Vênus! Divina Vênus!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Vênus! Vênus! divina Vênus!
E despegando os olhos da parede, onde estava
uma cópia pequenina da Vênus de Milo, Ricardo arremeteu contra o papel e
arrancou de si dois versos para completar uma quadra começada às sete horas da
manhã. Eram sete e meia; a xícara de café, que a mãe lhe trouxera antes de sair
para a missa, estava intacta e fria sobre a mesa; a cama, ainda desfeita, era
uma pequena cama de ferro, a mesa em que escrevia era de pinho; a um canto um
par de sapatos, o chapéu pendente de um prego. Desarranjo e falta de meios. O
poeta, com os pés metidos em chinelas velhas, com a cabeça apoiada na mão
esquerda, ia escrevendo a poesia. Tinha acabado a quadra e releu-a:
Mimosa
flor que dominas
Todas as
flores do prado,
Tu tens
as formas divinas
De
Vênus, modelo amado.
Os dois últimos versos não lhe pareceram tão
bons como os dois primeiros, nem lhe saíram tão fluentemente. Ricardo deu uma
pancadinha seca na borda da mesa, e endireitou o busto. Concertou os bigodes,
fitou novamente a Vênus de Milo, — uma triste cópia em gesso, — e tratou de ver
se os versos lhe saíam melhores.
Tem vinte anos este moço, olhos claros e
miúdos, cara sem expressão, nem bonita nem feia, banal. Cabelo reluzente de
óleo, que ele põe todos os dias. Dentes tratados com esmero. As mãos são
delgadinhas, como os pés, e tem as unhas compridas e encurvadas. Empregado em
um dos arsenais, vive com a mãe (já não tem pai), e paga a casa e parte da
comida. A outra parte é paga pela mãe, que, apesar de velha, trabalha muito. Moram
no bairro dos Cajueiros. O ano em que isto se dava era o de 1859. É domingo.
Dizendo que a mãe foi à missa, quase não é preciso acrescentar que com um
surrado vestido preto.
Ricardo prosseguia. O amor às unhas faz com
que não as roa, quando se acha em dificuldades métricas. Em compensação, afaga
a ponta do nariz com a ponta dos dedos. Esforça-se por sacar dali dois versos
substitutivos, mas inutilmente. Afinal, tanto repetiu os dois versos
condenados, que acabou por achar a quadra excelente e continuou a poesia. Saiu
a segunda estrofe, depois a terceira, a quarta e a quinta. A última dizia que o
Deus verdadeiro, querendo provar que os falsos não eram tão poderosos como
supunham, inventara, contra a bela Vênus, a formosa Marcela. Gostou desta ideia;
era uma chave de ouro. Ergueu-se e passeou pelo quarto, recitando os versos; em
seguida, parou diante da Vênus de Milo, encantado da comparação. Chegou a
dizer-lhe em voz alta:
— Os braços que te faltam são os braços dela!
Também gostou desta ideia, e tentou
convertê-la em uma estrofe, mas a veia esgotara-se. Copiou a poesia, —
primeiramente, em um caderno de outras; depois, em uma folha de papel bordado.
Acabava a cópia quando a mãe voltava da missa. Mal teve tempo de guardar tudo
na gaveta. A mãe viu que ele não bebera o café, feito por ela, e posto ali com
a recomendação de que o não deixasse esfriar.
"Hão de ser os malditos versos!"
pensou ela consigo.
— Sim, mamãe, foram os malditos versos! disse
ele.
Maria dos Anjos, espantada:
— Você adivinhou o que eu pensei?
Ricardo podia responder que já lhe ouvira
muitas vezes aquelas palavras, acompanhadas de certo gesto característico; mas
preferiu mentir.
— O poeta adivinha. A inspiração não serve só
para compor versos, mas também para ler na alma dos outros.
— Então, você leu também que eu rezei hoje na
missa por você?...
— Li, sim, senhora.
