A dança dos ossos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
A noite, límpida e calma, tinha sucedido a uma tarde de pavorosa tormenta, nas profundas e vastas florestas que bordam as margens do Parnaíba, nos limites entre as províncias de Minas e de Goiás.
Eu viajava
por esses lugares, e acabava de chegar ao porto, ou recebedoria, que há entre
as duas províncias. Antes de entrar na mata, a tempestade tinha-me surpreendido
nas vastas e risonhas campinas que se estendem até a pequena cidade de Catalão,
donde eu havia partido.
Seriam nove
a dez horas da noite; junto a um fogo aceso defronte da porta da pequena casa
da recebedoria, estava eu, com mais algumas pessoas, aquecendo os membros
resfriados pelo terrível banho que a meu pesar tomara. A alguns passos de nós
se desdobrava o largo veio do rio, refletindo em uma chispa retorcida, como uma
serpente de fogo, o clarão avermelhado da fogueira. Por trás de nós estavam os
cercados e as casinhas dos poucos habitantes desse lugar, e, por trás dessas
casinhas, estendiam-se as florestas sem fim.
No meio do
silêncio geral e profundo sobressaía o rugido monótono de uma cachoeira
próxima, que ora estrugia como se estivesse a alguns passos de distância, ora
quase se esvaecia em abafados murmúrios, conforme o correr da viração.
No sertão,
ao cair da noite, todos tratam de dormir, como os passarinhos. As trevas e o
silêncio são sagrados ao sono, que é o silêncio da alma.
Só o homem
nas grandes cidades, o tigre nas florestas, o mocho nas ruínas, as estrelas no
céu, e o gênio na solidão do gabinete, costumam velar nessas horas que a
natureza consagra ao repouso.
Entretanto,
eu e meus companheiros, sem pertencermos a nenhuma dessas classes, por uma
exceção de regra estávamos acordados a essas horas.
Meus
companheiros eram bons e robustos caboclos, dessa raça semisselvática e nômade,
de origem dúbia entre o indígena e o africano, que vagueia pelas infindas
florestas que correm ao longo do Parnaíba, e cujos nomes, decerto, não se acham
inscritos nos assentos das freguesias, e nem figuram nas estatísticas que dão
ao império... não sei quantos milhões de habitantes.
O mais velho
deles, de nome Cirino, era o mestre da barca que dava passagem aos viandantes.
De bom grado
eu o compararia a Caronte, barqueiro do Averno, se as ondas turbulentas e ruidosas
do Parnaíba, que vão quebrando o silêncio dessas risonhas solidões cobertas da
mais vigorosa e luxuriante vegetação, pudessem ser comparadas às águas
silenciosas e letárgicas do Aqueronte.
— Meu amo,
decerto, saiu hoje muito tarde da cidade — perguntou-me ele.
— Não, era
apenas meio-dia. O que me atrasou foi o aguaceiro, que me pilhou em caminho. A
chuva era tanta e tão forte o vento que meu cavalo quase não podia andar. Se
não fosse isso, ao por do sol eu estava aqui.
— Então,
quando entrou na mata, já era noite?...
— Oh, se
era!... já tinha anoitecido havia mais de uma hora.
— E vosmecê
não viu aí, no caminho, nada que o incomodasse?...
— Nada,
Cirino, a não ser às vezes o mau caminho, e o frio, pois eu vinha ensopado da
cabeça aos pés.
— Deveras,
não viu nada, nada? é o primeiro!... pois hoje que dia é?...
— Hoje é
sábado.
— Sábado!...
que me diz? e eu, na mente que hoje era sexta-feira!... oh! senhorinha!... eu
tinha precisão de ir hoje ao campo buscar umas linhas que encomendei para meus
anzóis, e não fui, porque esta minha gentinha de casa me disse que hoje era
sexta-feira... e esta!... e hoje, com esta chuva, era dia de pegar muito
peixe... Oh! senhorinha!... — gritou o velho com mais força.
A este grito
apareceu, saindo de um casebre vizinho, uma menina de oito a dez anos, fusca e
bronzeada, quase nua, bocejando e esfregando os olhos, mas que mostrava ser uma
criaturinha esperta e viva como uma capivara.
— Então,
senhorinha, como é que tu vais-me dizer que hoje era sexta-feira?... ah!
cachorrinha! deixa-te estar, que amanhã tu me pagas... então hoje que dia é?...
— Eu também
não sei, papai, foi a mamãe que me mandou que falasse que hoje era sexta...
— É o que
tua mãe sabe-te ensinar: é a mentir!... deixa, que vocês outra vez não me
enganam mais. Sai daqui: vai-te embora dormir, velhaquinha!
Depois que a
menina, assim enxotada, se retirou, lançando um olhar cobiçoso sobre umas
espigas de milho verde que os caboclos estavam a assar, o velho continuou:
— Veja o que
são artes de mulher! a minha velha é muito ciumenta, e inventa todos os modos
de não me deixar um passo fora daqui. Agora não me resta um só anzol com linha,
o último lá se foi esta noite na boca de um dourado; e, por culpa dessa gente,
não tenho maneiras de ir matar um peixe para meu amo almoçar amanhã!...
