A frecha da Mizarela
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
O vale de Arouca, esguio e
fertilíssimo, é quase completamente fechado em forno por serrania alterosa, que
o estrangula e cinge de perto, deixando-lhe apenas das bandas de oeste um como
respiradouro a fornecer-lhe comunicação fácil com o país circunjacente. Ao
norte a serra do Gamarão, por leste o monte cônico da Mó, e a serra da Freita
ao sul, parece erguerem-se aprumadas e vigilantes, como esculcas ciosos do
riquíssimo tesouro que na profundidade das suas faldas tão galhardamente
ocultam.
E é realmente um tesouro
aquele vale! Não há no Minho torrão, por mais mimoso, que o iguale na pujança e
na frescura. — Vai-o regando a todo o comprimento o rio Arda, abundante e suave
no deslizar de suas mansas águas, e oriundo de dois riachos, que partindo das
eminências a leste de Arouca, a tornear a vila, logo abaixo se confundem
irmãmente em um só.
Quem pelo mês de julho visitar
esta porção das margens do Arda, coradas de um verde tão viçoso e tão salutar,
conhece-se entranhadamente deliciado; robustece-se-lhe o corpo e encanta-se-lhe
o espírito. Toma-o um desejo ardente de se confundir com aquela natureza tão
livre e tão robusta, em que a seiva revoluteia num turbilhão vigoroso e
fecundo, animando mil seres alegres e refeitos, como as crianças criadas nos
fartos regalos da abundância e no conchego macio dos carinhos das boas mães.
As hastes de milho, achegadas
e compactas, enchem largos campos, erguendo triunfantes ao ar as suas bandeiras
loiras, como se se preparassem para uma batalha colossal... por entre elas põem
a espaços manchas de um verde mais viril os sobreiros, os amieiros e os
salgueiros, por cujos troncos as vides trepam amorosamente, ou de cuja rama se
deixam lânguidas descair... traçando a capricho por entre o milho suas finas
Unhas sinuosas, também as árvores de fruto ostentam o seu colorido atraente e
festivo, ao passo que desparzem na atmosfera vivos aromas apetitosos... lá mais
para a orla dos campos, já junto às abas do monte, abundam formosíssimos os
castanheiros, com a sua corpulência copada e espessa e o seu tom verde escuro
inimitável, esbatido na clara poalha da mais encantadora inflorescência... mais
para a orla ainda, e já na encosta, aprumam-se os pinheiros esguios e
rumorosos, e as carvalheiras ásperas e sombrias. Por entre tudo isto, o rio
sinuoso e escuro, lembrando um arabesco gravado numa esmeralda. E ferindo
docemente o ouvido, um murmúrio confuso e fresco, efeito da labuta prodigiosa
de tanta existência ali em plena elaboração.
Subamos agora a qualquer das
serras adjacentes: que contraste, que pobreza, que desolação! Aí os terrenos
são magros, secos, maninhos; é agreste o ambiente; a vegetação é enfezada e
efêmera. Os principais contrafortes da serra do Gamarão, de natureza xistoide,
(cem uma cor atrigada escura; apenas salpicada de regro nas mais abruptas
vertentes, onde rompem do terreno grandes massas de pedra, em folhetos, lascada
e luzidia, quais se foram as extremidades seculares, postas a descoberto, de
algum gigantesco livro petrificado.
Esta monótona cor escura do
solo cortam-na em parte os pequenos e graciosos grupos de flores campanudas,
cor magenta, da urze queiró; a flor
labiada do tojo, amarela como a gema de um ovo; e mais raras vezes a brilhante
flor branca do sargaço, com as suas cinco pétalas dispostas em larga corola,
recolhendo lascivas os orvalhos da manhã. Esta mesma vegetação, única na serra,
é pouco abundante e vigorosa. Dos serros arredondados e lisos alonga-se
desolada a vista do viandante, a um e outro lado, sem descortinar mais que a
solidão agreste da montanha; nas vertentes o esqueleto pardacento e descarnado
de um ou outro castanheiro, vítima da moléstia; e apenas nos vales estreitos e
profundos uma diminuta porção de campos de milho, lutando custosamente contra a
hostilidade do meio em que os
trouxeram a vegetar.
Na Freita é maior ainda a
aridez. Aqui o subsolo é granítico; agrupam-se a espaços, em disposições
caóticas, enormes pedregulhos, musgosos e negros, que o tempo tem ido
desbastando sensivelmente, e que parece terem sido reunidos com algum misterioso
intuito por mãos de gigantes sobrenaturais. Por vezes um só penedo, espontâneo
dólmen, carcomido e tosco, ereto no ápice de um morro, e cujas inúmeras laminazinhas
de mica brilham como diamantes, quando ridente o sol as ilumina, parece um
trono gigante, para o gênio das selvas trabalhado pelo gênio das tempestades.
Cobrindo os flancos, vegeta a urze; nos planaltos superiores, onde empoça um
tanto a água, crescem os fetos rústicos, algumas gramíneas alpestres, e essa relva
miudinha e rasteira, verdadeiro manjar para os gados, sobre cujas folhas
delicadas de sonho o orvalho se deposita em grânulos de prata.
Numa criadora manhã de julho
de 187..., um dos pastores desse tempo, mocetão quando muito dos seus dezoito
anos, divagava com o rebanho pelos altos da Vala e do Arressaio, entre os quais
discorre apertada a ribeira de Gilde, afluente do Arda. Eram cinco da manhã. O
sol dourava já o cume das eminências, arrancava da face polida das lousas
cintilações de aço, e perolava as lágrimas de orvalho recolhidas na corola das
florinhas silvestres. Murmurando obscuro, o regato serpeava pelo vale ainda
imerso na sombra, como se fosse a despertar; e uma viração áspera e fresca
agitava levemente as urzes, a segredar-lhes desses mistérios incompreensíveis
com que a Natureza celebra de contínuo a sua comunhão universal... Um marco
geodésico, em alvenaria, meio esboroado, atestava ali esta parva birra do homem
em nivelar, em despoetizar quanto é acidentado, irregular e belo.
Sentado de encontro a ele, o
nosso pastor cismava vagamente, perdido nessa vaga alheação dos solitários; e
de quando em quando lá ia uma pedra contra alguma rês mais arredia:
— Eh! aqui, dourado!
E que belo quadro o do rebanho!
Os cordeirinhos, nédios, alvadios e mansos, pausadamente tosquiavam do solo a
mesquinha vegetação. Flanqueando-se amorosamente, soltando a espaços a toada
resignada de um balido, no olhar velado e doce a expressão compungente de
vítimas sem recurso, na enriçada alvura da lã uma imagem fidelíssima de neve
recém-caída, morosos e cabisbaixos, pisando, leves como garças, o terreno
debaixo dos seus pés pequeninos, formavam com o bistre convulsionado da serra
uma deliciosa harmonia de contorno e de cor. Eram a mansidão realizada, a
humildade inconsciente e passiva, a descuidosa escravidão.
