A filha do patrão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
O Comendador Ferreira esteve
quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela escada abaixo com um pontapé
bem aplicado. Pois não! um biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira nem
beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era
o que faltava! que ele tivesse durante tantos anos a ajuntar dinheiro para
encher os bolsos a um valdevinos daquela espécie, dando-lhe a filha ainda por
cima, a filha, que era a rapariga mais bonita e mais bem educada de toda a Rua de
São Clemente! Boas!
O Comendador Ferreira limitou-se
a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um “Não, meu caro senhor”, capaz de
desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.
O pobre rapaz saiu atordoado,
como se realmente houvesse apanhado o puxão de orelhas e o pontapé, que
felizmente não passaram de tímido projeto.
Na rua, sentindo-se ao ar
livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões: — Pois há de ser minha, custe o
que custar! — Voltou-se, e viu numa janela Adosinda, a filha do Comendador, que
desesperadamente lhe fazia com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos
dentes a unha do polegar, que muito claramente queria dizer: — Babau! — e, como
eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Club. Era
domingo e havia corridas.
O Comendador Ferreira, mal o
rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os
tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou o puxão de orelhas
destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos pacientes leitores,
apanhou-a, coitadinha e naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu,
exagerou a dor física produzida por aquela grosseira manifestação de cólera
paterna. Seguiu-se um diálogo terrível:
— Quem é aquele pelintra?
— Chama-se Borges.
— De onde o conhece você?
— Do Clube Guanabarense...
daquela noite em que papai me levou...
— Ele em que se emprega? que
faz ele?...
— Faz versos.
— E você não tem vergonha de
gostar de um homem que faz versos?
— Não tenho culpa; culpado é o
meu coração.
— Este vagabundo algum dia lhe
escreveu?
— Escreveu-me uma carta.
— Quem lha trouxe?
— Ninguém. Ele mesmo atirou-a
com uma pedra, por esta janela.
— Que lhe dizia ele nesta
carta?
— Nada que me ofendesse;
queria a minha autorização para pedir-me em casamento.
— Onde está ela?
— Ela quem?
— A carta.
Adosinda, sem dizer uma
palavra, tirou a carta do seio. O Comendador abriu-a, leu-a, e guardou-a no
bolso.
Depois continuou:
— Você respondeu a isso? A
moça gaguejou.
— Não minta!
— Respondi, sim senhor.
— Em que termos?
— Respondi que sim, que me
pedisse.
— Pois olhe: proíbo-lhe,
percebe? pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a esse peralvilho! Se me
constar que ele anda a rondar-me a casa, ou que se corresponde com você, mando
desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador
Ferreira), e a você, minha sirigaita... a você... Não lhe diga nada!...
II
Três dias depois desse
diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia do seu Borges, e o rapto foi
auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho
nas corridas do Derby. Até hoje ignora o Comendador que o seu fiel cozinheiro
contribuísse para tão lastimoso incidente.
O pai ficou possesso, mão não
fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos;
não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer o seu profundo desgosto.
E teve razão, porque, passados
quatro dias, Adosinda e o Borges, vinham, à noite, ajoelhar-se aos seus pés e
pedir-lhe a bênção, como nos dramalhões sentimentais.
III
Para que o conto acabasse a
contento da maioria dos meus leitores, o Comendador Ferreira deveria perdoar
aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente
as coisas não se passaram assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada ao
egoísmo.
Com a resolução de quem
longamente se preparara para o que desse e viesse, o Comendador tirou do bolso
um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando:
— Seu biltre, ponha-se
imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!...
A esse argumento intempestivo
e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o
arrebatassem asas invisíveis.
O pai foi fechar a porta,
guardou o revólver, e, aproximando-se de Adosinda, que, encostada ao piano,
tremia, como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca
manifestara em ocasiões menos inoportunas.
A moça estava assombrada;
esperava pelo menos a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe, e
habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço encheram-na
de confusão e pasmo. O Comendador foi o primeiro a falar:
— Vês? disse ele, apontando
para a porta: vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um
miserável, que foge diante de um cano de um revólver! Não é um homem!...
— Isso ele é, murmurou
Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a
palidez do rosto.
O pai sentou-se no sofá.
chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos, e, num tom
de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que esquecesse do homem que a raptara, um
troca-tintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais; pintou-lhe um
futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante
casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no
fundo era o melhor, o mais carinhosos dos pais.
No fim da catequese, a moça
parecia convencida de que nos braços de Borges não encontraria realmente toda a
felicidade possível; mas...
— Mas agora... é tarde,
balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco.
— Não; não é tarde, disse o
Comendador; conheces o Manoel, o meu primeiro caixeiro do armazém?
— Conheço: é um enjoado.
— Qual, enjoado! É um rapaz de
muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a
pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma
perspicácia que o levará longe, hás de ver!
E durante um quarto de hora o
Comendador Ferreira gabou as excelências do seu caixeiro Manoel. Adosinda ficou
convencida.
A conferência terminou por
estas palavras:
— Falo-lhe?
— Fale, papai.
IV
No dia seguinte o Comendador
chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:
— Seu Manoel, estou muito
contente com os seus serviços.
— Oh! patrão!
— Você é um empregado zeloso,
ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.
— Oh! patrão!
— Não sou ingrato. Do dia
primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento
além do ordenado.
— Oh! patrão! isso não faz um
pai ao filho!...
— Ainda não é tudo. Quero que
você se case com a minha filha. Doto-a com cinquenta contos.
— Mas eu sou um homem sério,
continuou o patrão; a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha
filha... não é virgem.
O noivo espalmou as mãos,
inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em
bico, e, respondeu com um sorriso resignado e humilde:
— Oh! patrão! ainda mesmo que
fosse, não fazia mal.
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