Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
A caolha era uma mulher magra,
alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados,
largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas
pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo,
de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo
contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de
desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e
cariados.
O seu aspecto infundia terror às
crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária
magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído
o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao
lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era essa pinta amarela sobre o
fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava
repulsiva aos olhos de toda gente.
Morava numa casa pequena, paga
pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os
hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho,
enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no
mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando
na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um
ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer
fora...
Ela fingiu não perceber a
verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o
bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos
outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da
existência?
Um beijo dele era melhor que um
dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas... os
beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele
apertava-a nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la
só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora,
limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a
escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com
a mãe, a chamá-lo — o filho da caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia
sempre:
— Eu tenho nome!
Os outros riam e chacoteavam-no;
ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam
mesmo a castigá-los — mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o
chamavam assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia
de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá
vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas,
meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do
pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar
as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como
os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor
delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
— Taí, isso é para o filho da
caolha!
O Antonico preferia não receber o
presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com
inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:
— Filho da caolha, filho da
caolha!
O Antonico pediu à mãe que não o
fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam
aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os
olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.
A caolha suspirou e nunca mais
foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu
para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e
malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de
marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo — o filho da caolha, a humilhá-lo,
como no colégio.
Além de tudo, o serviço era
pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de
caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o
vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe
dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma
contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em
casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre
zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava
a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse
nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o
mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A
infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não
deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma
certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso
mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse
sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a
vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele
tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia
retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava!
Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha
adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O
Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a
mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um
louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num
transbordamento de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz
uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se a
cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:
— Sou muito feliz... o meu filho
é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia,
num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe
cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se
em amarguradas conjecturas.
Ao princípio pensava:
— "É o pudor". Depois
começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela
moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse
completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a
mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem
compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de — nora
da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer
que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor se voltou
para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua
desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as
carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela!
Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de
separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto;
havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite,
furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade
do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe
devia em troca do seu consentimento e amor...
Passou um dia terrível; à noite,
voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal,
lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: "Ao dizer
a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de... uma tal
criatura?" Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com
verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o
pus na face, disse:
— Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental;
ele continuou:
— Afinal, nunca me explicou bem a
que é devido esse defeito!
— Foi uma doença, — respondeu
sufocadamente a mãe — é melhor não lembrar isso!
— E é sempre a sua resposta: é
melhor não lembrar isso! Por quê?
— Porque não vale a pena; nada se
remedeia...
— Bem! Agora escute: trago-lhe
uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei
um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou
se tem necessidade de alguma coisa... É por força maior; não temos remédio
senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo
hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes
criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba
tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a
mãe com um olhar desconfiado e medroso.
A caolha se levantou e, fixando o
filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:
— Embusteiro! O que você tem é
vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de
semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde,
surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia
com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe
dera a caolha.
Ela o acompanhou, fechou com
estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e
desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma
noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro
desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe,
faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho
direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo
arrepanhado, murcho — murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu
dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua;
sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para
dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a
cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.
Providencialmente, lembrou-se da
madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava. Foi
pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera. A
madrinha escutou-o comovida; depois disse:
— Eu previa isso mesmo, quando
aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!
— Que verdade, madrinha?
Encontraram a caolha a tirar umas
nódoas do fraque do filho — queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se
arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela,
esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e
vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou
imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do Antonico começou
logo:
— O teu rapaz foi suplicar-me que
te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para,
à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!
— Cala-te! — murmurou com voz
apagada a caolha.
— Não me calo! Essa pieguice é
que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e
ela concluiu:
— Ah, não tiveste culpa! Eras
muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela
estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste
pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de
bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
— Pobre filho! vês? Era por isto que eu não queria
dizer nada!
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