12/08/2017

A nova raça (Conto), de Coelho Neto


A nova raça
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

---

Quem conheceu o fazendeiro, o grande senhor de terras e de almas, mais poderoso do que os soberbos ricos homens da idade média, dificilmente, e com pena, o reconhecerá no agricultor atual, sombra triste dum fastígio morto, ruína melancólica duma grandeza extinta.

Dantes, quem passava a porteira duma fazenda, que era como pequena cidade encravada entre árvores, quase todas com a sua capela erguida no centro de jardim florido, tinha a certeza de encontrar abundância e alegria: os paióis regurgitavam, o gado cobria os vargedos ubérrimos, as máquinas nublavam os ares com a poeira do café e a escravatura, numerosa e forte, espalhada pelos outeiros, punha a nota de vida em todos os cantos, mesmo no fundo das grotas sombrias, onde a água límpida manava, negros faziam luzir os ferros agrícolas, cantando banzeiramente as suas saudades d'África.

A mesa, copiosamente abastecida, dava a ilusão opípara de banquetes. Chegasse quem chegasse, lá encontrava um talher e acolhida amável e, à hora em que a sopa vinha, a ferver, das imensas cozinhas, ou o sino badalava alegremente ou um negro possante saía à varanda, com uma buzina, soprando estentoricamente, para que os viajantes, que passavam nas estradas próximas, apressassem os animais e chegassem a tempo de poder refazer-se sob o teto hospitaleiro da grande vivenda rural.

As festas eram fantásticas. Não será nestas linhas escassas que hei de descrever tão suntuosos regalos e só a pena abundante de um Simão Machado poderia bosquejar tais maravilhas do passado — eu não tenho as cores vivas de que se servia o pintor das procissões mineiras, no tempo rico do transbordamento do ouro. Dizer fazendeiro correspondia a dizer nababo e quando, na cidade, aparecia um desses homens de tez queimada, largo chapéu de palha, calças fofas, de brim branco, casaco folgado e anéis e ourama lampejando, corria na assistência um murmúrio de assombro e todos os olhos deslumbrados cravavam-se no homem que, pelo hábito de tratar soberanamente a escravatura humilde, julgava-se, em toda a parte, um superior e, quando metia a mão nas algibeiras fundas, sacava maços de notas gordas e, às vezes, ouro reluzente, apanhado à beira dos seus córregos, que ele trazia, como amostra, para oferecer à venda.

Um filho de fazendeiro tinha foros de príncipe — era uma entidade quase sobrenatural, um como Aladino dos contos árabes. As cocottes punham-lhe cerco, os fornecedores disputavam a honra de pagar-lhe o champagne estroina, o crédito escancarava-se ao mais extravagante dos seus caprichos, e adulado, vangloriado, sempre com uma turba a formar círculo em volta da sua pessoa, lá ia ele, orgulhoso, debicando amores, provando todos os prazeres, a espalhar notas, com a mesma pródiga-idade com que um rijo vento do outono dispersa folhas secas.

Era isso no tempo em que o café valia o seu peso em ouro. Ah! o bom tempo! Hoje, o fazendeiro é um tipo de que se não fala e, quem o vê, não imagina que está diante de um descendente dos cresos rurais, dos famosos senhores rústicos, cujos lindes territoriais iam além da linha do horizonte.

Muitas das antigas fazendas são hoje taperas ermas — o mato reconquistou, palmo a palmo, o terreno que lhe fora tomado. Veem-se casarões imensos com as paredes fendidas, os telhados cobertos de erva, os paióis em ruínas lúgubres e, às vezes, estalando os soalhos podres, pululantes de tortulhos, varando os tetos carunchosos, uma forte e verde árvore irrompe à grande luz, sacudindo vitoriosamente a sua rica folhagem, que farfalha aos ventos e abriga os passarinhos.

Perguntem pelo fazendeiro — foi desalojado pelo credor e, à luz alegre duma manhã, com algumas relíquias num velho carro de bois, abandonou, com a família, o solar agreste, lançando-se aventurosamente a uma vida nova, como um náufrago que se salvasse nu da pérfida procela.

Não julguem que exagero — copio fielmente quadros da decadência.

O fazendeiro que ainda resiste vive, como o triste profeta hebreu, desferindo lamentosos trenos — sem ânimo e sem esperança, espera resignadamente a chegada da Miséria. À terra debalde produz, debalde os campos cobrem-se de flores, de que vale tanta uberdade para que tanto esmalte nas campinas e nos outeiros, se o produto depreciado não dá, sequer, para o custeio da propriedade, que tudo consome?

Os que lucram são aqueles que lá andam pelos lançantes dos morros, homens, mulheres e crianças louros, como os temidos germanos de Tácito — são os conquistadores, que entraram submissamente como colonos e que, com a vida sóbria, acumulando os salários, vão conseguindo impor-se, adquirindo lotes de terras, que eles mesmos revolvem e semeiam. São os donos futuros, é a geração nova, que se impõe pela força e pela perseverança.

No dia em que o fazendeiro esgota o último recurso o colono levanta a cerviz e é vê-lo, então, dominando, como para desforrar-se do tempo da obediência passiva, ditando leis, assediando a casa senhorial, a exigir com armas e afrontas. Quando li as palavras acerbas do livro presago de Graça Aranha, senti que o meu patriotismo, revoltado, protestava contra aqueles augúrios cruéis do alemão Milkau.