Por entre eles destacavam no
tamanho e na cor os machos, os chibos, de ordinário pernaltas e negros, com os
chavelhos enfeitados e longos chocalhos pendentes do pescoço. Uns Lovelaces
caprinos. Presunçosos e foliões, irrequietos, vivos, turbulentos, saltitavam de
contínuo, quebrando com a petulância de seus lestos movimentos o tardo vaguear
do resto do rebanho.
Em torno da manada, enormes
cães felpudos zelavam-lhe cuidadosamente a integridade.
...Voltando ao pastor. Era de
compleição ampla e robusta, um primitivo luso. O arcabouço proeminente e sólido
tinha-o coberto por uma carnação vigorosa, se bem que depauperada pela
deficiência da alimentação; a tez rugosa e tostada acusava a ação prolongada do
suão das montanhas; e a obliquidade do tronco à frente proviera-lhe do hábito
de galgar continuamente desníveis consideráveis. Tinha a testa curta, o cabelo
áspero, intonso e cor das barbas do milho, e o olhar entre sonhador e alvar.
Cismava, perdido numa como contemplação mística e indefinida, algum
inconfessado rapto de amor... devaneava, como esses visionários ascetas, que no
cume aguçado das serras entreveem e adoram muitas vezes brancas aparições
celestiais. Vestindo uma grosseira camisa de estopa, arremangada, por sobre a
qual se abotoavam franzidas umas toscas calças de saragoça, arregaçadas também,
descalço, ao lado o chapéu de palha, com a cabeça pendida, as pernas em arco e
os braços trigueiros e angulosos abandonados sobre os joelhos, cismava no que
quer que fosse de puro, desinteressado e alto. Os olhos, meio cerrados,
impediam que a crua luz do exterior fosse ofuscar o suavíssimo encanto que lhe
vivia na alma; e decerto os seus pensamentos eram tão alvos como a lã das
ovelhas que guardava.
Nestes duros recessos da
serrania há ainda muito sentir lavado e bom. O verde que cobre os serros alpestres, não é o das pestilentas
podridões modernas, mas sim o da oxigenada esperança; produze-o a clorofila,
dão o vírus; não embrutece, aviventa;
não dissolve, regenera. Essa meretriz sedutora, — a Civilização, — ainda não
tem estradas a macadame que a conduzam a perverter os montes, molemente
reclinados no seu landau.
Surdira a este tempo do sul
uma rapariga perfeitaça e louçã, com um cesto à cabeça, que se dirigia veleira
pelo caminho aberto na montanha: era a padeirita de Gondra, que todos os dias
ao romper da alva marchava para Arouca, a abastecer-se de pão trigo, e agora
regressava com ele, no desempenho da sua recovagem diária e matutina.
O caminho, ao aproximar-se do
marco geodésico, passava-lhe sensivelmente a leste, e ia derivando depois pela
encosta, sumindo-se breve, até alcançar no fundo o curso da ribeira. Ao avançar
por ele, a moça devia ser avistada do alto, mas por alguns minutos apenas; e o
pobre pastor nem provavelmente daria fé que uma alma cristã, como a sua, ia
passando tão perto dele e cortando a solidão.
Mas que fenômeno foi este?...
Súbito o rapaz erguia o tronco, estouvadamente, cravava com fervor o olhar na
moça, e por um lento movimento de cabeça aí vá de acompanhar-lhe com os olhos
avidamente o caminhar. Com os olhos não digo bem: com a alma... tão exclusiva e
ardente era a sua preocupação!
De pescoço estendido, órbitas
dilatadas, e já abria os braços como que na expetativa de um amplexo
ardentemente desejado. Antes que pudesse sentir o leve ruído dos passos da
padeirinha, pressentira-a, adivinhara-a; e agora, à sua aproximação, parecia
que ia lançá-lo contra ela uma corrente magnética invisível.
A rapariga avistou-o de longe:
não manifestou a menor surpresa, qual se houvesse notado um fato com que
contava já... e ao encarar com aquela postura perdidamente ansiosa, aquela
estranha e potente fascinação, sorriu entre desdenhosa e contente, continuando
no mesmo andar o seu caminho.
Quando ela passava mesmo em
frente ao marco, o rapaz ergueu-se de salto. Aventurou um passo à frente, deu
em coçar a nuca, presa de um grande embaraço, e por fim lá arriscou com voz
trêmula e contrita esta saudação:
— Ora salve-a Deus.
santinha...
— Salve-o Deus, irmão... —
correspondeu a moça, sem parar.
— Vai pra longe assim tão
carregada?
— Agora vou, vou pira perto;
pra Gondra vender este pão.
— Se lhe não faz minga que eu
a ajude, levo-lhe o cesto até à ribeira.
— Ah! não é preciso... eu
posso bem.
E. estas palavras ditas com um
modo sacudido, ingrato, dobrou o passo e breve desapareceu.
O rapaz deu com o punho um
forte murro na testa, e o seu rosto contraiu-se num ranilhamento de desespero.
Duas furtivas lágrimas rolaram-lhe quentes pela face, brilharam súbito
iluminadas pelo sol, e foram insinuar-se-lhe envergonhadas aos cantos dos
lábios descaídos.
Ele amava doidamente a
padeirinha. Há dias que a tinha visto da primeira vez, quando ela, como agora,
regressava do seu tráfego habitual; e desde então nunca mais deixara de àquela
hora vir sempre ao alto da vala, para a ver passar. Nunca lhe tinha ainda falado.
Se não fora o instintivo temor do ridículo, teria, sim, ajoelhado já ante ela.
tomado por um impulso de religiosa adoração... Um acobardamento inominável, o
receio de uma acolhida de desagrado estrangulavam-lhe a voz na laringe e apenas
lhe permitiam o exprimir-se pelo olhar. E essa linguagem eloquentíssima
percebera-a ela de há muito; por isso ria vaidosa, sempre que topava com aquele
símbolo vivo de uma afeição, por ela inspirada, e que na sua despreocupação
juvenil a tonta sobranceiramente desprezava.
Neste último dia, qualquer
congestivo ímpeto havia quebrado o encarto e rompido com a mudez. — Meu Deus! e
pra quê!?... Pra que lhe falara ele?... Um acolhimento seco, frio, quase
hostil, fora a justa punição do seu atrevimento! — Devia adorá-la em silêncio,
encerrar-se com ela num redil imaginário e puro, erguer-lhe altares pela serra,
que cobriria de flores... devia recortar no céu alto, pela noite, a sua imagem,
na floresta simbólica das estrelas... mas dirigir-lhe a fala... que falta de
respeito, que profanação! Como a sua voz soara arreliativa e áspera a par com a
voz daquele anjo tão argentina e tão pura! E ela agastara-se por força; na
manhã seguinte tomaria outro caminho, embora mais longo ou custoso, só para não
passar por ali. Num momento de irreflexão imperdoável afugentara ele o seu
ideal, fizera tombar a árvore dos seus sonhos...