— Não te dê
isso cuidado, Cirino; mas conta-me que te importava que hoje fosse sexta ou
sábado, para ires ao campo buscar as tuas linhas?...
— O quê!...
meu amo? eu atravessar o caminho dessa mata em dia de sexta-feira?!... é mais
fácil eu descer por esse rio abaixo em uma canoa sem remo!... não era à toa que
eu estava perguntando se não lhe aconteceu nada no caminho.
— Mas que há
nesse caminho?... conta-me, eu não vi nada.
— E nem
podia ver: o que lhe valeu foi não ser hoje sexta-feira, senão havia de ver
como eu vi…
— Mas ver o
quê, Cirino?...
— Vosmecê não
viu, daqui a obra de três quartos de légua, à mão direita de quem vem, um meio
claro na beirada do caminho, e uma cova meio aberta com uma cruz de pau?
— Não
reparei; mas sei que há por aí uma sepultura de que se contam muitas histórias.
— Pois muito
bem! aí nessa cova é que foi enterrado o defunto Joaquim Paulista. Mas é a alma
dele só que mora aí: o corpo mesmo, esse anda espatifado aí por essas matas,
que ninguém mais sabe dele.
— Ora
valha-te Deus, Cirino! não te posso entender. Até aqui eu acreditava que,
quando se morre, o corpo vai para a sepultura, e a alma para o céu, ou para o inferno, conforme as suas boas ou más obras. Mas, com o teu defunto, vejo
agora, pela primeira vez, que se trocaram os papéis: a alma fica enterrada, e o
corpo vai passear.
— Vosmecê não
quer acreditar!... pois é coisa sabida aqui, em toda esta redondeza, que os
ossos de Joaquim Paulista não estão dentro dessa cova, e que só vão lá nas
sextas-feiras para assombrar os viventes; e desgraçado daquele que passar aí em
noite de sexta-feira!...
— Que
acontece?...
— Acontece o
que já me aconteceu, como vou lhe contar.
CAPÍTULO 2
— Um dia, há
de haver coisa de dez anos, eu tinha ido ao campo, à casa de um meu compadre
que mora daqui a três léguas.
Era uma
sexta-feira, ainda me lembro, como se fosse hoje.
Quando
montei no meu burro para vir-me embora, já o sol estava baixinho; quando
cheguei na mata, já estava escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava
mais a vista da gente.
Já eu ia
entrando na mata, quando me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma
pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para diante. Mas fiquei
com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu, que desde criança
estou acostumado a varar por esses matos a toda hora do dia ou da noite, hei de
agora ter medo? De quê?
Encomendei-me
de todo o coração à Nossa Senhora da Abadia, tomei um bom trago na guampa que
trazia sortida na garupa, joguei uma masca de fumo na boca, e toquei o burro
para diante. Fui andando, mas sempre cismado; todas as histórias que eu tinha
ouvido contar da cova de Joaquim Paulista estavam-se-me representando na ideia:
e ainda, por meus pecados, o diabo do burro não sei o que tinha nas tripas, que
estava a refugar e a passarinhar numa toada.
Mas, a poder
de esporas, sempre vim varando. À proporção que ia chegando perto do lugar onde
está a sepultura, meu coração ia ficando pequenino. Tomei mais um trago, rezei
o Creio em Deus Padre, e toquei para diante. No momento mesmo em que eu ia
passar pela sepultura, que eu queria passar de galope e voando se fosse
possível, aí é que o diabo do burro dos meus pecados empaca de uma vez, que não
houve força de esporas que o fizesse mover.
Eu já estava
decidido a me apear, largar no meio do caminho burro com sela e tudo, e correr
para a casa; mas não tive tempo. O que eu vi, talvez vosmecê não acredite; mas
eu vi, como estou vendo este fogo: vi com estes olhos, que a terra há de comer,
como comeu os do pobre Joaquim Paulista... mas os dele nem foi a terra que
comeu, coitado! foram os urubus, e os bichos do mato. Dessa feita acabei de
acreditar que ninguém morre de medo; se morresse, eu lá estaria até hoje
fazendo companhia ao Joaquim Paulista. Cruz!... Ave-Maria!...
Aqui o velho
fincou os cotovelos nos joelhos, escondeu a cabeça entre as mãos e pareceu-me
que resmungou uma Ave-Maria. Depois, acendeu o cachimbo, e continuou:
— Vosmecê se
reparasse, havia de ver que aí o mato faz uma pequena aberta da banda, em que
está a sepultura do Joaquim Paulista.
A lua batia
de chapa na areia branca do meio da estrada. Enquanto eu estou esporeando com
toda a força a barriga do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de
ossinhos brancos, pulando, esbarrando uns nos outros, e estalando numa toada
certa, como gente que está dançando ao toque de viola. Depois, de todos os
lados, vieram vindo outros ossos maiores, saltando e dançando da mesma maneira.
