Words...
(De um caderno de notas de C. F.)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Ao morrer, cada um de nós
deve dizer à Morte: “Deixe-me estar ainda um bocadinho. Esquecia-me por
completo de viver...”
— Xerxes chicoteou o
Helesponto. Quando nós nos queixamos do Destino, somos tão pueris como esse
rei.
— A dor deve ser como um
amante — que nos faz sofrer e em quem batemos.
— Nietzsche definiu a glória “a
falta de pudor na admiração”. No meu país, é a falta de pudor na incompreensão.
— No silêncio, nascem em nós
sentidos: os sentidos para a vida do mistério...
— Obsessão a brocar um
moribundo:
Nunca olhei, sem outra ideia,
para o sol...
— Só a verdade é inverossímil.
— A amizade é uma hipótese
divina que só os grosseiros cuidam ter vivido.
— Avaliamos quase sempre os
outros pelas opiniões que tem de nós. É por isso que conhecemos menos — aqueles
que mais julgam conhecer-nos.
— Os artistas procuram no
amor, além da satisfação do instinto, a glória,— na admiração de mãos postas da
mulher. Compensa-os de não terem público, e só tarde percebem— que quanto mais
beijados... mais inéditos.
— É preciso ser feliz em
família para compreender a volúpia de estar só.
— Por que é que os ciprestes
entristecem?... Porque, para nós, são um soluço alongado e verde-escuro. É bem
possível que eles sejam muito alegres... É por motivos destes que muitas coisas
nos parecem tristes.
— Alguns dizem: publicar um
livro é prostituir-se. Pedantes! O mar recebe nele os vossos corpos...
— Quem mais injustamente julga
um crime? Primeiro o criminoso, que estava fora de si, que já não sabe; depois
os julgadores oficiais — que estão fora de si profissionalmente.
— Aut Cesar aut nihil. Podes ser um mendigo e ter na tua vida
interior este brasão.
— Sou por tal forma talhado para amar — que o
meu amor cresce com o meu desprezo.
— A maior parte da gente é honesta — em virtude da lei do menor
esforço.
— Há um instante na vida em
que cada um de nós se julga um deus: com uma doutrina a revelar, um calvário
nos longes e um profeta...
— Quando depois de lamentar alguém o vemos
salvo, sentimo-nos roubados.
— A arte é o refúgio dos que não podem viver
integralmente. E muitas vezes também, uma vingança.
— A mentira e o dever são
irmãos gêmeos.
Quando naturalmente, por
instinto, nós fugimos ao código e à moral, ela apareceu-nos, máscara dourada,
para esconder a responsabilidade. Mas há outra, a mentira criadora, que é a asa
do Sonho e da Beleza. Os filósofos chamam-lhe: — Verdade...
— Umas mãos, um gesto de
mulher, um perfume de flor, ou um velho estofo, consolam bem melhor que Marco
Aurélio...
— As mulheres não falam só ao
nosso instinto. Falam mais: sem se ouvirem, sem saberem... São quase sempre
vazias ou banais. Mas para além da frivolidade e do desejo, são verdadeiras
fontes de inconsciente. Numas pálpebras descidas, num olhar, no misterioso de
milhares de nadas, há sonhos e sonhos
revelados, a expressão do irredutível a palavras.
Elas são na sua vida interior,
como crianças a assistir a uma tragédia... Soube lá nunca a Mona Lisa que tinha
tudo o que Vinci copiou!...
— Um perfume na sombra tem uma
voz de aparição.
— A renúncia é uma doença do
desejo. Vem com a velhice quase sempre.
— A humildade corresponde no
homem ao mimetismo dos insetos.
— Certas preferências — que
nem o raciocínio nem a estesia explicam— despertam em nós sensações de vidas
anteriores: um certo perfume, uma paisagem para outros sem encanto, certa feia,
uns versos medíocres, um acorde banal...
— Recusei ontem uma
apresentação a um “homem de princípios”. Para quê? Um “homem de princípios” é
um homem conhecido: está impresso.
— Música do mar — Aquele violinista meu amigo foi viver, por conselho
meu, para a beira mar. Ia com uma grande febre de compor. Levava um quarteto
inacabado, um esboço de sinfonia, outros projetos... Encontrei-o na praia ontem
à noite.— Então... esse quarteto? a sinfonia?...— Nem quarteto... nem
sinfonia... nem violino... Eu já não faço música. Pus-me a ouvir a do mar bem
simplesmente.
— A moral é um lastro.
Deita-se fora para subir...
— Todos dizem adeus com o
mesmo gesto. E esse gesto é o das asas... Subir é ficar só.
— Quando duas criaturas se
amam, não pensam um instante em compreender-se. Uma vaga de inconsciente
submergiu-as. Só mais tarde, morto o desejo, se reconhecem com espanto, dois
estranhos.