Na madrugada seguinte, lá
estava no alto da Vala, não quieto e manso como na véspera, à espera que o
coração lhe desse rebate da aproximação da moça, que tinha como certa; mas
desassossegado, rabioso, trêmulo, trepando aqui, descendo acolá, a perscrutar
com a vista os montes em torno, a mergulhá-la persistente em todos os raminhos
que podia descobrir. E enquanto ele assim analisava sôfrego, um a um, os
atalhos, as carreteiras, as simples vias de pé posto, receoso de que por algum
deles lhe escapasse, sem ser visto, o seu amor, dava saída à sua
sobre-excitação por meio de pedradas e berros descompostos, dirigidos
inconscientemente ao rebanho, e que iam fazer esvoaçar espavoridas as ninhadas
de perdizes novas.
A moça era natural de Hondra e
filha de um pobre lavrador, velho e avaro, insociável como um serrano e manhoso
como um aldeão. De há muito viúvo, habitava com a filha uma pequena casa
rústica, de pedra solta e telha vã, tão tisnada no exterior pelos embates do
tempo, como enegrecida e imunda no interior. Pousava a habitação na margem
direita da ribeira de Gondra, no mais profundo do angustiado vale, rodeada por
um escasso campo de milho e de vinha, que, com aquela, constituía toda a
riqueza imóvel do lavrador. Era delicioso o sítio, pelo seu recato e amenidade
excepcionais. Uma longa fila de amieiros, anediados e corretos, vestia as
margens do ribeiro; e as latadas anosas e espessas cobriam grandes porções do
solo com uma bela sombra bucólica, da qual o conforto, impagável nas horas
calmosas do estio, uma viração amena e constante vinha ainda solícita aumentar.
Nas traseiras da choupana
alteava-se em declive suave até uma altura enorme a serra estéril de São Pedro.
Pela frente, um pontão rústico de troncos de pinheiro, sobre os quais
assentavam transversalmente quatro tábuas também de pinho, dava serventia ao
caminho de Gondra para a vila; e para lá da ribeira aprumava-se abrupta a serra
do Arressaio, com as encostas aspérrimas eriçadas de bastos pinheirais. O
horizonte era aqui limitadíssimo, diminutíssima a convivência humana.
Pois neste berço repousado e
puro, neste oásis em que a Natureza
empregara pródiga os seus encantos mais ingenuamente atraentes, nascera e fora
criada a padeirita do nosso conto. Órfã de mãe desde os oito anos, passava de
ordinário o tempo a trepar às encostas, a pescar peixe miúdo na ribeira, e a
dormitar sobre os montões de tojo seco, amontoados para estrume em frente da
habitação... quando não ia fazer o caldo e talhar a boroa para o jantar, ou
cuidar dos erguios galináceos da sua reduzida criação.
Deslizava para ela estupidamente
a vida, neste apertado círculo de sensações e conhecimentos, neste vale ermo,
tristonho e só, até aonde não penetrava nem a fúria das tempestades, nem o
arruído das paixões. Das pessoas, conhecia seu pai, que passava horas sobre
horas sentado à varanda, silencioso, a fabricar redes e chumbeiras, e um ou
outro indivíduo de Gondra, que acaso por lá se demorava alguns minutos a
cavaquear; das coisas, nada mais que o rudimentar arranjo da casa e o cultivo
da vinha e o fabrico do pão. Era imensamente ignorante; mas o seu temperamento
nervoso, ávido de comoções, de bulício, de coisas novas, dava-lhe não raro
dolorosas aguilhoadas na curiosidade, que a punham seismadora e triste, porque
antevia no mundo o que quer que fosse de belo, de ruidoso, de vívido e
semblante, que lhe era defeso conhecer e gozar.
Por vezes, ao ouvir falar das
maravilhas do Porto, da sua Torre dos Clérigos, do seu Palácio, da estranha
animação da sua Ribeira, questionava importunamente o pai com um chuveiro de
interrogações, em que insofrida e sôfrega pululava toda a sua ânsia de saber. O
pai porém, em vez das almejadas respostas, em troco das descrições pitorescas
que ela solicitava, para lhe alimentarem a doida imaginação, soltava-lhe quatro
pragas violentas e recaía na mudez habitual:
— Raios parta os do Porto mal'as
suas grandezas! Esses, sim, toem dinheiro, andam em bons carros, gozam quanto é
bom. Nós cá os da serra, — com mil diabos! — nem lenha temos muitas vezes no
inverno, nem uma pinga pra nos aquecer!
Quando a rapariga fez quinze
anos, disse-lhe o pai solenemente: — que ela estava uma mulher feita, que lhe
era preciso trabalhar, que o amanho da casa lhe deixava muita hora livre para
outra ocupação; que ele era pui ire e o pouco que tinha lhe custara muita baga
de suor para o ganhar; que a preguiça nem o próprio Diabo a queria, e que nada
havia como o trabalho para dar saúde e vigor. Depois explicou-lhe, com uma
solicitude manhosamente interesseira, que já lhe tinha arranjado em que se
empregar... não havia agora em Gondra padeira, que fosse diariamente a Arouca,
e ela podia aproveitar. Era um negócio rendoso, um dos melhores de por ali, um
ovo por um real; não deixava menos dos seus seis vinténs por dia, e chegava
mesmo em certos dias a oito e até a pinto. — Que lhe deitasse a mão.
— Ela era nova e bonita,
haviam de atrever-se-lhe... mas que não tivesse sustos; fosse séria e desempenada,
que ninguém seria capaz de a molestar.
A filha aceitou radiante a
proposta da nova ocupação. Ir ver Arouca e o seu convento! Que ventura! E
depois, aquelas casas caiadas, com caixilhos de vidraça, e a estrada a
macadame, alva como fita de nastro, a ziguezaguear, a brilhar... e os homens,
os fidalgos de lá, que por força
haviam de ter outras caras, menos anegradas e rugosas que as dos de Gondra, e
que haviam de andar mais asseados... não teriam as mãos ásperas, nem andariam
descalços a mostrar uns pés gretados e negros, mais esquinados que a face de um
penedo! E o respirar livremente o ar sadio e corrente das grimpas das
montanhas; e o descortinar daí muitas terras, muitas, destacando ridentes a
alva mancha da casaria dentre o negro esverdeado dos campos de cultura. E mil
outras miragens de felicidade, alumbrando a sua imaginação insaciável,
acendendo o seu temperamente irrequieto e buliçoso.
Na véspera da primeira partida
para Arouca, de puro exaltada, nem dormiu. As primeiras viagens foram para ela
uma revelação; descerraram-lhe ante os olhos deslumbrados as delícias de um
viver inteiramente diverso daquele que tinha levado até ali. Foram a princípio
de desgosto as suas mais fortes sensações. Conhecia-se como que humilhada e
estranha no meio daquela gente: daquelas mulheres, que ela odiava, trajando
chitas de cores vistosas, calçando leves chinelinhas, cingindo o pescoço em
muitas voltas com pesados grilhões de ouro... aqueles homens, a quem ela se
entregaria de bom grado, sem escolha, e que decerto nem para ela atentavam
sequer.