Por fim de
contas, veio vindo lá, de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e
com os olhos de fogo; e dando pulos como sapo, foi-se chegando para o meio da
roda. Daí começaram aqueles ossos todos a dançar em roda da caveira, que estava
quieta no meio, dando de vez em quando pulos no ar, e caindo no mesmo lugar,
enquanto os ossos giravam num corrupio, estalando uns nos outros, como fogo da
queimada, quando pega forte num sapezal.
Eu bem
queria fugir, mas não podia; meu corpo estava como estátua, meus olhos estavam
pregados naquela dança dos ossos, como sapo quando enxerga cobra; meu cabelo,
enroscado como vosmecê está vendo, ficou em pé como espetos.
Daí a pouco
os ossinhos mais miúdos, dançando, dançando sempre e batendo uns nos outros,
foram-se ajuntando e formando dois pés de defunto.
Estes pés
não ficam quietos, não; e começam a sapatear com os outros ossos numa roda
viva. Agora são os ossos das canelas, que lá vêm saltando atrás dos pés, e de
um pulo, trás!... se encaixam em cima dos pés. Daí a um nada vêm os ossos das
coxas, dançando em roda das canelas, até que, também de um pulo, foram-se
encaixar direitinho nas juntas dos joelhos. Toca agora as duas pernas que já
estão prontas a dançar com os outros ossos.
Os ossos dos
quadris, as costelas, os braços, todos esses ossos que ainda agora saltavam
espalhados no caminho, a dançar, a dançar, foram pouco a pouco se ajuntando e
embutindo uns nos outros, até que o esqueleto se apresentou inteiro, faltando
só a cabeça. Pensei que nada mais teria que ver; mas ainda me faltava o mais
feio. O esqueleto pega na caveira e começa a fazê-la rolar pela estrada, e a
fazer mil artes e piruetas; depois entra a jogar peteca com ela, e a atirá-la
pelos ares mais alto, mais alto, até o ponto de fazê-la sumir-se lá pelas
nuvens; a caveira gemia zunindo pelos ares, e vinha estalar nos ossos da mão do
esqueleto, como uma espoleta que rebenta. Afinal o esqueleto escanchou as
pernas e os braços, tomando toda a largura do caminho, e esperou a cabeça, que
veio cair direito no meio dos ombros, como uma cabaça oca que se rebenta em uma
pedra, e olhando para mim com os olhos de fogo!...
Ah! meu
amo!... eu não sei o que era feito de mim!... eu estava sem fôlego, com a boca
aberta, querendo gritar e sem poder, com os cabelos espetados; meu coração não
batia, meus olhos não pestanejavam. O meu burro mesmo estava a tremer e
encolhia-se todo, como quem queria sumir-se debaixo da terra. Oh! se eu pudesse
fugir naquela hora, eu fugia ainda que tivesse de entrar pela goela de uma
sucuri adentro.
Mas ainda
não contei tudo. O maldito esqueleto do inferno — Deus me perdoe! — não tendo
mais nem um ossinho com quem dançar, assentou de divertir-se comigo, que ali
estava sem pinga de sangue, e mais morto do que vivo, e começa a dançar
defronte de mim, como essas figurinhas de papelão que as crianças, com uma
cordinha, fazem dar de mão e de pernas; vai-se chegando cada vez mais para
perto, dá três voltas em roda de mim, dançando e estalando as ossadas, e por
fim de contas, de um pulo, encaixa-se na minha garupa...
Eu não vi
mais nada depois; fiquei atordoado. Pareceu-me que o burro saiu comigo e com o
maldito fantasma, zunindo pelos ares, e nos arrebatava por cima das mais altas
árvores.
— "Valha-me
Nossa Senhora da Abadia e todos os santos da corte celeste!" —
gritava eu dentro do coração, porque a boca essa nem podia piar. Era à toa;
desacorçoei, e pensando que ia por esses ares nas unhas de Satanás, esperava a
cada instante ir estourar nos infernos. Meus olhos se cobriam de uma nuvem de
fogo, minha cabeça a andar à roda, e não sei mais o que foi feito de mim.
Quando dei
acordo de mim, foi no outro dia, na minha cama, a sol alto.
Quando a
minha velha, de manhã cedo, foi abrir a porta, me encontrou no terreiro,
estendido no chão, desacordado, e o burro selado perto de mim.
A porteira
da manga estava fechada; como é que esse burro pôde entrar comigo para dentro,
é que não sei. Portanto ninguém me tira da cabeça que o burro veio comigo pelos
ares.
Acordei com
o corpo todo moído, e com os miolos me pesando como se fossem de chumbo, e
sempre com aquele maldito estalar de ossos nos ouvidos, que me perseguiu por
mais de um mês.
Mandei dizer
duas missas pela alma de Joaquim Paulista, e jurei que nunca mais havia de pôr
meus pés fora de casa em dia de sexta-feira.
CAPÍTULO 3
O velho
barqueiro contava esta tremenda história de modo mais tosco, porém muito mais
vivo do que eu acabo de escrevê-lo, e acompanhava a narração de uma
gesticulação selvática e expressiva e de sons imitativos que não podem ser
representados por sinais escritos. A hora avançada, o silêncio e solidão
daqueles sítios, teatro desses assombrosos acontecimentos, contribuíram também
grandemente para torná-los quase visíveis e palpáveis. Os caboclos, de boca
aberta, o escutavam com olhos e ouvidos transidos de pavor, e de vez em quando,
estremecendo, olhavam em derredor pela mata, como que receando ver surgir o
temível esqueleto a empolgar e levar pelos ares alguns deles.
