A Consoada
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Tinham
chegado, havia um instante, da igreja.
No
silêncio álgido da noite retinia ainda alegre o bimbalhar dos sinos. A mesa
estava posta — velhos candelabros de cobre, acesos sobre a alva toalha imaculada,
e em volta de cogulo fumegando as iguarias. Na cal fendilhada da parede
resplandecia, esta noite carinhosamente festoada de flores, uma grande
oleografia, em retábulo dourado, de uma das celebradas Virgem de Murillo, fresca, menineira, a alma toda nos olhos, e em
volta pelas nuvens sua graciosa farândola de amorinhos cor-de-rosa. O ar estava
tépido, embalsamado. E no retângulo negro das vidraças a opaca radiação da
noite, basto rasgada pelos farrapos da neve que caía, realizava visualizações
fantásticas, luarentos contrastes de diorama.
Toca de
arrimar na cozinha, ao canto da chaminé, os guarda-chuvas pingando, largam-se
as capas, descalçam-se as galochas, ruidosamente sacodem-se os vestidos; enquanto
de rodilhão invade a sala a tropeada cantante das crianças; e erguendo-se de
salto do escabelo, a esfregar os olhos, a velha serva Leonor, perdida de sono,
resmoneia num alívio:
— Ora
louvado seja Deus!
E já à
mesa o bom do Simeão se dirigia, direito à grande poltrona de couro. Toma-lhe a
direita sua mulher — irrepreensível companheira de cinquenta anos —, uma
pequenina e interessante nonagenária, de vagos olhos espirituais e longas mãos
de cera; e à esquerda senta-se-lhe a sua boa e paciente Eugênia, a filha mais
nova, de preto, fisionomia macerada e longa, repassada toda desta austera
diafanidade tranquila que é feita de castidade e abstenção, de isolamento e
saudade. Seguia a variegada profusão de toda a mais parentela — os filhos que
vieram de longe, empregados no comércio, na magistratura, no Governo Civil em
Viseu; um cunhado, capitão do 14; as respetivas esposas, tias, sobrinhas,
primas — ao todo trinta e tantos comensais, afora a galhofeira e turbulenta
assistência das crianças, que redonditas e chilreantes se aninhavam sobre
almofadas postas nas cadeiras, avançando o queixo, cotovelos na toalha, e
abrindo para as travessas com os doces uns grandes olhos ávidos.
Nos
primeiros minutos, um guloso silêncio se intervalou, cortado apenas do discreto
tinir de louças e metais. Só o velho patriarca de carinho insinuou à filha:
— Eugênia,
então! Vá de pesares hoje...
E ela,
com infinita tristeza:
— Eu não
lhe dizia, pai?...
E
esmorecida arredava de diante de si o prato, para melhor apoiar na mesa o
cotovelo, de antebraço ao alto, e de peso o rosto afogado no lenço, a breve
trecho empapado de lágrimas.
Era
casada a quase sete anos.
Casada
com o José Ventura, um honrado e perfeito rapaz, vizinho seu na cidade, cuja
garbosa imagem logo os seus olhos infantes se tinham acostumado a ver
inseparável dos brinquedos. Depois, na adolescência, a mesma comunicativa e
franca liberdade afeiçoara-lhes os corações, irmanando-lhes os destinos. Falado
o casamento o rapaz era sério, honesto, trabalhador, tinha bens bastantes —, os
pais da Eugênia consentiram. Em boa hora, mercê de Deus! Ao cabo de três anos
de inalterável bonança conjugal, três inocentes eram o vivo penhor do seu
afeto.
Mas as
coisas da vida iam mal... Pegara brava a moléstia nas oliveiras e nos
castanheiros, o míldio acabava de lhe
devastar a vinha, já os estrangeiros lhe não visitavam a adega, o pulgão comia-lhe as searas. A
continuarem as coisas por aquele pendor, era uma fatalidade! — Tinha ali assim
três anjinhos... E o mais que viria... Tinha obrigação de lhes deixar que
comer!