Nasceu-lhe pouco a pouco o
desejo de se polir, de se igualar às da vila. Breve comprou um pequeno espelho
circular, de moldura de chumbo, que lhe custou trinta réis. Pôs algum cuidado
no arranjo da pocilga que lhe servia de quarto de dormir: a cama, que
antigamente permanecia todo o dia em indiscreto desalinho, agora era logo feita
de manhã, a manta escrupulosamente alisada e a dobra do lençol muito igual. A
sua pesada saia de burel trocou-a por uma de chita, amarela com floritas
rubras; os pés, outrora escodeados e sujos por costume, cuidou de lavá-los
quotidianamente com esmero; o tronco, airoso e cheio, apertou-o com um
coletinho de pano, curto e decotado, sem mangas, puxando à frente os seios, e
que deixava entre ele e a saia escapar-se em gracioso lufo a camisa atrigada de
pano cru; sobre o seio vinham sobrepor-se as duas pontas de um grande lenço
lúbrico de ramagens apoplécticas; e um outro lenço, quase todo branco, passado
pela frente da testa, ia atar-se-lhe sob a nuca, emoldurando deliciosamente
aquela cabeça bem quadrada e varonil, que no seu nariz grande e direito, no seu
queixo em ponta, na sua tez morena e ligeiramente tostada, apresentava um misto
brunido e arrogante, de romano e de peninsular. O farto cabelo castanho, que
usara cortado curto na frente, puxado ã testa, rente aos olhos, anediava-o
agora ao espelho cuidadosamente, apartava-o ao centro, e alteava-o ao lado em
duas marrafas muito macias, ligeiramente ondeadas.
Como arrebique inseparável e
querido, duma tênue fita de veludinho pendia-lhe sobre o colo uma cruz de ouro,
que lhe legara sua mãe.
Não se efetuou sem rudes
repreensões do pai esta metamorfose, que ele chamava urna tonteria, um
desperdício, e que lhe cerceava grandemente os magros proventos da recovagem do
pão. A verdadeira tonteria da filha percebi-a ele de mais; compreendia em que
resvaladios escolhos poderia ir esbarrar aquela súbita liberdade intempestiva,
concedida a uma organização tão finamente impressionável, e tão inexperiente,
tão cega ainda. Não lhe importava porém; o seu cinismo exclusivista de avarento
apenas se preocupava com o dinheiro que ela do trabalho lhe podia colher.
Enquanto a honra, dignidade, pudor, chamava-lhes lerias e ria como um descrente.
E não faltavam de fato a rapariga
as graçolas, os grossos requebros, os ditos picantes, que ela saboreava
sôfrega, qual se foram a nata do galanteio, a mesma quinta-essência do amor.
Consumiam-na vagos desejos, laborava-a uma quente e deliciosa ânsia, que ela a
si mesma não sabia explicar... e que a faziam caminhar pela serra horas e
horas, até submeter essa perturbadora emoção pelo cansaço aqueles intensos pruridos
da sua vigorosa organização.
Por um dia claro e limpo de
maio, ao sair de Arouca, em vez de tomar diretamente para o alto da Vala.
subira para leste, ao Serro do Cão, eminência da qual lhe haviam dito que se
avistava o Porto. Olhou na direção de noroeste, e o seu agudo olhar de
montanhesa lá enxergou a custo, muito ao longe, uma nódoa esbranquiçada e
extensa, que se aquatintava pela convexidade dos montes azulados, a espaços
coroada pelos rolos de fumo das fábricas, meio extinta na vaga nebulosidade da
atmosfera, e cortada quase ao centro por um fino prumo esguio, que como um dedo
gigante se elevava ao céu. Era a Torre dos Clérigos.
— Que alta que deve ser! E que
grande a cidade!... Quem me dera lá!
Na manhã em que André tão
alterado a esperava, ela voltou à aldeia pelo caminho costumado. Vinha em
demanda do pecureiro. Comprazia-lhe aquela santa persistência do rapaz;
afagava-lhe o amor próprio. Não que ela o quisesse pra nada! era um serrano, um
perfeito urso, um lobo... Mas nem por isso deixava de ir todos os dias receber
gostosa o tributo daquela afeição puríssima, coquetear com o que desdenhava. —
Era mulher.
Neste dia foi ela a primeira a
romper o silêncio:
— Bons dias, amigo... Então,
todas as manhãs por aqui?
— Ando com as minhas reses,
bem vê... — redarguiu, balbuciando, André, a quem atarantara ainda mais a
ostensiva afabilidade da moça do que a sua aparição.
— Amanhar a vida, faz bem...
Então até mais ver!
E dispunha-se maliciosamente a
partir. André porém, animado pela graça da rapariga, e disposto além disso a
explicar-se de vez com ela, deu alguns passos, e com uma voz lamuriante:
— Pois já se vai?... —
Quere-me alguma coisa?... Talvez comprar algum pão?
— O meu pão, merina, não se
amassa nas vilas; é duro como a lousa e negro como os meus calções... Diga-me
só a sua graça, se faz favor.
— Sou Ana, para o servir. —
lesta respondeu a padeira, com uma inopinada desenvoltura que denotava nela a
intenção de gaiatar.
— Ora, Aninhas, eu quisera...
— Suspendeu-se, com os olhos pregados no chão.
— Quisera... desempache, diga
lá! — E pousando o cesto, sentou-se graciosamente no solo, com as pernas
encruzadas e o rosto fito em André, numa patente expressão provocadora.
Queria incitá-lo a falar, a
explicar-se... André teve-se mudo uns segundos, dominado por um embaraço
invencível; mas afinal, sacudindo a cabeça resoluto:
— Diga-me, Aninhas...: queria
ter muitas terras, muito gado, muita riqueza?
— Oh! se queria... e vocemecê?
— Eu lhe digo... De acolá, — e
apontou para sudoeste. — de acolá daqueles pinocos da Serra Grande avistam-se
quatro bispados. Pois eu queria-os todos meus, só pra uma coisa... pra lhos dar!
— Ora agora, que lembrança!
Vocemecê está a reinar...
— Não estou, Aninhas...
Queria-os, pra lhos dar; pra mais nada, não!
— Fracos desejos tem você!
— Engana-se! O meu desejo é
grande... tão grande que até me acobardo de lho confessar.
— Você não é homem... Se eu o
percebo... Qual é o seu desejo, vamos a saber?
Então André, num amoroso
ímpeto indomável, caiu de chofre junto de Ana, ajoelhado sobre ambos os
joelhos, e apertando-lhe brutalmente os braços e as mãos, exclamou:
— O meu desejo és tu!...
Quero-te, como a loba quer aos filhos, como o musgo quer ao penedo a que se
apega, como Deus quer a todos nós!