— Com
efeito, Cirino! — disse-lhe eu — foste vítima da mais pavorosa assombração de
que há exemplo, desde que andam por este mundo as almas do outro. Mas quem sabe
se não foi a força do medo que te fez ver tudo isso? Além disso, tinhas ido
muitas vezes à guampa, e talvez ficasses com a vista turva e a cabeça um tanto
desarranjada…
— Mas, meu
amo, não era a primeira vez que eu tomava o meu gole, nem que andava de noite
por esses matos, e como é que eu nunca vi ossos de gente dançando no meio do
caminho?...
— Os teus
miolos é que estavam dançando, Cirino: disso estou eu certo. Tua imaginação,
exaltada a um tempo pelo medo e pelos repetidos beijos que davas na tua guampa,
é que te fez ir voando pelos ares nas garras de Satanás. Escuta; vou te
explicar como tudo isso te aconteceu muito naturalmente. Como tu mesmo
disseste, entraste na mata com bastante medo, e, portanto, disposto a
transformar em coisas do outro mundo tudo quanto confusamente vias no meio de
uma floresta frouxamente alumiada por um luar escasso. Acontece ainda para teu
mal que, no momento mais crítico, quando ias passando pela sepultura, empaca-te
o maldito burro. Faço ideia de como ficaria essa pobre alma, e até me admiro de
que não visses coisas piores!
— Mas então
que diabo eram aqueles ossos a dançarem, dançarem tão certo, como se fosse a
toque de música, e aquele esqueleto branco, que me trepou na garupa, e me levou
por esses ares?
— Eu te
digo. Os ossinhos que dançavam, não eram mais do que os raios da lua, que
vinham peneirados por entre os ramos dos arvoredos balançados pela viração,
brincar e dançar na areia branca do caminho. Os estalos, que ouvias, eram sem
dúvida de alguns porcos do mato, ou qualquer outro qualquer bicho, que andavam
ali por perto a quebrar nos dentes cocos de baguaçu, o que, como bem sabes, faz
uma estralada dos diabos.
— E a
caveira, meu amo?... decerto era alguma cabaça velha que um rato do campo vinha
rolando pela estrada...
— Não era
preciso tanto; uma grande folha seca, uma pedra, um toco, tudo te podia parecer
uma caveira naquela ocasião. Tudo isto te fez andar à roda a cabeça azoinada, e
o mais tudo que viste foi obra de tua imaginação e de teus sentidos perturbados.
Depois, qualquer coisa, talvez um maribondo que o picou.
— Maribondo
de noite!... ora, meu amo!... — exclamou o velho com uma gargalhada.
— Pois
bem!... fosse o que fosse; qualquer outra coisa ou capricho de burro, o certo é
que o teu macho saiu contigo aos corcovos; ainda que atordoado, o instinto da
conservação fez que te agarrasses bem à sela, e tiveste a felicidade de vir dar
contigo em terra mesmo à porta de tua casa, e eis aí tudo.
O velho
barqueiro ria com a melhor vontade, zombando de minhas explicações.
— Qual, meu
amo — disse ele —, réstea de luar não tem parecença nenhuma com osso de
defunto, e bicho do mato, de noite, está dormindo na toca, e não anda roendo
coco. E pode vosmecê ficar certo de que, quando eu tomo um gole, aí é que minha
vista fica mais limpa e o ouvido mais afiado.
— É verdade,
e, a tal ponto, que até chegas a ver e ouvir o que não existe.
— Meu amo
tem razão; eu também, quando era moço, não acreditava em nada disso por mais
que me jurassem. Foi-me preciso ver para crer; e Deus o livre a vosmecê de ver
o que eu já vi.
— Eu já vi,
Girino; já vi, mas nem assim acreditei.
— Como
assim, meu amo?...
— É que
nesses casos eu não acredito nem nos meus próprios olhos, senão depois de estar
bem convencido, por todos os modos, de que eles não me enganam. Eu te conto um
caso que me aconteceu.
Eu ia
viajando sozinho — por onde não importa — de noite, por um caminho estreito, em
um cerradão fechado, e vejo ir, andando a alguma distância diante de mim,
qualquer coisa, que na escuridão não pude distinguir. Aperto um pouco o passo
para reconhecer o que era, e vi clara e perfeitamente dois pretos carregando um
defunto dentro de uma rede.
Bem poderia
ser também qualquer criatura viva, que estivesse doente ou mesmo em perfeita
saúde; mas, nessas ocasiões, a imaginação, não sei por quê, não nos representa
senão defuntos. Uma aparição daquelas, em lugar tão ermo e longe de povoação,
não deixou de me causar terror.