“É provável que o nosso destino seja transformar, de baixo a cima, este país, de substituir por outra civilização toda a cultura, religião e as tradições de um povo. É uma nova conquista lenta, tenaz, pacífica em seus meios, mas terrível em seus projetos de ambição. É preciso que a substituição seja tão pura, e tão luminosa, que sobre ela não caia a amargura e a maldição das destruições. E por ora nós somos apenas um dissolvente da raça deste país. Nós penetramos na argamassa da nação e a vamos amolecendo, nós nos misturamos a este povo, matamos as suas tradições e espalhamos a confusão!... Há uma tragédia na alma do brasileiro, quando ele sente que não se desdobrará mais até ao infinito. Toda a lei da criação é criar à própria semelhança. E a tradição se rompeu, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem, a língua vai morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos e fundos desejos da personalidade emudeceram, o futuro não entenderá o passado”.

Hoje, porém, posto que reaja com toda a força, com toda a energia do meu instinto patriótico, diviso, através daquela profecia, um fundo de verdade: o Brasil vai sendo transformado, não absorvido. Os inimigos não vêm em esquadras, aparelhadas belicosamente: chegam em grandes levas, que enxameiam as proas dos transatlânticos, vêm dos países regurgitantes, sanem do aperto das grandes cidades e, como sofreram toda a sorte de torturas, desde o frio, nos lajedos dos cães, até as fomes nas baiucas em que se acumulavam, às dezenas, confundindo os hálitos e os gemidos; desde a afronta dos poderosos até o desprezo dos próprios parentes mais aquinhoados pela fortuna, ou vindo o nome do Brasil e, talvez, lendas que ficaram dos venturosos tempos do ouro, demandam ansiosamente a terra do sol e das flores, onde não há invernos que transam nem miséria que mate, onde sobram campos aos pastores e ainda existem regiões inteiramente virgens, nem trilhadas nem vistas por homens civilizados, onde só caminham hordas de bugres e feras fremem, ao luar, em manadas sanguinárias.

Chegam, são acolhidos pelo clima tépido, que é uma carícia natural, respiram, a largos pulmões, o puro ar das florestas, dessedentam-se nas límpidas águas dos arroios que murmuram, contemplam os grandes rios, admiram, extasiados, as borbulhantes cachoeiras e, contentes com o que vêm, dão graças a Deus pela redenção e vão imediatamente tratando do estabelecimento, que é o primeiro passo para a conquista.

Fazem-se colonos e, como já conhecem a miséria, trabalham ambiciosamente, acorçoados pela fertilidade. Há casa, o mealheiro é comum, e como a família vive com sobriedade, os lucros crescem, em pouco tempo.

O fazendeiro, ao contrário, habituado ao fausto, à vida pródiga, não soma as despesas e, à medida que a crise aumenta, vai dissipando com mais largueza, como para atordoar-se. O seu dinheiro transfere-se do cofre para as arcas dos colonos, empilhando-se até o dia em que ele se encontra sem vintém e assediado pelos avaros trabalhadores que lhe sugaram a fortuna.

Esse é o dia trágico, o dies irae: o senhor abandona a propriedade absorvida pela hipoteca, os colonos tornam-se pequenos proprietários e começa a expansão na terra.

Os berços lá estão ao fundo das casas — são os novos homens. Onde, antigamente, chorava, em farrapos, o crioulinho nu, filho do escravo, vage agora o bambino rosado e louro, abençoado por este sol admirável. Vai-se a língua cruzando — vocábulos exóticos ressoam estranhamente em frases portuguesas, é a lenta invasão da palavra; já se não ouve o ressoo soturno dos tambores nagôs; agora é o estrepitar das castanholas, ou o sonoro adufar nas soalhas dos pandeiros napolitanos.

Nos terreiros de congada dança-se a tarantela e as tradições brasileiras vão desaparecendo. Pouco a pouco uma nova raça surge e a humílima e dessorada geração, enfraquecida pela abastança desordenada, cede aos sadios o terreno, como os romanos da decadência cederam aos robustos bárbaros.

Mas o caldeamento se fará sem prejuízo da Pátria — a nação não perecerá, porque os que vão nascendo, à medida que os pais enriquecem e aformoseiam a terra, vão-lhe ganhando afeição, amam-na e, começando por defenderem a casa, acabam defendendo a fronteira e quando, desaparecido o último decadente, viver, rija e formosa, a nova gente, sobre esse dilúvio, como o Espírito de Deus nas águas da catástrofe, há de pairar a língua, a doce língua portuguesa, enriquecida, sem dúvida, com expressões adventícias, e baixando sobre a terra a raça que há de ficar, a Pátria reaparecerá mais bela, mais graciosa e mais rica, pronta para todas as sementeiras, como reapareceu o mundo depois dos quarenta dias de calamidade, tendo como prova de aliança não o íris fulgurante, mas a bandeira auriverde, que é o símbolo da nacionalidade.

O que se está realizando — é possível que eu veja como otimista — é a lei da seleção e não uma conquista — os fortes hão de prevalecer e queira Deus que assim seja, para glória da Terra e orgulho dos nossos filhos.

A raça desanimada que aí está, essa é que não pode subsistir. Homens que choram em presença do perigo não merecem as honras do triunfo.

Venham os novos brasileiros, apareça e domine a gente nova e robusta.

Foram os bárbaros que renovaram o mundo ocidental: venceram, mas foram assimilados pelos vencidos e, para fazer a assimilação das hordas que chegam, basta-nos o nosso Sol.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...