A ladina da Ana, que começara
o diálogo a brincar com o amor de André, sentia-se agora comovida, invadia-a o
simpatismo da paixão. Ia quase a balbuciar também uma frase apaixonada... Mas
de repente lembrou-se das casas caiadas de Arouca com caixilhos de vidraça, dos
homens que não andavam descalços, que usavam uns chapéus lustrosos e macios,
que cheiravam a um ignorado aroma, superior ao montesinho dos anhos e dos cabritos; e a sua natureza azougada e
doida reagiu presto contra aquele impulso honesto e bom.
Pondo-se rapidamente em pé e
sobraçando o cesto, retorquiu em tom de mofa:
— O rapaz ensandeceu por
força! Dizer-me que me quere!... Ora não há!
E já arrogante e estouvada se
afastava, enquanto repunha o cesto sobre a cabeça, fazendo na sua frente pular
medrosos os coelhos, e trauteando de arreganho:
Menina não seja vária,
Recolha o seu pensamento,
Que beijos são impostura,
Palavras leva-as o vento...
Na madrugada seguinte, — uma
formosa manhã de estio, fresca e limpidíssima, em que o azul claro e pardacento
da atmosfera parecia a visão de um lago coberto por finíssimo véu de gaze, — o
fidalgo da Mó saiu a caçar, a pé, de chumbeira a tiracolo, clavina de dois
canos ao ombro, charuto ao canto da boca, seguido por um criado e precedido de
três famosos perdigueiros. Baixo, amplo e refeito, acusava uma sã organização
hercúlea, tomada indubitavelmente e o berço, mas depois a largo trecho
desenvolvida por frequentes exercícios físicos, por uma alimentação abundante e
substanciosa, e pela tonificante ginástica do pulmão nas grandes altitudes.
Caçava quase diariamente, por hábito, mesmo no maior rigor do inverno; muitas
vezes se entregava de gosto aos mais rudes trabalhos rurais; e tinha um grande
cavalo rosilho, que o levava em duas horas de Arouca a Oliveira de Azemeis.
Trigueiro, olhos e cabelo
negros, nariz rasgado e viril, mãos largas e nodosas, espáduas horizontais,
todo o seu corpo tinha bem evidente a rubrica da força e da pujança. Era
fogoso, atrevido, femieiro e brigão. Contando agora 30 anos, desde os 15 que a
sua vida se contava por uma ininterrompida série de desaguisados, de cruezas,
de sem razões, de estupros, de lutas armadas em feiras, de cacetadas
distribuídas por arraiais. Era forte como um touro e imberbe como um
adolescente, devasso como um colegial e irascível como a tormenta.
As pobres aldeãs temiam-no; e
muitas, mesmo a tremer... o adoravam, porque irresistivelmente as hipnotizava o
diabólico poder dos seus grandes olhos negros. Ele gabava-se com o mais cínico
desplante de que as havia “de levar a eito.” No seu rosto movediço e radiante
desabotoava-se invariável, como uma flor vermelha de maio, a vaidade do triunfo
nunca desmentido.
Não são raros pela província
estes exemplares repugnantes de conquistadores do surro e do tomanco, espécie
de pachás de baixa estofa, porventura resquício ainda da dominação muçulmana no
país.
Nessa manhã, pois, ao dobrar o
cotovelo que faz o novo caminho municipal, quando torneia o morro de Santa
Luzia, encontrou-se o fidalgo com Aninhas, que descia para Arouca ao tráfego
costumado. Agradou-lhe; pôs-se a segui-la e a disparar-lhe um vivo tiroteio de
A baixos e triviais galanteios, que a faziam corar e estremecer. — Não que a gentil
moçoila valia bem um bando de perdizes, co'a breca!
A rapariga estugava o passo,
açodada, vermelha como uma romã, enquanto os três perdigueiros, brejeiramente
apostados em lhe tornar maior o embaraço, a cercavam solícitos e brincões, com
a sua costumada afabilidade cosmopolita, saltando, correndo, lambendo-lhe as
mãos, atravessando-se-lhe na frente, passando-lhe por entre as pernas, quase a
porto de a fazerem cair. O velho criado esse ficara para trás, discretamente.
Poucos minutos volvidos, o
fidalgo, em vez de continuar na pegada da moça, seguia já mas era ao lado dela,
falando sempre, tentando recortar suas frases galantes... enquanto Ana, com um
turbilhão nos ouvidos, sacudida por um latejar das fontes sonoro como bater de
martelo, e por umas palpitações do coração fortes como punhadas, quase não
percebia palavra do torpe arrazoado daquele Romeu de viela, daquele Tartufo
sertanejo.
Mas enfim, como não há mal que
se não acabe, quis a boa fortuna da
moça que essas poucas palavras, de longe em longe percebidas, fossem exatamente
as que lhe revelavam que o seu requestador era um fidalgo, — que honra!... — o
fidalgo da Mó, — que deslumbramento! Conhecia-o por tradição, e há muito que
ardia em desejos de o conhecer pelos seus olhos. Aí o linha! O acaso fornecia-lhe
agora inesperadamente a ocasião.
No fim de contas, por que não
havia de ele gostar dela?... E gostar dum modo diferente daquele por que
quisera às outras; isto é, gostar dela lá do fundo, mesmo lá de dentro?...
Podia muito bem ser; ela tinha perfeições para isso. — E que bom, as outras a
morderem-se depois de inveja, todas raivosas!...
Principiou então de olhá-lo,
primeiro a medo, espaço a espaço, furtivamente, depois com mais confiança e
maior insistência, depois naturalmente já; e ao que procurava afetar nos
adernares, no andar, mais glacial indiferença, os olhos, — esses traidores! —
febrilmente vidrados pelo alvoroço, ora se acendiam como dois carbúnculos, como
se tivessem o sul no fundo, ora se lhe embaciavam languidamente num delicioso esfumado
de manhã primaveril.
No entanto, sempre muda.
Já muito perto da vila, quando
o fidalgo, depois de lhe haver reiterado mais uma vez os seus protestos de amor
dosimétrico, seguidos por umas quaisquer propostas equívocas, lhe perguntou, um
pouco impacientado: — Então, que me diz? — retrucou-lhe ela, sem irar, num tom
gaiatamente desdenhoso:
— Digo que Deus é bom
senhor...
E desatou a correr, a
refugiar-se na vila.
Ele estacou, retesou as pernas
numa atitude triunfante, como quem antegostava mais uma vitória, e, radioso
como um girassol, acendeu segundo charuto aos do primeiro, enquanto monologava:
— Mais hoje, mais amanhã, és
minha!
Por aqueles dias mais
cercanos, André não conseguiu tornar a ver a padeira. Esta, sabendo-o no alto
da Vala, torcia e alongava de caso pensado o caminho, para o não encontrar. O
pobre pastor sabia-o, poderia ir aguardá-la em alguns dos pontos do seu
roteiro, desejava mesmo ardentemente fazê-lo... mas falecia-lhe o ânimo. Por
quê? Porque a amava perdidamente.