Contudo o
caso não era extraordinário; carregar um cadáver em rede, para ir sepultá-lo em
algum cemitério mais vizinho, é coisa que se vê muito nestes sertões, ainda que
àquelas horas o negócio não deixasse de se tornar bastante suspeito.
Piquei o
cavalo para passar adiante daquela sinistra visão que me estava incomodando o
espírito, mas os condutores da rede também apressaram o passo, e se conservavam
sempre na mesma distância.
Pus o cavalo
a trote; os pretos começaram também a correr com a rede. O negócio ia-se
tornando mais feio. Retardei o passo para deixá-los adiantarem-se: também foram
indo mais devagar. Parei; também pararam. De novo marchei para eles; também se
puseram a caminho.
Assim andei
por mais de meia hora, cada vez mais aterrado, tendo sempre diante dos olhos
aquela sinistra aparição que parecia apostada em não me querer deixar, até que,
exasperado, gritei-lhes que me deixassem passar ou ficar atrás, que eu não
estava disposto a fazer-lhes companhia. Nada de resposta!... o meu terror subiu
de ponto, e confesso que estive por um nada a dar de rédea para trás a bom
fugir.
Mas negócios
urgentes me chamavam para diante: revesti-me de um pouco de coragem que ainda
me restava, cravei as esporas no cavalo, e investi para o sinistro vulto a todo
o galope. Em poucos instantes o alcancei de perto e vi... adivinhem o que
era?... nem que dêem volta ao miolo um ano inteiro, não são capazes de atinar
com o que era. Pois era uma vaca!...
— Uma
vaca!... como!...
— Sim,
senhores, uma vaca malhada, que tinha a barriga toda branca — era a rede, — e
os quartos traseiros e dianteiros inteiramente pretos; eram os dois negros que
a carregavam. Pilhada por mim naquela caminho estreito, sem poder desviar nem
para uma banda nem para outra, porque o mato era um cerradão inteiramente
tapado, o pobre animal ia fugindo diante de mim; se eu parava, também parava,
porque não tinha necessidade de viajar; se eu apertava o passo, lá ia ela
também para diante, fugindo de mim. Entretanto se eu não fosse reconhecer de
perto o que era aquilo, ainda hoje havia de jurar que tinha visto naquela noite
dois pretos carregando um defunto em uma rede, tão completa era a ilusão. E
depois, se quisesse indagar mais do negócio, como era natural, sabendo que
nenhum cadáver se tinha enterrado em toda aquela redondeza, havia de ficar
acreditando de duas uma: ou que aquilo era coisa do outro mundo, ou, o que era
mais natural, que algum assassinato horrível e misterioso tinha sido cometido
por aquelas criaturas.
A minha
história nem de leve abalou as crenças do velho barqueiro que abanou a cabeça,
e disse-me, chasqueando:
— A sua
história está muito bonita; mas, perdoe que lhe diga, eu por mais escura que
estivesse a noite e por mais que eu tivesse entrado no gole, não podia ver uma
rede onde havia uma vaca; só pelo faro eu conhecia. Meu amo decerto tinha
poeira nos olhos. Mas vamos que vosmecê, quando investiu para os vultos, em vez
de esbarrar com uma vaca, topasse mesmo uma rede carregando um defunto, que
este defunto saltando fora da rede lhe pulasse na garupa e o levasse pelos ares
com cavalo e tudo, de modo que vosmecê não desse acordo de si, senão no outro
dia em sua casa e sem saber como?... havia de pensar, ainda, que eram abusões?
— Esse não
era o meu medo; o que eu temia, era que aqueles negros acabassem ali comigo, e,
em vez de um, carregassem na mesma rede dois defuntos para a mesma cova!
O que dizes
era impossível.
—
Impossível!... e como é que me aconteceu?... Se não fosse tão tarde, para vosmecê
acabar de crer, eu lhe contava por que motivo a sepultura de Joaquim Paulista
ficou sendo assim mal-assombrada. Mas meu amo viajou; há de estar cansado da jornada
e com sono.
— Qual
sono!... conta-me; vamos a isso.
— Pois vá
escutando.
CAPÍTULO 5
— O tal
Joaquim Paulista era um cabo do destacamento que naquele tempo havia aqui no
Porto. Era bom rapaz e ninguém tinha queixa dele.
Havia aqui,
também, por esse tempo, uma rapariga, por nome Carolina, que era o desassossego
de toda a rapaziada.
Era uma
caboclinha escura, mas bonita e sacudida como ela aqui ainda não pisou outra;
com uma viola na mão, a rapariga tocava e cantava que dava gosto; quando saía
para o meio de uma sala, tudo ficava de queixo caído; a rapariga sabia fazer
requebrados e sapateados, que era um feitiço. Em casa dela, que era um
ranchinho ali da outra banda, era súcias todos os dias; e também todos os dias
havia soldado de castigo por amor de barulhos e desordens.
