Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem
se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que
tenho amado sempre... Depois do amor grande por mim que me brotou aos três anos
e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie
de prima longínqua que frequentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do
complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito
bons amigos, sem nada de amores perigosos.
Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está
claro, ela como eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina
melancolia nos tomava, se acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava
de tom, e principalmente as palavras é que se tornavam mais raras, muito
simples. Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto.
Aquilo aliás durava pouco, porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então
uma raiva impensada dos manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou
modos de irritação. Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós.
E só bem mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei
nosso único beijo, foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela
casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia
Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito,
apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha
muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles
cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia
logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo,
fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visita, isso nós deixávamos com
generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e
ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com
Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com
ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não,
mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade
daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.
Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de
alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa,
cômodas e armários cheinhos de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas
quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar
qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave
solidão.
Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que
estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma
invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu
concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o
travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não,
“pecado” que é como se dizia naqueles tempos cristãos... E por causa disto eu
conseguira não pensar até ali, no travesseiro.
– Já é tarde, vamos dormir. – Maria falou.
Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração
para o travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim.
Maria, essa estava simples demais pra me olhar e surpreender os efeitos do
convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá
uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o
travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a
tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar.
Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de
travesseiro que ela deixou pra mim, me dando as costas. Restinho sim, apesar do
travesseiro ser grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos
cabelos assustados de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia
Velha, muito ciumenta por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa,
era a única a pôr defeito nos cabelos de Maria.
– Você não vem dormir também? – ela perguntou com fragor,
interrompendo o meu silêncio trágico.
– Já vou, – que eu disse – estou conferindo a conta do armazém.
Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão
tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava
completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor
intenção de. Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu
nariz, eu podia espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar
seria muito ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá
da sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.
Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os
cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que
não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a
vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho
roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos,
nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou
o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito
sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim!
só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só
beijava mamãe, boca fazendo bulha, contato sem nenhum valor sensual.
Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás
me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada
mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é
engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro,
sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus
escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que
doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar,
agir. Beijando.
Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um
espantoso barulho. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos
fazendo era completamente feio.
– Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca!
Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo:
– Tia Velha me dá um doce?
Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade
Berlitz, injusta, sem método – pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por
mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente.
Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência
que poucos segundos antes era real.
– Vamos! saiam do quarto!
Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia
Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.
O estranhíssimo é que principiou nesse acordar à força provocado
por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que
indiferença, frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de
me maltratar diante de todos, fiquei zonzo.
Dez, treze, quatorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que
julguei definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado,
cheio de revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições
de português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um,
zero em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade:
uma, duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado
de apagar nos exames de segunda época.
Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais,
conscientemente agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de
mim, quem gostava de mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas
naquele tempo eu chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi
sempre insuportável, incapaz duma carícia. Como incapaz de uma repreensão
também. Nem mesmo comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso
pra outro dia. O certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o
mundo que me rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer,
tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um
caso perdido, que não adiantava melhorar.
Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor
particular, quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais.
Passei bastante encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão
me denunciando, lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de
caso perdido. Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no
escritório pegado, esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar
para o meio de todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que
Tia Velha perdia com suas preferências:
– Passou seu namorado, Maria.
– Não caso com bombeado. – ela respondeu imediato, numa voz tão
feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha
dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de mim. Bobo do assim parado, sem fazer
um gesto, mal podendo respirar.
Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de
minha sorte. Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria,
gente que até viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais dela tinham feito um
papel bem indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que
pobre mas ótimo. Houvera rompimento de amizades, mal-estar na parentagem toda,
o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de
jantar. Tudo por causa do dinheiro.
Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a
família dela não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete
de loteria. “Não caso com bombeado”... Fui abraçando os livros de mansinho,
acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa feia, suja de pó
suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei:
era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que
o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.
Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os
outros. Estava com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde.
Não, me parecia que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de
Matilde, o insulto partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva
dela não, só tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar.
Ajoelhar sem mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim,
ajoelhar. Afinal das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha
razão, tinha razão, oh que tristeza...
Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando
anos pulados. Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu.
Vamos por ordem: pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus
pensamentos me traíram. De resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender.
Foi espantoso o que se passou em mim. Sem abandonar meu jeito de “perdido”, o
cultivando mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me
batera, súbito, aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo.
Era mesmo uma impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem
nenhuma orientação. Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas
de rapazes, tinha ideias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam
maldando que eu era muito inteligente mas perigoso.
Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o
mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou
três meses e se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um
diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito
no altar e partir em busca duma embaixada europeia, com o secretário chique,
seu marido.
Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados
meio de longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa
infantilidade e devorar numa tarde mais um livro incompreensível de filosofia.
De mais a mais, havia a Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a
Violeta. Meus amigos me chamavam de “jardineiro”, e eu punha na coincidência
daquelas duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que
topando numa livraria com "The Gardener" de Tagore, comprei o livro e
comecei estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus
livros que estudou o alemão por causa duma emboaba tordilha... eu também: meu
inglês nasceu duma Violeta e duma Rose.
Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria
estava pra voltar pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha
ausência, conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de
gorda desabrida:
– Pois é! Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora
ela vive longe de nós.
Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num
tiro de canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se
atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim, agora que
principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em
versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem
Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que eu amara
sempre, como louco: oh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo,
aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me
superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me
imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria,
era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em
mim... E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesmo. Pois não andavam
falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as
extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um
caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de
luz. Maria falada, Maria bêbada, Maria passando de mão em mão, Maria pintada
nua...
Se dera como que uma transposição de destinos...
E tive um pensamento que ao menos me salvou no instante: se o que
tinha de útil agora em mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca
imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma projeção dela, como ela agora
apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano de amor:
mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem ruim mesmo outra vez, pra me
igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com Violeta, impiedosa, e a farra
dessa noite – bebedeira tamanha que acabei ficando desacordado, numa série de
vertigens, com médico, escândalo, e choro largo de mamãe com minha irmã.
Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos “gente grande”
agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: “ótimo, vou
hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão”. Mas fui cedo
demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles
requififes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os
da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma
espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol
central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham.
Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha
mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo,
toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto.
Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de
preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a
ficar estarrecido.
– Ao menos diga boa-noite, Juca...
“Boa-noite, Maria, eu vou-me embora...” meu desejo era fugir, era
ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que
sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo
quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na
frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão
devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não
havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei
afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos
outros que chegavam.
Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha
vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores
me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que
ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco
interessado em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de
mim, Maria... bom: acho que vou falar banalidade.
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