A timidez é o diagnóstico
certo do amor. Quem ama. receia... Teme desmoronar ao primeiro movimento ousado
ou indiscreto esse fugacíssimo castelo ideal e santo, que só um afeto lídimo
sabe elevar com pedaços da própria alma.
Assim, taciturno e selvagem, o
nosso André lá ia curtindo medonhamente o seu exaspero, como na estreita célula
um condenado a prisão perpétua.
A termos que, do dia de São
Bartolomeu, quando principiaram a decampar das serras a leste de Arouca os
pecureiros da serra da Estrela, dando por terminada a sua costumada migração de
todos os anos, o nosso André, de puro alucinado, juntou-se a eles com o seu
rebanho, deixou resoluto o berço natal e partiu também.
CAPÍTULO 2
Volvido um ano, volveram os
gados a povoar as serras, desde a Freita ao Gamarão.
Ás onze horas da manhã de um
dos dias de julho mais calmosos e estivais, era eminentemente pitoresco e
original o quadro que se desenrolava no planalto do cume da serra da Freita.
O calor ardia asfixiador, causticante;
a calma pousava completa e profunda. As folhas do sargaço, imóveis,
demonstravam que nem aquela branda viração, peculiar da serra, soprava por
então. Os penhascos de granito, — escuros e luzentes revérberos, — expeliam
umas lufadas incandescentes e abrasadas, como se foram eles mesmos possantes
focos de calor; o próprio solo queimava; e a atmosfera pesada e pardacenta
lembrava a fumarada que exala uma vasta fornalha em ação.
Numa das vertentes do monte
vegetava enfezado e raquítico um pequeno pinheiral, atravessado por um fio de
água, delgado e escasso, que em breves cintilações de estrelas ia derivando
rápido e esquivo, em de sombra e de frescura. Sob os pinheiros, os gados
aglomerados, em pé e dispostos em círculos numerosos, com os focinhos
tocando-se, aguardavam pacientes e taciturnos que, passada a hora da sesta,
passassem também os maiores rigores da insolação.
Não longe alguns pecureiros,
em grupo animado e amigo, de palestra saboreavam sua parca refeição de centeio
e queijo, regado generosamente por um belo vinho verde, que a clássica borracha
de couro guardava e distribuía.
— Este aro não hei de eu
deixar de ir. — dizia o mais novo, — à Frecha
a Mizarela, que pelos modos, sempre é coisa pra se ver.
— Ah! bô: pois não é!... —
obtemperou gravemente um homúnculo dos seus 40 anos, magro e felpudo como um
velho bode. — A água a cair de uma altura daquelas, lá no fundo, e a levantar
uma poeira branca, que um homem não sabe se é água, se é fumo!
— E diz que não se ouve em
cima barulho nenhum.
— Nem raça... Aquilo é coisa
do diabo, a água a cair tão de alto e sem se sentir!
— E que altura tem a queda?
— Há opiniões... — disse,
entrando na palestra, um terceiro conviva. — Mas eu cá por mim, que estive na
cidade e já vi a tal corrente de água, mesmo de baixo, onde muito pouca gente
vai, entendo que tem mais altura do que a Torre dos Clérigos.
— Abaixo, abaixo... — corrigiu
com ar sentencioso o velhote, — não chega a tanto; só por se ver muito de perto
é que parece assim. Que o mais, não tem mais altura que as torres da Sé. — E
levou negligente à boca o gargalo da borracha, com gulosos movimentos da
laringe, afilada e longa como um bico de avestruz.
— Mas diga-mo, seu Manel,
então pode-se descer até lá ao fundo, até onde cai a água?... — interrogou,
prosseguindo, o rapaz, cuja novel imaginação se excitava fantasiando e
exagerando as maravilhas da queda da Mizarela.
— Pode, pode, mas com muito
trabalho; e pra isso é preciso levar de Albergaria das Cabras alguém que saiba
guiar a gente. Não que aqueles pedregulhos não são de fiar! Escorregam que nem
unto! Aquilo é tudo coisa dos mouros, ou do diabo, que o diga eu...
— Você assusta-me, seu Manei!
— Susto tinhas tu, se souberas
tudo, meu rapaz...
— Susto há de ele ter, quando
vir o palácio do rei, — acudiu o da Torre dos Clérigos, cortando com a navalha
um naco de queijo. — Olha: são três cavernas, de boca negra como a cauda de um
grilo, umas à ilharga das outras e tapadas. Viveu ali um rei mouro, que deixou
numa um monte de ouro, e noutra um tesouro de diamantes, que chegava pra
comprar toda a cristandade...
— Eh! na, pai! e por que é que
ainda ninguém roubou tamanha riqueza?...
— Porque na terceira gruta
fechou o alma do dianho uma camada de peste, capaz de matar inteira a população
da terra! E como ninguém sabe onde está a peste, nem onde estão o ouro e os
diamantes, também ninguém se aventura ao roubo, com medo de se enganar e vir a
empestar todo o mundo, em vez de enriquecer!
— Olha que tal...
— Se lá fores, rapaz, —
aconselhou ainda, — não deixes de ver também a cadeira e a tina do rei...
mas não entres numa, nem te assentes na outra! Olha que ficavas tolhido pra
toda a tua vida.
— Rapazes!.. — aqui exclamou o
velho Manuel,— lá vem o André.
Das bandas do Arressaio
surdira efetivamente no alto o ingênuo pastor, vermelho, ofegante, o suor pela
fronte em camarinhas e o cabelo empastado nas fontes e na testa, corredio e
úmido.
— Viva o André! Por pouco te
não ficavas lá hoje...
— Anda pra sombra depressa! que
o sol escalda.
— Bebe uma pinga pra
refrescar.
E formou-se em torno do moço
um grupo interessado e amigo.
André, porém, com os lábios
vincados e a pálpebra torva e sinistra, arremessou-se perdidamente contra o
solo, sem que nem de leve correspondesse ao solícito empenho da comitiva em o
confortar.
Fez-se no grupo um movimento
simpático de verdadeira compaixão.
— Mas novas colheu, coitado!
— Quem toma amores por gado veleiro, é a sorte
que tem!
— Chega-te pra aqui, André!
— Agora chego... deixem-me!
— Pois tu não hás de tragar nem beber nada?
— Tragar já eu hoje traguei,
mas foi coisa pior que fel... — Fez pausa e depois, numa explosão de exaspero:
— Qu'a Aninhas fez o seu gosto no passado inverno... — E, com a voz a
estrangular-se-lhe na laringe... — Deu-se ao fidalgo da Mó!... Ah! mal haja a
hora em que eu a conheci.
— Deixa-te de maluqueiras,
rapaz... — aconselhou paternalmente o velho. — Que a leve o diabo e má-los
fidalgos, que não servem senão pra nos desonrar. Dá um pontapé de vez nestas
recreadas, que não sabem senão perder-se e mais a quem lhes quere bem! Tens por
esse mundo muita moça honrada e linda que possa gostar de ti.
