A “Dona Branca”
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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No dia 6 de outubro de 1891,
quando o senhor Vieira, às sete horas da manhã, pôs o chapéu para sair, dona Catarina,
sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da gravata:
— Sabes de uma coisa? Mana
Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao Teatro Lírico.
— Que ideia!
— Aí vens tu! Vai-se embora a
companhia e eu não assisto a um único espetáculo, podendo ouvir a Dona Branca
de graça!
— Mas, filha, não te lembras
que dia é hoje?
— É terça-feira.
— E então?
— E então?
— Pois não sabe que às
terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do compadre?
— Quem te diz que não vás ao
teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus hábitos e as tuas
impertinências; foi a mim e não a ti que convidou.
— Mas...
— Olha, eu vou jantar com ela
nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro; acabado o espetáculo, ela
traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não gastas um vintém, nem te
incomodas.
— Bem sei, mas não é bonito
uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido.
— Mas com sua irmã... e com o
marido de sua irmã...
— Bom, bom, vai; não quero que
me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho.
O senhor Vieira saiu, foi
tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à casa, já dona Catarina
tinha essa ter com a irmã.
O pobre homem ficou muito
aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa bela senhora com quem se
casara em 1885 e contava dez anos menos que ele.
Tinha quarenta e quatro
invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para perceber que dona
Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa amizade com que
ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse discreto
sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e dispepsias, maus
humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em sua mulher e
estimava-a deveras. Sentia-se feliz.
Mais feliz seria, entretanto,
se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina sofria por vezes longos
acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo sozinho n larga cama de
casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando, irrequieta, nervosa, sem poder
dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e o marido, atribuía-os às
ausência da prole.
— Decididamente, falta uma
criança nesta casa!
Depois daquele jantar de
solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas foi para casa do
compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete.
— Bravos! cá está o nosso
homem! exclamou o compadre e exclamaram mais dois amigos da vizinhança, que se
achavam à espera do parceiro. Vamos ao vício!
Os quatro companheiros
sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia noite. O senhor Vieira
ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com tanta sorte.
À meia noite, depois do chá
com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a condução na esquina. Passados
uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em sentido contrário, e parou para
fazer saltar o Lamenha, que era vizinho paredes meias do compadre.
— Olá! a estas horas, seu
Lamenha? perguntou o senhor Vieira. Já sei que vem do Lírico; foi ouvir a Dona
Branca.
— Ora deixe-me com a Dona
Branca! Se soubesse...
— Então a ópera não presta?
— Não sei; o espetáculo não
passou do começo!
— Ora essa! Por quê?
— No fim do primeiro ato o
público das torrinhas chamou à cena o empresário para ferrar-lhe uma pateada,
não sei porque motivo. O empresário não quis vir. O público zangou-se. A
polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira, que rolo!...
— Deveras? perguntou o outro
empalidecendo.
— Os soldados da polícia
acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os globos dos candeeiros
partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão medonha, as senhoras tinham
chiliques e soltavam gritos...
— As senhoras?... Meu Deus!...
e a minha!...
— Há muita gente ferida, e não
será para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre!
— E minha mulher que foi a
este espetáculo!...
— Sua senhora? Não a vi. Só vi
sua cunhada, a Dona Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca!
— Pois estavam juntas!...
Felizmente aí vem o bonde... Quem sabe se não vou encontrá-la morta? Eu bem que
queria que não fosse à tal Dona Branca! Ora esta!...
E o senhor Vieira tomou o
bonde, sem mesmo se despedir de Lamenha.
Imaginem o desassossego com
que o pobre diabo fez a viagem de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí
tomou um tílburi. O cocheiro confirmou a informação do Lamenha, acrescentando
que tinham morrido duas senhoras, sendo uma de susto.
Ao passar pela Guarda Velha, o
senhor Vieira notou que o Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. Chegou
à casa, e expetorou um grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: dona
Catarina dormia tranquilamente, envolvida no seu lençol.
O marido despiu-se em silêncio
e deitou-se ao lado da senhora. Ela despertou:
— Ah! és tu?
— Então, minha senhora, que me
diz de Dona Branca?
— É uma ópera muito bonita.
— Hein?
— O último ato principalmente,
acrescentou dona Catarina com muita convicção.
O senhor Vieira sentiu o
sangue lhe subir à cabeça, mas conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera
tinha sido bem cantada.
— Perfeitamente cantada,
respondeu ela, mentindo como só as mulheres sabem mentir.
— E não houve novidade durante
o espetáculo?
— Nenhuma. O Gabrielesco
esteve sublime!
— O Gabrielesco? No último
ato?
— Em todos os atos. É um
tenorão!
— Está bem.
— Aí está você amuado! Eu por
seu gosto não saía de casa, não me divertia, vivia metida entre quatro paredes!
Que homem!...
Ele resmungou uns sons
inarticulados; não respondeu.
— Será possível que o Lamenha
me enganasse? pensava o marido. Não; — e o cocheiro do tílburi?...
O senhor Vieira passou, talvez
pela primeira em sua vida, uma noite completamente em claro. Ergueu-se logo ao
amanhecer, saiu, convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia
separou-se para sempre de dona Catarina.
Na terça feira seguinte, o
senhor Vieira não faltou ao voltaretezinho do compadre.
Quando este lhe perguntou: —
Então?... que foi isso?... a comadre? — ele respondeu melancolicamente:
— A comadre ouvia-me dizer que
em nossa casa faltava uma criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! — Vamos
ao vício!
Nessa noite perdeu quinze mil
e oitocentos.
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