— E que pedi a Nossa Senhora, minha madrinha,
que acabe com essa paixão, por aquela moça... Como se chama mesmo?
Ricardo, depois de alguns instantes,
respondeu:
— Marcela.
— Marcela, é verdade. Não disse o nome, mas
Nossa Senhora sabe. Eu não digo que vocês não se mereçam; não a conheço. Mas,
Ricardo, você não pode tomar estado. Ela é filha de doutor, não há de querer
lavar nem engomar.
Ricardo teve moralmente náuseas. Aquela ideia
reles de lavar e engomar era própria de uma alma baixa, ainda que excelente.
Venceu o asco, e olhou para a mãe com um gesto igualmente amigo e superior. No
almoço, disse-lhe que Marcela era a mais famosa moça do bairro.
— Mamãe acredita que os anjos venham à terra?
Marcela é um anjo.
— Acredito, meu filho, mas os anjos comem,
quando estão neste mundo e se casam... Ricardo, se você anda com tanta vontade
de casar, por que não aceita Felismina, sua prima, que gosta tanto de você?
— Ora, mamãe! Felismina!
— Não é rica, é pobre...
— Quem lhe fala em dinheiro? Mas, Felismina!
basta-lhe o nome; é difícil achar outro tão ridículo. Felismina!
— Não foi ela que escolheu o nome, foi o pai,
quando ela se batizou.
— Pois sim, mas não se segue que seja bonito.
E depois, eu não gosto dela, é prosaica, tem o nariz comprido e os ombros
estreitos, sem graça; os olhos parecem mortos, olhos de peixe podre, e fala
arrastado. Parece da roça.
— Também eu sou da roça, meu filho, replicou
a mãe com brandura.
Ricardo almoçou, passou o dia agitado,
felizmente lendo versos, que foram o seu calmante. Tinha um volume de Casimiro
de Abreu, outro de Soares de Passos, um de Lamartine, não contando os seus
próprios manuscritos. De noite, foi à casa de Marcela. Ia resoluto. Não eram os
primeiros versos que escrevia à moça, mas não lhe entregara nenhuns, — por
acanhamento. De fato, esse namoro que Maria dos Anjos receava acabasse em
casamento, não passava ainda de alguns olhares e durava já umas seis semanas.
Foi o irmão de Marcela que apresentou ali o nosso poeta, com quem se
encontrava, às tardes, em um armarinho do bairro. Disse que era um moço de
muita habilidade. Marcela, que era bonita, não deixava passar olhos sem
fazer-lhes alguma pergunta a tal respeito, e como as respostas eram todas
afirmativas, fingia não entendê-las e continuava o interrogatório. Ricardo
respondeu pronto e entusiasmado; tanto bastou para continuarem uma variação
infinita sobre o mesmo tema. Entretanto, não havia nenhuma palavra de boca, trocada
entre eles, coisa que parecesse com declaração. Os próprios dedos de Ricardo
eram frouxos, quando recebiam os dela, que eram frouxíssimos.
"Hoje dou o golpe", ia ele
pensando.
Havia gente em casa do Dr. Viana, pai da
moça. Tocava-se piano; Marcela perguntou-lhe logo com os olhos do costume:
— Que tal me acha?
— Linda, angélica, respondeu Ricardo pelo
mesmo idioma.
Apalpou a algibeira do fraque; lá estava a poesia
metida em sobrecarta cor-de-rosa, com uma pombinha cor de ouro, em um dos
cantos.
— Hoje temos solo, disse-lhe o filho do Dr.
Viana. Aqui está este senhor, que é excelente parceiro.
Ricardo quis recusar; não pôde, não podia. E
lá foi jogar o solo, a tentos, em um gabinete, ao pé da sala de visitas. Cerca
de hora e meia não arredou pé; afinal confessou que estava cansado, precisava
andar um pouco, voltaria depois.