— Mas de nenhuma gosto eu,
como desta, que era mesmo uma perdição! Como o coração me batia e me chamava
pra ela! como me encantavam aqueles olhos baixelos e negros, aquela graça de
lebre, aquele ar soberano de águia, aquelas ancas roliças como um velo de lã!...
E, prostrado no abandono da
suprema desesperança:
— Eu morro, eu morro se a não
torno a ver!
E chorava e arrepelava-se como
criança mimada a quem contrariaram pela primeira vez.
— Diabo! a mulher deu-lhe por
força coisa a beber... — observou crendeiramente o mais moço, a meia voz; e
depois, mais alto: — E quem te deu a nova?
— Foi o traste do pai! Eu lá atinei
com a casa, a casinha do vale. Ia com o sangue alvoroçado... batiam-me as
fontes com alma... via tudo vermelho... e até me custava a enxergar o caminho.
O velho estava à varanda, a fazer muito sossegado uma rede. Olhou-me
desconfiado e quase como a um inimigo. Perguntei-lhe pela filha; respondeu-me
desvergonhadamente: “Não sei dela; foi-se para o fidalgo da Mó, o Sr.
Antoninho, que a andava a requestar. Fez a asneira, lá se avenha... Ah! o
fidalgo tem dinheiro; pior que ela estou eu, que quase não tenho vintém.” Esta
fala do velho caiu-me como uma martelada no coração... Abalei dali pra fora
como doido, e vim direitinho pra aqui.
Depois de uma curta pausa
acrescentou, com os punhos cerrados e no olhar a expressão do mais entranhado
rancor:
— Ladrão de fidalgo!... hei de
matá-lo! Juro-o por alma de meu pai. E a ela... — emendando com suavidade, — a
ela, abraçava-a agora enternecido e perdoava-lhe tudo, se tivesse aquela de a
ver.
— Forte parvoeira lhe deu! —
disse de banda para o grupo, entre compungido e satírico, o Manuel.
A esse tempo ouviu-se uma voz,
argentina e fresca, não longe sentidamente a descantar:
Tudo que há triste no mundo
Tomara que fosse meu,
Para ver se tudo junto
Era mais triste do que eu...
Para André o mesmo foi
ouvi-la, que reconhecer a voz de Aninhas naquele melodioso gorjeio.
Ergueu-se súbito. Notando que
o som vinha das bandas do sul, correu a ascender ao morro por esse lado; e após
um segundo de pausa no alto, durante o qual mergulhara ávido a vista na eu
costa da outra banda, exclamou transportado:
— Aninhas! tu aqui!?...
E precipitando-se pela
vertente, desapareceu.
Os outros pecureiros,
suspensos e atônitos, interromperam a um tempo a sua refeição modesta e
correram prestes empós de André, alguns empunhando ainda na destra o navalhão
de ferro e na sinistra um alentado paco de pão.
Chegados também ao alto,
descortinaram então da vertente que se lhes desdobrava sob os pés, e a meio
declive, o vulto de André, parado, extático, em muda e exclusiva adoração, de joelhos
dobrados, as mãos erguidas; e no fundo, mesmo sobre a linha que as águas
pluviais seguem durante a invernia, Ana, imóvel e ostensivamente retraída,
sentada sobre um calhau. Estava magra e descorada; tinha as feições apagadas, a
cor da cera, os membros alquebrados, pendentes, sem vigor.
Denotava a fome e o
sofrimento. No seu todo doentio e triste estampavam-se eloquentemente as
privações e o desalento. Vestia uma saia de lã escura, ainda em bom uso, com
seu folho largo e tufado, mas destingido sem dúvida pelo roçar aturado das
urzes e dos penedos; uma jaquetinha curta e elegante não conseguia ocultar-lhe
a opulência do seio, que se arredondava numa pujança de curvas pouco vulgar
para tão tenra idade; ao colo a mesma cruz de sua mãe; e das orelhas pendiam-lhe,
triunfantes e buliçosas, pesadas arrecadas de ouro, despedindo intensas
irradiações... O preço do seu amor!
Passeava alheadamente a vista
em torno, com os olhos abertos num desmesuramento idiota. Ao descortinar André,
nem deu fé a princípio, nem mesmo o reconheceu.
— Ana, minha Aninhas! ainda
bem que te encontro. Não podia viver sem ti! — prorrompeu André, primeiro quase
a medo; depois com crescida exaltação. — Anda pra mim, minha santa, anda pra
mim, que te hei de querer como ninguém. Tu não estiveste com o fidalgo, pois
não?... Dize-me, dize-me que não!
— Estive, estive, por meu
mal... — respondeu Ana, pausadamente, com um tom demorado e grave, quase sem
consciência do que respondia, antes cuidando que pensava em voz alta. — E agora
pago bem caro a minha tola presunção! Por tanto querer a mim mesma, por
desatender quem me queria bem, acabei por me perder... Esse fidalgo gozou-se,
depois pôs-me fora de casa, como um traste inútil, acompanhando o seu desprezo
com o insulto de algumas libras... Aí está o meu passado. O presente é a
vergonha. O futuro qual será?...
— O futuro, Aninhas, é o meu
amor e o meu perdão! — explodiu apaixonadamente André. E aproximava-se da moça,
humilde, receoso, quase suplicante.
Ela pregou demoradamente os
olhos nele, passou ambas as mãos pelo rosto, qual se houvera despertado naquele
instante, e expandindo-se numa alvorada brilhante de reabilitadora alegria,
exclamou, erguendo-se e caminhando para o pastor:
— Ah! meu André, e por que te
não escutei eu, há um ano? Pra que escarneci de ti?...
Mas André transfigurara-se de
repente. Apenas a padeirita se levantou, que ele retrocedeu, apavorado e
nojoso, no semblante a expressão do asco mais estreme e da mais bravia
repugnância. Notara no ventre de Aninhas uma proeminência característica, nos
quadris um alargamento anormal, que lhe acusavam nitidamente o estado de
gravidez. Então o seu feroz instinto serrano irritado dilatou-se, ruidoso e
seco como o estouro de uma bomba de dinamite:
— Ai! o que te fez o fidalgo!
E como a desgraçada
empalidecesse, baixando a cabeça submissa, a confessar tacitamente a falta de
que a acusava:
— Espera que eu te ensino,
cabra! — rugiu num ímpeto de cólera ferina.
E uma pedrada, arrojada por
mão vigorosa e certeira, presto iria ferir a pobre moça, se os da comitiva não
houvessem corrido a tempo, a colher em flagrante a fúria do pastor.