Joaquim
Paulista tinha uma paixão louca pela Carolina; mas ela andava de amizade com um
outro camarada, de nome Timóteo, que a tinha trazido de Goiás, ao qual queria
muito bem. Vai um dia, não sei que diabo de dúvida tiveram os dois, que a
Carolina se desapartou do Timóteo e fugiu para a casa de uma amiga, aqui no
campo. Joaquim Paulista, que há muito tempo bebia os ares por ela, achou que a
ocasião era boa, e tais artes armou, tais agrados fez à rapariga, que tomou
conta dela. Ah! pobre rapaz!... se ele adivinhasse, nem nunca teria olhado para
aquela rapariga. O Timóteo, quando soube do caso, urrou de raiva e de ciúme;
ele estava esperando que, passados os primeiros arrufos da briga, ela o viria
procurar se ele não fosse buscá-la, como já de outras vezes tinha acontecido.
Mas desta vez tinha-se enganado.
A rapariga
estava por tal sorte embeiçada com o Joaquim Paulista, que de modo nenhum quis
mais saber do outro, por mais que ele rogasse, teimasse, chorasse e ameaçasse
mesmo de matar uma ou outro. O Timóteo desenganou-se, mas ficou calado e
guardou seu ódio no coração.
Estava
esperando uma ocasião.
Assim
passaram-se meses, sem que houvesse novidade. O Timóteo vivia em muito boa paz
com o Joaquim Paulista, que, tendo muito bom coração, nem de leve cismava que
seu camarada lhe guardasse ódio.
Um dia,
porém, Joaquim Paulista teve ordem do comandante do destacamento para marchar
para a cidade de Goiás. Carolina, que era capaz de dar a vida por ele, jurou
que havia de acompanhá-lo. O Timóteo danou. Viu que não era possível guardar
para mais tarde o cumprimento de sua tenção danada, jurou que ele havia de
acabar desgraçado, mas que Joaquim Paulista e Carolina não haviam de ir viver
sossegados longe dele, e assim combinou, com outro camarada, tão bom ou pior do
que ele, para dar cabo do pobre rapaz.
Nas vésperas
da partida, os dois convidaram o Joaquim para irem ao mato caçar. Joaquim
Paulista, que não maliciava nada, aceitou o convite, e no outro dia, de manhã,
saíram os três a caçar pelo mato. Só voltaram no outro dia de manhã, mas dois
somente; Joaquim Paulista, esse tinha ficado, Deus sabe aonde.
Vieram
contando, com lágrimas nos olhos, que uma cascavel tinha mordido Joaquim
Paulista em duas partes, e que o pobre rapaz, sem que eles pudessem valer-lhe,
em poucas horas tinha expirado no meio do mato; que não podendo carregar o
corpo, porque era muito longe, e temendo que o não pudessem encontrar mais, e
que os bichos o comessem, o tinham enterrado lá mesmo; e, para prova disso,
mostravam a camisa do desgraçado, toda manchada de sangue preto envenenado.
Mentira
tudo!... O caso foi este, como depois se soube.
Quando os
dois malvados já estavam bem longe por essa mata abaixo, deitaram a mão no
Joaquim Paulista, o agarraram, e amarraram em uma árvore. Enquanto estavam
nesta lida, o coitado do rapaz, que não podia resistir àqueles dois ursos,
pedia por quantos santos há que não judiassem com ele, que não sabia que mal
tinha feito a seus camaradas, que se era por causa da Carolina, ele jurava
nunca mais pôr os olhos nela, e iria embora para Goiás, sem ao menos dizer-lhe
adeus. Era à toa. Os dois malvados nem ao menos lhe davam resposta.
O camarada
de Timóteo era mandigueiro e curado de cobra, pegava aí no mais grosso jaracuçu
ou cascavel, as enrolava no braço, no pescoço, metia a cabeça delas dentro da
boca, brincava e judiava com elas de toda a maneira, sem que lhe fizessem mal
algum. Na hora em que ele enxergava uma cobra, bastava pregar os olhos nela, a
cobra não se mexia do lugar. Em cima de tudo, o diabo do soldado sabia um
assovio com que chamava cobra, quando queria.
A hora que
ele dava esse assovio, se havia por ali perto alguma cobra, havia de aparecer
por força. Dizem que ele tinha parte com o diabo, e todo mundo tinha medo dele
como do próprio capeta.
Depois que
amarraram bem amarrado o pobre Joaquim Paulista, o camarada do Timóteo desceu
pelas furnas de uns grotões abaixo, e andou por lá muito tempo, assoviando o
tal assovio que ele conhecia. O Timóteo ficou de sentinela ao Joaquim Paulista,
que estava caladinho, coitado!, encomendando sua alma a Deus. Quando o soldado
voltou, trazia em cada uma das mãos, apertada pela garganta, uma cascavel mais
grossa do que esta minha perna. Os bichos desesperados batiam e se enrolavam
pelo corpo do soldado, que nessa hora devia estar medonho que nem o diabo.
Então o
Joaquim Paulista compreendeu que qualidade de morte lhe iam dar aqueles dois
desalmados. Pediu, rogou, mas debalde, que, se queriam matá-lo, pregassem-lhe
uma bala na cabeça, ou enterrassem-lhe uma faca no coração por piedade, mas não
o fizessem morrer de um modo tão cruel.
