Vidros quebrados
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Homem, cá para mim isto de casamentos são
coisas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há acordo nem
conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer...
— Um casamento bom, emendou um dos
interlocutores.
— Bom ou mau, insistiu o orador. Desde que é
casamento é obra de Deus. Tenho em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes...
Ainda é cedo para o voltarete. Eu estou abarrotado...
Venâncio é o nome deste cavalheiro. Está
abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram para
a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta diabos,
que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um namorado
de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este negócio
começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia bifurcou-se;
elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete
habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios,
princípio que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos
matrimônios bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do
diabo.
— Vou dar-lhes a prova, continuou o Venâncio,
desabotoando o colete e encostando o braço no peitoril da janela que abria para
o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu
então vinte e dois anos. Namorei-me ali de uma moça de vinte, linda como o sol,
filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos cinquenta feitos, ainda
mostrava o que tinha sido. Vocês podem imaginar se me atirei ou não ao namoro...
— Com a mãe?
— Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me
à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos,
correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de
quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito,
dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma
grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que
Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros
projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpa. Imaginem como fiquei!
Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva,
fazer uma estralada, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e
escrevi a Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília
respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe voltava atrás; não queria
dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria
minha e só minha...
Fiquei contente com a carta, e continuamos a
correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por
não ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós
escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio
de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha,
ajudado por uma boa preta da casa. A primeira coisa que a preta fazia era
prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite,
porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à
janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era
um ladrão; mas no dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava
em confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva partiu
para a filha:
— Cabeça de vento! peste! isto são coisas que
se façam? foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como
osso! Peste! peste!
A preta apanhou uma sova que não lhes digo
nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou chamar o
irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante do 6º
batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe
conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem demora; mas a
viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu fizesse alguma,
e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o convento da Ajuda;
dava-se com as madres principais...
Três dias depois, Cecília foi convidada pela
mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela acreditou, e
mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a liberdade,
se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa necessária no baú,
e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco minutos, a mãe
revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o convento, de
onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou desesperada. Chorou de
raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil
diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia passando. A mãe já lhe
pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil. Cecília bradava, jurava
que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava a mãe, dava socos em si
mesma... Podem imaginar o que seria.
Quando soube disto não fiquei menos
desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília
não teria mais contemplação com a mãe, e eu podia tirá-la por justiça.
Compreendi também que era negócio que não podia esfriar. Obtive o consentimento
dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao Desembargador João Regadas, pessoa
muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moça seria
depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada; tinha medo que a
mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaças,
cordas... Queria sair quanto antes.
Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor
da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada
por justiça. Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por
mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. A mulher do
desembargador foi que a recebeu, e não sabia que dizer; o marido não estava em
casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dois meses, e o
Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das coisas;
disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento,
e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto eles como a mãe
afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um rapaz sério e de
futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o
céu lhe caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.
Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que
estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou
que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a
Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo
também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório
acerca da família da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu
procedimento.
— Andaste mal, Venâncio; nunca se deve
desgostar uma mãe...
— Mas se ela não queria?
— Havia de querer, se fosses com bons modos e
alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família.
Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais casar
contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua mulher
a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita?
— Muito bonita.
— Tanto melhor.
Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao
casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de esperar um mês.
Escrevi para a Corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida.
Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe
deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio erisipela, febre, mais um mês
de demora, e que demora! Não morreu, felizmente; logo que pôde viemos todos
juntos para a Corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal que assistiram,
no mesmo dia, que era o 25 de março, à parada das tropas no Largo do Paço.
Eu é que não me pude ter, corri a ver
Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que
me recebeu, mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção
foi ainda mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília
teria feito as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não
respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois,
rasguei-a, e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras
estava doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me vocês? Assim me
respondeu ela.
— Tinha feito as pazes com a mãe?
— Qual! Ia casar com o filho viúvo do
desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra
talhada no céu?
— Mas as lágrimas, os vidros quebrados?...
— Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela
é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas... Realmente, se os
casamentos não fossem talhados no céu, como se explicaria que uma moça, de
casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim
de pé para mão? É o que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. Mal
comparado, é como no voltarete: eu tinha licença em paus, mas o filho do
desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo.
— É boa! Vamos à espadilha.
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