Depois de
muita hesitação, muita tormentosa luta interior, muita lágrima represada — não
havia remédio... Dolorosamente concertou com a mulher e partiu para Lourenço
Marques. E ela, a pobre, ficou-se em casa dos pais, paralelamente morta para o
exterior, para a luz, para a alegria, arrastando, como um burel, a sua
resignada saudade, paresiada na mansidão de uma irremediável tristeza.
Com uma
resignação de freira, alheia por completo ao mundo, vivendo na perpétua
lembrança do marido, na exclusiva preocupação dos filhos, passou anos Eugênia
sem sair de casa, levando uma vida toda crepuscular, na inteira abdicação do
seu querer, colada ao dever como a lapa ao rochedo, iluminada e forte sempre a
alma do alimento ázimo do Passado, o seu fino rosto austero idealizado por uma
transcendente, uma inabalável expressão de confiança e de doçura... Sem um
queixume, sem uma revolta, sem uma indignada apóstrofe ao Destino, ela sofria
mas esperava, esperava sempre... Forte dessa poética submissão, dessa
fidelidade sem termo, essa irredutível e santa conformidade de que a nossa
província ainda conserva o segredo. Embalde vinham as amigas desafiá-la: “que
estava dando cabo de si... Não tinha jeito nenhum... Que faria se fosse viúva!”
Esquivava-se invariável às mais inocentes diversões. Ouvia, ouvia tudo, num
desdenhoso silêncio, e ao cabo abanava negativamente a cabeça, cerrando as pálpebras,
o longo rosto iluminado, como um de tarde em outono, por uma doce claridade.
Escrevia
amiúde o marido. Sempre cartas consoladoras, ainda era o que valia! Passados os
dois primeiros anos, estava fazendo rapidamente fortuna. Tivera uma hospedaria;
agora era já senhor de prédios, tomava empreitadas de construções, era grande
acionista de uma companhia mineira.
O Simeão
esfregava as mãos, contente, e exclamava, descendo aos netos os olhos úmidos:
— Abençoada
resolução!
Eugênia,
porém, nas suas cartas, extensos e adoráveis breviários de coisas de família —
a saúde dos pais, a saudade que a ralava, os progressos, as graças, as doenças
dos filhinhos —, passava sempre de alto, num leve roçagar de desdém, pela
questão de interesses, e invariavelmente terminava com esta frase:
— Quando
te tornarei eu a ver?...
Ultimamente
anunciara ele uma próxima vinda à metrópole — para matar saudades, para
revigorar a saúde. Dizia o paquete em que vinha, designava o dia da partida.
Foi então na modesta casa do rossio de Pinhel uma alegria doida... Não se
falava noutra coisa; aos quatro ventos da cidade se confiou a consoladora
notícia. Dia por dia com alvoroço se contava o tempo de viagem do vapor.
Liam-se com avidez no Século os
telegramas marítimos, a ver quando davam conta das sucessivas estações da sua
rota. Sem entender nada de geografia, arranjou no entanto Eugênia um mapa, e
aí, de olhos úmidos, como de instinto ia seguindo o progressivo e moroso
avançar do ídolo da sua alma. Fez roupitas novas aos pequenos, para aparecerem
ao pai. Dava repetidas ações de graças ao Céu; o seu entusiasmo, a sua fé, o
seu amor não conheciam limites.
Pela mais
feliz das coincidências, acontecia que o seu José devia ter desembarcado na
véspera em Lisboa, e chegaria a casa portanto exatamente naquela mesma noite de
Natal! Eugênia queria de força ir, com os filhos, esperá-lo abaixo, à estação,
a Vila Franca das Naves. Entretanto, frustrou-lhe a resolução a inclemência do
tempo. A família opôs-se. — Sempre eram 18 quilômetros de mau caminho,
desabrigado, ínvio... E a chuva, o vento, a neve... Uma imprudência! Seria o
mesmo José o primeiro a censurar... — Resignou-se portanto a ficar.