Dizem com desespero: “Um de
nós mudou. Já não somos os mesmos”.
— De uma maneira geral, temos
mais pontos de contato com os nossos inimigos do que com os nossos amigos.
Amar uma mulher, querer
conseguir o mesmo fim, são causas de ódio.
— O nosso inimigo é o nosso
cúmplice.
— Os programas de governo estão
para a política, como os dogmas para as religiões. Nem os primeiros interessam
os partidários, nem os segundos os crentes.
— A liturgia obliterou-se, é
de uma teatralidade já sem símbolo. Corresponde à retórica — ou arte de
hipnotizar imbecis com gestos e palavras em que se sacrifica à ideia ausente.
— Não há esculturas como as
nuvens.
— Os homens que constroem um
sistema, fazem a própria jaula em que se fecham.
— A grande indústria humana — a
específica — é a fabricação de deuses.
— Para viver puro é preciso
durar como as espumas: um instante.
— A tragédia de D. João está
no supremo poder de seduzir, de que ele próprio foi a maior vítima. Em nenhum
amor matou a sede.
De mulher em mulher, como
outros de ideia em ideia, ele era, essencialmente, um homem bêbedo de Deus, como Espinosa.
— Um perfume é uma
confidência: é também o olhar das flores, e, segundo Helo, o seu estilo.
— Viajar é a arte de saborear
decepções.
— A magia da viagem, tão
grande como a do amor, começa no instante do regresso. A do amor chama-se — saudade,
a da viagem— evocação.
— Se na morte tivéssemos
consciência — gozaríamos enfim a viagem da vida.
— Um artista numa terra nova
tem a sensação de nascer segunda vez.
— As escolas literárias são
verdadeiras cooperativas de consumo. É só matricular-se... e cozinhar.
— Os gênios são
inclassificáveis: são a promessa falhada de outra espécie.
— A garra do gênio é a sinceridade. — Falar por
la bocca de su herida é um ato heroico.
— Só são coerentes os factícios.
— Os que se conhecem, são
vazios.
— A palavra de honra é uma
gazua. Força a credulidade dos ingênuos quando não temos força moral para os
convencer.
— A música é o médium do
mistério.
— A eternidade é a sensação de
alguns instantes...
Às vezes é num grande perigo
que a sentimos: certos segundos lúcidos da agonia em que se faz o supremo exame
de consciência; antes duma operação grave, quando cada gesto tem um fervor de
despedida; nos últimos minutos dum condenado à morte.
Outras vezes, é num grande
gozo que a entrevemos: no espasmo da cópula; na aura do ataque epiléptico (que Dostoiévski diviniza); nos primeiros momentos de admiração por uma obra-prima; na vertigem
da criação subconsciente; e finalmente os místicos, na absorção em Deus, ou, segundo
a expressão de Dante, quando “partem do século”.
— Uma vez, tomando nas mãos
uma cabeça de mulher, disse-lhe baixo, com a vontade perdida nos seus olhos: “Podes
fazer de mim o que quiseres”.
É isto que eu agora digo à
Vida.
— Testamento dum pobre — Se eu morrer na primavera, envolvam em feno
aromático meu cadáver nu, cubram-me de lilases e de rosas, deixem-me decompor
assim— com tantos vermes como borboletas!
Enterrem nos meus olhos de
morto já gomosos, pecíolos de rosas de veludo. Não me embalsamem. Que eu seja
uma podridão bem petalada!
Ponham-me sob uma árvore
florida, para que um vento de cópula passando, sacuda o pólen sobre o meu
cabelo! Depois no roxo outono, morto, o mais feliz dos mortos, cada corvo que
vier grasnando — há de partir de gula o bico curvo contra o meu crânio em que
há pétalas murchas...
— O sacrifício é a seleção
natural invertida: os fortes servem de degrau aos fracos.
— A incoerência instintiva,
absolutamente sincera, tem uma lógica interior — a própria lógica da vida — que
os psicólogos profissionais nunca auscultaram. Os personagens de Dostoiévski,
por exemplo, ganham tanto mais em unidade e em verdade, quanto mais, para olhos
vulgares, se contradizem. Bourget é o psicólogo da coerência...
— O grito de Oswald Alving no
último ato dos Espetros: “Mãe, dá-me
o sol”, é o grito que a morte gela em muitas bocas.
— Portugal é um navio
naufragado em que a tripulação espera há séculos...
— A arquitetura que eu mais
amo é a dos navios.
Os mastros aspiram como
agulhas góticas, mas enquanto a catedral se queda em êxtase, as velas seguem
entre adágios de asas...
— Adoro o mar. Ando a ensinar
ao meu desejo um ritmo de ondas, e à minha dor a arquear de desespero como as
vagas — mas a sorrir por fim em pó de espumas.
