A Água de Janos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
O tenente de cavalaria Remígio
Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro
Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono
mandamento da lei de Deus.
A “mulher do próximo”, notando
que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes
e por aqueles belos olhos negros e rasgados.
Ao marido, interessado pelo
enredo do dramalhão que se representava, passou completamente despercebido o
namoro aceso entre o camarote e a plateia.
Premiada a virtude e castigado
o vício, isto é, terminado o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa
distância o casal até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele —
um bonde do Bispo, — sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andréa.
Dizer que no bonde o pé do
tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda — seria
faltar à verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do
bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto
de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.
Ele ficou sabendo onde ela
morava...
II
O tenente Remígio Soares foi
para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera!
Às dez horas da manhã
atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!
Mas — que contrariedade! — as
janelas de Dona Andréa estavam fechadas...
O cavaleiro foi até a Rua de
santa Alexandrina e voltou — patati, patatá, patati, patatá! — e as janelas não
se tinham aberto...
O passeio foi renovado à
tarde, — o tenente passou, tornou a passar, — continuavam fechadas as
janelas... Malditas janelas!
Durante quatro dias o namorado
foi e veio a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo ão era
uma casa: era um convento!
Mas ao quinto dia — oh,
ventura! — ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda
próxima.
Não refletiu: chamou-o de
parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.
Soube nessa ocasião que ela se
chamava Andréa. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento!
proibia expressamente a senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando
ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros: uma
tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão.
Mas o providencial moleque
nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andréa uma cartinha do
inflamado tenente, e a resposta — digamo-lo para vergonha daquela formosa
desmiolada — a resposta não se fez esperar por muito tempo.
“Pede-me uma entrevista, e não
imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma
entrevista como?... onde?... quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma
senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode
ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar
a sós... Como há um Deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia:
até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei
encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”
Na esperança que o grande dia
chegasse, o tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de
dona Andréa: procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo,
a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal
convencionado todas as vezes que desejava enviar uma cartinha.
III
Diz a clássica sabedoria das
nações que o melhor da festa é esperar por ela.
Não era dessa opinião o
tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de
todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!
Os namorados, graças ao
molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência
violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois
desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.
IV
Os leitores — e principalmente
as leitoras — me desculparão de não por no final deste conto um grão de poesia:
tenho de concluí-lo um pouco à
Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é sacrificada.
O meu herói andava já
obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de
longa expectativa e lento desespero.
Um dia, o Barroso, seu amigo
íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer
da cama.
— Que tens tu?
— Ainda mo perguntas...
— Tem paciência: Jacob esperou
quatorze anos.
— Esta coisa tem-me posto
doente. Bem sabes que eu gozava de uma saúde de ferro... Pois bem, neste
momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!...
— Isso é calor: a tua Andréa
não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um
conselho? Mandas buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o
melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça.
O tenente aceitou o conselho,
e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da
benemérita água.
Vinte minutos depois dessa
libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha,
o vulto airoso de dona Andréa, anunciando-lhe uma carta.
Pouco depois entrava o
molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.
“A velha amanheceu hoje com
febre e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um Médico de
confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca
o será talvez.”
O tenente soltou um grito de
raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era
impossível acudir ao doce chamado de dona Andréa!
Era impossível também
confessar-lhe a causa real do não comparecimento: nenhum namorado faria
confissões dessa ordem...
O mísero pegou na pena, e
escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:
“Que fatalidade! Um motivo
poderosíssimo constrange-me a não ir... Quando algum dia haja certa intimidade
entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.”
Dona Adélia não perdoou. O
tenente Remígio Soares nunca mais a viu.
V
Quando, no dia seguinte, ele
contou a Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente
sorriu, e obtemperar:
— Vê tu que grande remédio é a
água de Janos: um só copo bastou para aliviar três cabeças!
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