos
passinhos rápidos, a mendiga exclamou:
— É aquele que fugiu! Tragam-mo
cá; quero beijar-lhe as mãos!
Alcançado pelos colegas, Chico
retrocedeu, vermelho como uma pitanga, e deixou-se abraçar pela mendiga, que
lhe passava os dedos pelo rosto, procurando adivinhar-lhe as feições.
Familiarizados com ela, os
meninos perguntaram-lhe:
— Vocemecê não vê nada, nada?
— Nada.
— Já nasceu assim?
— Não...
— Como foi?
— Coitadinha...
As perguntas das crianças não a
humilhavam, porque ela já as tinha por amigas.
— Querem saber como fiquei cega?
Escutem: quando eu era moça, morava em frente à casa de uma viúva carregada de
filhos. Uma noite acordei ouvindo gritos. — Socorro, socorro! Pediam em brados.
Levantei-me à pressa, vesti-me não sei como, e fui à janela. Da casa fronteira
saíam chamas e grandes novelos de fumo; na rua, a dona da casa, gritando
sempre, aconchegava os filhos ao peito. De repente deu um grito agudíssimo:
faltava um dos filhos mais moços – o Manoel!
A desgraçada quis atirar-se às
chamas, mas as crianças agrupavam-se todas agarradas à sua saia: então eu
atravessei correndo a rua, e de um pulo trouxe para fora o menino, já meio
tonto e pálido como um morto. Não me lembro senão do calor do fogo que me
cercava por todos os lados, da fumaça que oprimia e da dor horrível que senti
nos olhos, quando, à rajada fria da noite, entreguei na rua o filho à mãe.
Ela gritou radiante: — Está
salvo! e eu pensei com amargura: — Estou cega...
— E essa família? Inquiriu um dos
meninos.
— Era pobre também. Nem sei onde
para...
— Sei eu! Respondeu um dos
pequenos; essa família é a minha! A criança que a senhora salvou é hoje um
homem trabalhador e que há de protegê-la. É meu pai.
Uma hora depois a velha cega
entrava para sempre em casa de Chico, onde lhe deram o melhor leito e a
trataram sempre com o mais doce carinho, provando assim que muita razão tinha o
mestre fazendo ver ao discípulo quanto a civilização adoça os caracteres e
torna os homens bons!
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