— A. é um místico (medievalite
e hidrofobia), B. vê tudo Wateau (é um requintado...), C. é um grego do tempo
de Péricles; eu, tal qual tu me vês, sou um romano...
Quantos homens da Renascença
tu conheces!...
O visconde L., por exemplo, é
um Medicis...
Como quase ninguém está nesta
época — é bem de ver — quase ninguém existe. Os que tu vês — são só
sobreviventes... almas fósseis...
— Uma estátua mutilada humilha
menos a nossa imperfeição: está mais perto de nós, comove mais.
— Conheci um poeta que
escreveu a Imitação do Mar, paralelo
à Imitação de Cristo.
Durante semanas viveu num
quarto — só — uma vida de vaga. Encrespou, arqueou num grande esforço, foi um
côncavo glauco cheio de asas, e explodiu a rir — todo espumante...
Só eu sei que se matou por não
poder reviver aquela vida.
— Um livro tem para o autor
uma outra voz: a do seu sangue a correr pelas palavras.
— O ritmo é o anestésico mais forte.
— O sarcasmo é um soluço que
despreza.
— Alguns escritores publicam
os retratos nos seus livros. Ignoram, decerto, que a vera efigie de um artista é o estilo.
— Há no fundo do panfletário
mais violento, um pobre diabo ingênuo, fascinado, que aspira a conselheiro — sem
saber...
— Receita para fazer sucesso:
condensar a banalidade, dar-lhe ênfase e imprimi-la com maiúsculas...
— Alguns condenam as corridas
de touros e proclamam como uma obrigação — o sacrifício...
— A procurar o sentido da
vida, esquece-se muita gente de viver.
— Conheço muita gente que só
olha a natureza... emoldurada.
— O processo, em arte, é o maquillage do talento.
— O sucesso faz-se nos
jornais: — a glória no silêncio.
— Quando um homem superior é
célebre, ou é admirado por defeitos, ou então por qualidades que não tem...
— As metafísicas são a Belle au bois dormant contada em ideias.
— Que frio! Deito ao lume os
meus deuses para aquecer... É bom ouvi-los crepitar: lenha divina!
Mas da cinza dos deuses — nascem
deuses. Pela janela aberta vejo uma estátua na névoa: o super-homem!
Criar deuses é a mais estranha
função da nossa espécie. Nem podemos aspirar as rosas: vivemos asfixiados de
divino...
— Já viste uma ave livre — adormecida?...
Tem nas asas fechadas todo o céu. Antes de te deitares, bebe à janela a noite,
até caíres...
— A civilização é uma camisa
de forças. Há duas maneiras de a rasgar: a arte e o crime.
— A sociedade perfeita é a de
Narciso: a própria imagem refletida numa fonte. É o máximo e o mínimo de
convívio.
— A alegria é a pérola dos
mergulhadores. Só se descobre com muitas atmosferas de dor por sobre os ombros.
— Meditar é viajar através de
nós mesmos.
— A lei faz isto: que um homem
passe com fome num pomar sem cravar os dentes num só fruto...
— As academias são o trust da glória. Às vezes, são também o
asilo...
— Para saberes a expressão que
tem as rochas, encomenda uma a um escultor. Nenhum ta poderá executar. São mil
máscaras fundidas numa máscara.
— A melhor maneira de admirar
um escritor é viver segundo o ritmo da sua obra.
— Viver é adorar com o corpo
todo. A suprema oração é o desejo, a linguagem — a arte, que é o esforço heroico
para a Beleza.
— Morte! És para mim o sal da
vida...
O teu silêncio grita: — andem
depressa! Deita mais lenha na ambição, ambicioso; decifrador de enigmas, parte
a esfinge; corpo a corpo, amorosos, sonho em sonho; e tu, maníaco de teorias,
bom filósofo, coze depressa o teu sistema — anda depressa!...
O teu silêncio excita como uma
dança de baiaderas: dá vertigem...
Para exasperar em nós a
sagrada loucura de viver, para que os homens não percam um instante — ergam-te
estátuas nos jardins, nas praças, na cimalha das academias e dos templos,
Musageta da Vida, grande Morte, com a lira de Apolo e olhos vazios...
— O que é o mar para o meu
corpo, é a dor para a minha alma.
— A solidão, beata solitudo, é o palácio encantado
dos espelhos. Ó alma, corre as tuas galerias. Miríades de retratos, de
obras-primas, no dédalo dos corredores, nas salas lúcidas, ecoando em reflexos,
irisando-se, como a palavra de Deus de estrela em estrela. É o teu povo; és tu,
alma: és tu mesma.
— O tato da alma é a evocação.
— Outono: idílio da Natureza
com a Morte.
— O amor é o gênio do desejo:
um instinto espiritualizado.
— A arte é uma espécie de alquimia: mesmo do
crime, extrai o ouro mais puro.
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