Correu à sala. Marcela tocava piano, um moço
de bigodes compridos, ao pé dela, ia cantar não sei que ária de ópera italiana.
Era tenor, cantou, romperam grandes palmas. Ricardo, ao canto de uma janela,
fez-lhe o favor de umas palminhas, e esperou os olhos da pianista. Os dele
meditavam já esta frase: "Sois o mais belo, o mais puro, o mais adorável
dos arcanjos, ó soberana do meu coração e da minha vida". Marcela, entretanto,
foi sentar-se entre duas amigas, e de lá perguntou-lhe:
— Pareço-lhe bonita?
— Sois o mais belo, o mais...
Não pôde acabar. Marcela falou às amigas, e
encaminhou os olhos para o tenor, com a mesma pergunta:
— Pareço-lhe bonita?
Ele, pela mesma língua, respondeu que sim,
mas com tal clareza e autoridade, como se fora o próprio inventor do idioma. E
não esperou nova pergunta; não se restringiu à resposta; disse-lhe com energia:
— E eu, que lhe pareço?
Ao que Marcela respondeu, sem grande
hesitação:
— Um belo noivo.
Ricardo empalideceu. Não somente viu a
significação da resposta, mas ainda assistiu ao diálogo, que continuou com
vivacidade, abundância e expressão. De onde vinha esse pelintra? Era um jovem
médico, chegado dias antes da Bahia, recomendado ao pai de Marcela; jantara
ali, a reunião era em honra dele. Médico distinto, bela voz de tenor... Tais
foram as informações que deram ao pobre-diabo. Durante o resto da noite, apenas
pôde colher um ou dois olhares rápidos. Resolveu sair mais cedo para mostrar
que estava ferido.
Não foi logo para casa; vagou uma hora ou
mais, entre o desânimo e o furor, falando alto, jurando esquecê-la,
desprezá-la. No dia seguinte, almoçou mal, trabalhou mal, jantou mal, e
trancou-se no quarto, à noite. A consolação única eram os versos, que achava
lindos. Releu-os com amor. E a musa deu-lhe a força d’alma que a aventura de
domingo lhe tirara. Passados três dias, Ricardo não pôde mais consigo, e foi à
casa do Dr. Viana; achou-o de chapéu na cabeça, esperando que as senhoras acabassem
de vestir-se; iam ao teatro. Marcela desceu daí a pouco, radiante, e
perguntou-lhe ocularmente:
— Que tal me acha com este vestido?
— Linda, respondeu ele.
Depois, animando-se um pouco, perguntou
Ricardo à moça, sempre com os olhos, se queria que também ele fosse ao teatro.
Marcela não lhe respondeu; dirigiu-se para a janela, a ver o carro que chegara.
Ele não sabia (como sabê-lo?) que o jovem médico baiano, o tenor, o diabo,
Maciel, em suma, combinara com a família ir ao teatro, e já lá os estava
esperando. No dia seguinte, com o pretexto de saber que tal andara o
espetáculo, correu à casa de Marcela. Achou-a em conversação com o tenor, ao
lado um do outro, confiança que nunca lhe dera. Quinze dias depois falou-se da
possibilidade de uma aliança; quatro meses depois estavam casados.
Quisera contar aqui as lágrimas de Ricardo;
mas não as houve. Imprecações, sim, protestos, juramento, ameaças, vindo tudo a
acabar em uma poesia com o título Perjura.
Publicou esses versos, e, para lhes dar toda a significação, pôs-lhe a data do
casamento. Marcela, porém, estava na lua-de-mel, não lia outros jornais além
dos olhos do marido.
Amor cura amor. Não faltavam mulheres que
tomassem a si essa obra de misericórdia. Uma Fausta, uma Dorotéia, uma Rosina,
ainda outras, vieram sucessivamente adejar as asas nos sonhos do poeta. Todas
tiveram a mesma madrinha:
— Vênus! Vênus! divina Vênus!