Pelo decurso do dia e durante
toda a noite seguinte, André não pôde sossegar. Baralhavam-lhe o bronco cérebro
uma aluvião de ideias, atropeladas, confusas e mal distintas, que o traziam raivoso,
perdido e louco pelos dédalos tenebrosos da incerteza e da dor. Ora lhe
crepitavam no encéfalo as mais sanguinárias tenções de vingança; ora se lhe
diluía a vontade no lago tépido e dormente da bonança e do perdão. Abalado por
uma excitação extraordinariamente tensa e vibrante, beliscado por desejos quase
inconcebíveis, por apetites bestiais, movido de brutas e leoninas intenções,
assim divagou o desconfortado pastor durar te a interminável noite, ao acaso,
sem rumo certo, num perdimento de si mesmo, numa como anulação da inteligência
e da vontade que o deixava joguete passivo das paixões que o roíam.
Sem dar por tal, torneara toda
a serra por oeste, seguindo a Souto-Redondo e Quintela; daí ascendera a Vendanova,
depois a Albergaria das Cabras, e ao alvorecer do dia pousava inconsciente no
alto da Mizarela, depois de ter percorrido à-toa paia cima de 15 quilômetros.
Aqui, o seu corpo alquebrado rolou para sobre um penedo artisticamente cavado e
trabalhado pelos séculos, espécie de cadeira gigante, com seu assento, encostos
para os braços e espaldar, e que os serranos na sua ingênua linguagem
imaginativa chamam a cadeira do rei.
O sítio é ermo, árido e triste
a mais não poder. Ante ele o espírito humano, de natureza sociável, recua
pávido e como que se arreceia daquela imponente solidão.
A cadeira rodeiam-na pedregulhos ásperos e apinhados como vagas
petrificadas, onde a custo vegeta a urze queiró;
para o sul quebra-se abruptamente o solo num declive quase vertical, eriçado
também de penhascos enegrecidos, pontiagudos e nus; ao fundo da quebrada,
despenham-se em catarata de mais de 60 metros as nascentes do rio Caima, vasto
lençol de água desdobrando-se em catadupas frementes sobre o granito, e que,
furiosamente espadanando, após a queda, nas multíplices anfractuosidades
daquela rocha, naquele caleiro estreitíssimo e cerrado, sem que o som do seu
impetuoso cair chegue aos ouvidos do observador do alto, assume um ar misterioso
e fantástico, o que quer que seja de estranho e Sobrenatural. Para além da
torrente, um outro contraforte aspérrimo e fraguento e um outro morro estéril
continuam monotonamente o anterior.
Entesada vegetação de
urgueiras, de fetos e de carvalhas borda as margens profundíssimas do rio, como
se amedrontados os próprios vegetais evitassem tão desoladora estância. Enormes
nódoas circulares de musgo negro lá estão marcando como anátemas a cor
pardacenta e uniforme do granito puído pelas águas. Longas lascas de pedra,
verticais e salientes, destacam-se do terreno aprumado dos montes, cortando-o
de alto a baixo, a parecerem espinhas dorsais a descoberto de gigantescos
animais desconhecidos. Uma paisagem, em suma, soturna, temerosa e alpestre como
poucas, digna verdadeiramente de ser admirada.
Pois este sítio medonho e
lúgubre, duma beleza agreste incomparável, mergulhava-se por aquela antemanhã
num véu de penumbra igualitária e fresca, que esbatia os contornos das coisas
num esfumado dantesco, indefinido. André não via nada; apenas, um pouco
acalmado pelo frescor da madrugada, punha em ordem os seus tumultuários
pensamentos. Terminara por decidir-se a procurar Ana, pedir-lhe perdão da sua
ira intempestiva da véspera e coabitar, até mesmo casar com ela. Fazia-lhe,
afinal, pequeno vinco na sua rude e bronca dignidade a cópula frutificada de
Ana com o fidalgo. Se o fato se houvesse dado com um da sua igualha, então,
sim! O caso era outro. Porém fora um fidalgo, um indivíduo de mais alta esfera,
de cujo crime o alcance ele mal chegava a perceber. E, sobretudo, amava
perdidamente a rapariga. Razões todas estas de sobra para apagar com a esponja
da tolerância a falta por ela cometida.
Tem tão escassa sensibilidade
a consciência do serrano, come circunvoluções o seu cérebro. E romba demais
para destrinçar bem uns tais e tantos casuísticos melindres de honra e de
moral, que os homens da cidade respeitam e observam, a maior parte das vezes,
valha a verdade, por mera e artificial conveniência.
Decidido por fim a topar com
Ana a todo o custo, ergueu-se André e pôs-se a caminho, descendo a encosta, a
descantar, numa reminiscência dolorosa:
Tudo que há triste no mundo
Tomara que fosse meu...
Súbito vê ante si, da outra
borda da catarata, ereta na borda de um rochedo largo e cavado, aquela que ele
ia pedir ansioso aos mais apartados recessos da serrania... Era a mesma Ana que
estava ali assim, em pé, na atitude de quem escuta, quase sobre a face das
águas, que lhe formavam um pedestal majestoso e casto, e recortando opacamente
o seu vulto cheio e ondulante no puríssimo azul caro da atmosfera, ainda mal
desperta para o dia que despontava.
Ela também torneara a sara,
mas por leste, em oposição a André. Chorara lágrimas de sangue; e caíra por
fim, extenuada de forças e cansada de espírito, na tina do rei. O entoar da sua quadra da véspera despertara-a... e
agora se erguia a inquirir quem tão ternamente a cantava por ali.
Ao descortinar da outra banda
do rio André, derivou-lhe pelo rosto uma tristeza indefinível, confrangeu-se
toda de vergonha e pavor:
Ele porém:
— Ana, meu anjo, perdoa-me,
sim?!... Eu quero-te muito, bem sabes. A minha ação de ontem foi filha do meu
amor. Mas passou; tudo esqueci... tudo te perdoei! Vem pra mim!... Olha: lá
embaixo, naquelas grutas, ao par da peste há muito ouro e muito diamante. Eu
irei lá furtá-los; o coração há de encaminhar-me bem... E depois, quero bolá-los
aos teus pés... Mas não, não; pra quê diamantes, riquezas, fidalgarias?... Na
pobreza viveremos melhor. Os nossos destinos hão de ser irmãos como duas
frautas repetindo harmoniosas o mesmo ar. Que felicidade que vai ser a
nossa!... Vem pra mim, anda! não te acobardes, meu amor!
Cada frase apaixonada de André
pungia na alma de Ana como um punhal... porque lhe entremostrava risonhas
miragens de ventura, que ela em sua consciência entendia não dever
compartilhar. Por isso redarguiu, no tom do mais calmo desespero:
— Estou muito suja pra ti...
vou-me lavar primeiro!
E de um ímpeto convulso
arremessou-se à torrente.
Ao choque do obstáculo, as
águas esparrinharam numa coroa puríssima de prata e de aljofres, e logo
envolveram em alva e fresca mortalha, salpicada por um instante de raras pintas
de sangue, o cadáver daquela mártir, que foi veloz despedaçar-se de encontro à
penedia.
...Um raio de sol quase branco
veio então iluminar a torrente, enquanto, batidas por ele, as codornizes
entoavam despreocupadas os seus primeiros cantos matutinos.
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