— Isso
querias tu — disse o soldado —, para nós irmos para a forca! nada! estas duas
meninas é que hão de carregar com a culpa de tua morte; para isso é que fui
buscá-las; nós não somos carrascos.
— Joaquim —
disse o Timóteo —, faze teu ato de contrição e deixa-te de histórias.
— Não tenhas
medo, rapaz!... — continua o outro. — Estas meninas são muito boazinhas; olha
como elas estão-me abraçando!.. Faze de conta que são os dois braços da
Carolina, que vão-te apertar num gostoso abraço...
Aqui o
Joaquim põe-se a gritar com quanto força tinha, a ver se alguém, acaso, podia
ouvi-lo e acudir-lhe. Mas, sem perder tempo, o Timóteo pega num lenço e
atocha-lhe na boca; mais que depressa o outro atira-lhe por cima os dois
bichos, que no mesmo instante o picaram por todo o corpo. Imediatamente mataram
as duas cobras, antes que fugissem. Não levou muito tempo, o pobre rapaz
estrebuchava, dando gemidos de cortar o coração, e deitava sangue pelo nariz,
pelos ouvidos e por todo o corpo.
Quando viram
que o Joaquim já quase não podia falar, nem mover-se, e que não tardava a dar o
último suspiro, desamarraram-no, tiraram-lhe a camisa, e o deixaram aí perto
das duas cobras mortas.
Saíram e
andaram todo o dia, dando voltas pelo campo.
Quando foi
anoitecendo, embocaram pela estrada da mata, e vieram descendo para o porto.
Teriam andado obra de uma légua, quando enxergaram um vulto, que ia andando
adiante deles, devagarinho, encostado num pau e gemendo.
— É ele —
disse um deles espantado —; não pode ser outro.
— Ele!... é
impossível... só por um milagre.
— Pois eu
juro em como não é outro, e nesse caso toca a dar cabo dele já.
— Que
dúvida!
Nisto
adiantaram-se e alcançaram o vulto.
Era o
próprio Joaquim Paulista!
Sem mais
demora socaram-lhe a faca no coração, e deram-lhe cabo dele já.
— Agora como
há de ser? — diz um deles. — Não há remédio senão fugir, senão estamos
perdidos...
— Qual
fugir! o comandante talvez não cisme nada; e no caso que haja alguma coisa,
estas cadeiazinhas desta terra são nada para mim?... Portanto vai tu escondido,
lá embaixo no porto, e traz uma enxada; enterremos o corpo aí no mato; e depois
diremos que morreu picado de cobra.
Isto dizia o
Timóteo, que, com o sentido na Carolina, não queria perder o fruto do sangue
que derramou.
Com efeito
assim fizeram; levaram toda a noite a abrir a sepultura para o corpo, no meio
do mato, de uma banda do caminho que, nesse tempo, não era por aí, passava mais
arredado. Por isso não chegaram, senão no outro dia de manhã.
— Mas,
Cirino, como é que Joaquim pôde escapar das mordeduras das cobras, e como se
veio a saber de tudo isso?...
— Eu já lhe
conto — disse o velho.
E depois de
fazer uma pausa para acender o cachimbo, continuou:
— Deus não
queria que o crime daqueles amaldiçoados ficasse escondido. Quando os dois
soldados deixaram por morto o Joaquim Paulista, andava por aquelas alturas um
caboclo velho, cortando palmitos. Aconteceu que, passando por aí não muito
longe, ouviu voz de gente, e veio vindo com cautela a ver o que era; quando
chegou a descobrir o que se estava passando, frio e tremendo de susto, o pobre
velho ficou espiando de longe, bem escondido numa moita, e viu tudo, desde a
hora em que o soldado veio da furna com as cobras na mão. Se aqueles malditos o
tivessem visto ali, tinham dado cabo dele também.
Quando os dois
se foram embora, então o caboclo, com muito cuidado, saiu da moita, e veio ver
o pobre rapaz, que estava morre não morre!... O velho era mezinheiro muito
mestre, e benzedor, que tinha fama em toda a redondeza.
Depois que
olhou bem o rapaz, que já com a língua perra não podia falar, e já estava cego,
andou catando pelo mato umas folhas que ele lá conhecia, mascou-as bem, cuspiu
a saliva nas feridas do rapaz, e depois benzeu bem benzidas elas todas, uma por
uma.
Quando foi
daí a uma hora, já o rapaz estava mais aliviado, e foi ficando cada vez melhor,
até que, enfim, pôde ficar em pé, já enxergando alguma coisa.
Quando foi
podendo andar um pouco, o caboclo cortou um pau, botou na mão dele, e veio com
ele, muito devagar, ajudando-o a caminhar até que, a muito custo, chegaram na
estrada.
Aí o velho
disse:
— Agora você
está na estrada, pode ir indo sozinho com seu vagar, que daqui a nada você está
em casa. Amanhã, querendo Deus, eu lá vou vê-lo outra vez. Adeus, camarada;
Nossa Senhora te acompanhe.
O bom velho
mal pensava que, fazendo aquela obra de caridade, ia entregar outra vez à morte
aquele infeliz a quem acabava de dar a vida. Um quarto de hora mais que se
demorasse, Joaquim Paulista estava escapo. Mas o que tinha de acontecer estava
escrito lá em cima.