Mandaram-lhe à estação a melhor alimária de cavalaria que havia na terra, a
mula do senhor abade, cedida com a mais pronta decisão; e para o espírito
inquieto, para a alma ansiosa de Eugênia se foram então fechando
interminavelmente as horas. Repercutia-lhe doloroso o bater da pêndula no
pulsar do coração, e o seu adorado marido não vinha!
Por fim,
perdera já por completo a esperança. E agora à mesa perante a ingênua e
comunicativa alegria do momento, a dolorida tristeza da sua alma cerrava-se
cada vez mais intensa e mais profunda.
***
Entretanto,
continuava meigamente o pai a querer animá-la:
— É que o
vapor não entraria a barra ontem, filha... Isso que admira, com o mau tempo que
faz?...
— Sei lá
o que foi!
— É isto.
Não podia ser outra coisa... Se tivesse entrado, bem vês... O comboio passa em
Vila Franca às 8... Depois, pra cima, a mula do senhor abade desunha bem... São
três horas da estação aqui.
— Ora!
Nem que viesse a pé... — corroborou o capitão — já estava farto de cá estar!
— Tudo
isto é assim, tudo muito belo... — redarguiu, apreensiva, Eugênia — mas é que
eu não faço senão pensar...
— E de
repente, depois de uma hesitação, com ar aflito: — Ai, Deus do Céu! Receio
muito que lhe tenha sucedido alguma coisa...
— Então
por quê?... — interrogou mansamente, com uma bondosa doçura incrédula, do outro
lado do Simeão, a espiritual velhinha.
— Ora, a
mãezinha bem sabe... As mulas diz que são amaldiçoadas. Antes queria que lhe
tivessem mandado outro animal! Por que não pediram ao médico?
— Está
sempre a precisar... — aclarou o pai. — Isso são histórias!
— Não são
tal! — insistiu Eugênia com vigor. — No Presépio a vaca chegava palhinhas ao
Menino, para o agasalhar, e vai a mula comia-as. Por isso a Senhora a
amaldiçoou.
— É
verdade! É verdade! Assim diz a mestra... — aqui acudiu com interesse o filho
mais velho, o Josezito, abrindo em claras convicções os olhos.
— Pois
sim, filha... — insistia com amor o velho a derivar — mas come...
— Não
tenho vontade...
Estes
bolos de bacalhau.., estão ótimos!
— A mim
amargavam-me como piorno!
E o bom
do pai, largando a travessa, desistia.
— Valha-te
Deus! — E, sempre no empenho de espertar a animação, arredando daquela festa as
sombras, agora interrogava o neto: — Então que histórias foram essas que te
ensinou a mestra?
— Sim
senhor! — acudiu pronta a criança, com o mesmo tom de convicção escampe. — Sei
essa história toda da fugida pró Egito. Ainda há mais coisas... Ao atravessar a
burrinha um tremoçal, quase seco, as ervas faziam muito barulho, dando sinal
aos perseguidores... E vai a Senhora amaldiçoou-as também.
— Meu
anjinho! — exclamou com ternura a avó desvanecida.
— E
também está amaldiçoada a perdiz — continuou muito sério o rapaz. — Só a
pena...
— Conta
lá... — disse-lhe a mãe, momentaneamente distraída.
— Foi
assim... Quando Nossa Senhora fugia, um bando de perdizes, levantando-se-lhe na
frente, assustadas, espantou-lhe a burrinha e deu sinal ao inimigo. Vai a
Senhora exclamou: “Malditas sejais!” São José perguntou: “Por inteiro, carne e
tudo?” E a Virgem respondeu: “Não, coitadas! A carne, não... Só as penas.”