Não bastava
ao coitado do Joaquim Paulista ter sido tão infeliz em vida, a infelicidade o
perseguiu até depois de morto.
O comandante
do destacamento, que não era nenhum samora, desconfiou do caso. Mandou prender
os dois soldados, e deu parte na vila ao juiz, que daí a dois dias veio com o
escrivão para mandar desenterrar o corpo. Vamos agora saber onde é que ele
estava enterrado. Os dois soldados, que eram os únicos que podiam saber,
andavam guiando a gente para uns rumos muito diferentes, e como nada se achava,
fingiam que tinham perdido o lugar.
Bateu-se
mato um dia inteiro sem se achar nada.
Afinal de
contas os urubus é que vieram mostrar onde estava a sepultura. Os dois soldados
tinham enterrado mal o corpo. Os urubus pressentiram o fétido da carniça e
vieram-se ajuntar nas árvores em redor. Desenterrou-se o corpo, e via-se então
uma grande facada no peito, do lado esquerdo. O corpo já estava apodrecendo e
com muito mau cheiro. Os que o foram enterrar de novo, aflitos por se verem
livres daquela fedentina, mal apenas jogaram à pressa alguns punhados de terra
na cova, e deixaram o corpo ainda mais mal enterrado do que estava.
Vieram
depois os porcos, os tatus, e outros bichos, cavoucaram a cova, espatifaram o
cadáver, e andaram espalhando os ossos do defunto aí por toda essa mata.
Só a cabeça
é que dizem que ficou na sepultura.
Uma alma
caridosa, que um dia encontrou um braço do defunto no meio da estrada, levou-o
para a sepultura, encheu a cova da terra, socou bem, e fincou aí uma cruz. Foi
tempo perdido; no outro dia a cova estava aberta tal qual como estava dantes.
Ainda outras pessoas depois teimavam em ajuntar os ossos e enterrá-los bem. Mas
no outro dia a cova estava aberta, assim como até hoje está.
Diz o povo
que enquanto não se ajuntar na sepultura até o último ossinho do corpo de
Joaquim Paulista, essa cova não se fecha. Se é assim, já se sabe que tem de
ficar aberta para sempre. Quem é que há de achar esses ossos que, levados pelas
enxurradas, já lá foram talvez rodando por esse Parnaíba abaixo?
Outros dizem
que, enquanto os matadores de Joaquim Paulista estivessem vivos neste mundo, a
sua sepultura havia de andar sempre aberta, nunca os seus ossos teriam sossego,
e haviam de andar sempre assombrando os viventes cá neste mundo.
Mas esses
dois malvados já há de muito tempo foram dar contas ao diabo do que andavam
fazendo por este mundo, e a coisa continua na mesma.
O antigo
camarada da Carolina, esse morreu no caminho de Goiás; a escolta que o levava,
para cumprir sentença de galés por toda a vida, com medo que ele fugisse, pois
o rapaz tinha artes do diabo, assentou de acabar com ele; depois contaram uma
história de resistência, e não tiveram nada.
O outro, que
era curado de cobra, tinha fugido; mas como ganhava a vida brincando com cobras
e matava gente com elas, veio também a morrer na boca de uma delas.
Um dia em
que estava brincando com um grande urutu preto, à vista de muita gente que
estava a olhar de queixo caído, a bicha perdeu-lhe o respeito, e em tal parte e
em tão má hora lhe deu um bote, que o maldito caiu logo estrebuchando, e em
poucos instantes deu a alma ao diabo. Deus me perdoe, mas aquela fera não podia
ir para o céu. O povo não quis por maneira nenhuma que ele fosse enterrado no
sagrado, e mandou atirar o corpo no campo para os urubus.
Enfim eu fui
à vila pedir ao vigário velho, que era o defunto padre Carmelo, para vir benzer
a sepultura de Joaquim Paulista, e tirar dela essa assombração que aterra todo
este povo. Mas o vigário disse que isso não valia de nada; que enquanto não se
dissessem pela alma do defunto tantas missas quantos ossos tinha ele no corpo,
contando dedos, unhas, dentes e tudo, nem os ossos teriam sossego, nem a
assombração acabaria, nem a cova se havia de fechar nunca.
Mas se os
povos quisessem, e aprontassem as esmolas, que ele dizia as missas, e tudo
ficaria acabado. Agora quem há de contar quantos ossos a gente tem no corpo, e
quando é que esses moradores, que são todos pobres como eu, hão de aprontar
dinheiro para dizer tanta missa?...
Portanto já
se vê, meu amo, que o que lhe contei não é nenhuma abusão; é coisa certa e
sabida em toda esta redondeza. Todo esse povo aí está que não me há de deixar
ficar mentiroso.
À vista de
tão valentes provas, dei pleno crédito a tudo quanto o barqueiro me contou, e
espero que os meus leitores acreditarão comigo, piamente, que o velho barqueiro
do Parnaíba, uma bela noite, andou pelos ares montado em um burro, com um
esqueleto na garupa.
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