Aplaudiram
todos, encantados, o pequenino narrador, cujos lábios de cereja a mãe comia de
beijos.
De súbito
— que estranho estrupido é este?! — no pleno sossego daquela hora alta, áspero
e vibrante ressoou no pátio um significativo tropear de ferraduras. Logo um trinado
silvo familiar, num segundo, quando, à instantânea impulsão do espanto, mal
tinham tido ainda os convivas tempo de se erguer da mesa, já o José Ventura
invadia de rompão a sala e estrangulava a mulher de comoção nos braços,
balbuciando entre soluços de escachoante amor:
— A Geneta! A minha querida Geneta!
Enquanto,
pequeninos e dobrados, todos em lágrimas, dele se aproximavam os pais, trêmulos
na ansiosa suplicação de uma carícia; e aturdida, boquiaberta, a velha Leonor
exclamava, limpando os olhos à serguilha do avental:
— Parece
mentira!
— Mentira
me parece a mim mas é eu estar de volta outra vez! — bradava na veemência da
sua ardente emoção o rapaz.
— Aqui
assim na nossa casa... Junto da minha mulher, dos meus filhos, dos meus velhos,
dos amigos!...
E ia e
vinha, a um e outro lado, irrequieto, gárrulo, feliz... Dava abraços, palmadas,
beijos, entregava-se, dispersava-se... Num trasbordar suave de efusão prodigalizava
o melhor e o mais íntimo do seu ser, irreprimivelmente expandia a sua
sentimentalidade represa de tantos anos.
— Mas que
horas são estas de aparecer?...
— Com
efeito!
— Já
ninguém fazia conta de ti!
— Que
ralações aqui iam!...
— Faço
ideia... Bem me lembrou! — disse o José Ventura, olhando com amor a mulher. —
Mas que querem?... O comboio vinha atrasado, os caminhos estão péssimos!
— Louvado
seja Deus Nosso Senhor! — murmurou de mãos postas a santa velhinha,
considerando o filho.
— Como
tudo isto me parece bem! — exclamou num ímpeto o recém-chegado, sentando-se,
com todos os mais, à mesa. — Que bela compensação a todas as minhas penas e
trabalhos! Que saúde ao corpo, que refrigério à alma!
— Comes?
— perguntou-lhe o pai.
— Aí,
não! Trago uma fome de pedras... Vou já começar aqui por estes ovos verdes.
— Agora
também eu como! — rompeu, sentando-se junto dele, a mulher.
E
reatando conversa, patriarcalmente, como se de princípio também ali estivesse,
como se nada de anormal, desde o começo da ceia, se houvera ali passado, disse
ainda, todo natural, o José:
— Mas que
conversa era essa então com que estavam, de maldições?... Eu ainda ouvi...
— Falava-se
de quando foi da fuga da nossa Senhora, com São José e o Menino. Diz que ela
amaldiçoara então a mulinha do Presépio, os tremoços, as perdizes...
— E então
dos noitibós e das cotovias, não sabem?... Disse o José, sorrindo.
— O quê!?
— Ainda
me lembro!
— Sabes
mais do que nós...
— Pois
então! Contava-me aquela nossa criadita velha, a Emília... Ora espera, como
era?... Ah! Quando Nossa Senhora ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós
iam na frente, a gritar: “Ela aqui vai! Ela aqui vai!” E atrás as cotovias,
apagando as pegadas da burra com as patitas, diziam: “Mentira! Mentira!” Por
isso Nossa Senhora abençoou estas e amaldiçoou aqueles.
— É
verdade, mamã? — perguntou com interesse o Josezito.
— O papa
nunca mente.
E a cada
instante o papá, radiante, cheio de si, na amorosa incidência da atenção de
todos, e com os filhos pendurados em cacho dos ombros, do colo, do pescoço,
demandava a mulher com os olhos rasos de água, numa expressão fundente de
ternura:
— A minha
Geneta!
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