Choviam versos; as rimas buscavam rimas,
cansadas de serem as mesmas; a poesia fortalecia o coração do moço. Nem todas
as mulheres tiveram notícia do amor do poeta; mas bastava que existissem, que
fossem belas, ou quase, para fasciná-lo e inspirá-lo. Uma dessas tinha apenas
dezesseis anos, chamava-se Virgínia e era filha de um tabelião, com quem
Ricardo se fez encontradiço para mais facilmente penetrar-lhe em casa. Foi-lhe
apresentado como poeta.
— Sim? Eu sempre gostei de versos, disse o
tabelião; se não fosse o meu cargo, escreveria alguns sonetinhos. No meu tempo
compus fábulas. O senhor gosta de fábulas?
— Como não? redarguiu Ricardo. A poesia
lírica é melhor, mas a fábula...
— Melhor? Não compreendo. A fábula tem
conceito, além da graça de fazer falar os animais...
— Justamente!
— Então, como é que disse que a poesia lírica
era melhor?
— Num sentido.
— Que sentido?
— Quero dizer, cada forma tem a sua beleza;
assim, por exemplo...
— Exemplos não faltam. A questão é que o
senhor acha a poesia lírica melhor que a fábula. Só se não acha?
— Realmente, parece que não é melhor,
confessou Ricardo.
— Diga logo inferior. Luar, névoas, virgens,
lago, estrelas, olhos de anjo, são palavras vãs, boas para poetas apatetados.
Eu, tirando-me a fábula e a sátira, não sei para que serve a poesia. Para
encher a cabeça de caraminholas, e o papel de tolices...
Ricardo aturou toda essa rabugice do notário,
para o fim de ser admitido em casa dele — coisa fácil, porque o pai de Virgínia
tinha algumas fábulas antigas e outras inéditas e poucos ouvintes do ofício, ou
verdadeiramente nenhum. Virgínia acolheu o moço com boa vontade; era o primeiro
que lhe falava de amores — porque desta vez o nosso Ricardo não se deixou ficar
atado. Não lhe fez declaração franca e em prosa, dava-lhe versos às escondidas.
Ela guardava-os "para os ler depois" e no dia seguinte agradecia-os.
— Muito mimosos, dizia sempre.
— Eu fui apenas secretário da musa, respondeu
ele uma vez; os versos foram ditados por ela. Conhece a musa?
— Não.
— Veja no espelho.
Virgínia entendeu e corou. Já os dedos de
ambos começaram a dizer alguma coisa. O pai ia muitas vezes com eles ao Passeio
Público, entretendo-os com fábulas. Ricardo estava certo de dominar a mocinha e
esperava que ela fizesse os dezessete anos para pedir-lhe a mão, a ela e ao
pai. Um dia, porém (quatro meses depois de conhecê-la), Virgínia adoece de
moléstia grave, que a pôs entre a vida e a morte. Ricardo padeceu deveras. Não
se lembrou de compor versos, nem tinha inspiração para eles; mas a leitura
casual daquela elegia de Lamartine, em que há estas palavras: Elle avait seize ans; c’est bien tôt pour
mourir, deu-lhe ideia de escrever alguma coisa em que aquilo entrasse por
epígrafe. E trabalhava, à noite, de manhã, na rua, tudo por causa da epígrafe.
— Elle
avait seize ans; c’est bien tôt pour mourir! repetia ele andando.
Felizmente, a moça arribou, ao fim de quinze
dias, e, logo que pôde, foi convalescer na Tijuca, em casa da madrinha. Não foi
sem levar um soneto de Ricardo, com a famosa epígrafe, o qual principiava por
estes dois versos:
Agora,
que a mimosa flor caída
Ao
terrífico vento da procela...
Virgínia convalesceu depressa; mas não voltou
logo, ficou lá um mês, dois meses, e, como eles não se correspondiam, Ricardo
vivia naturalmente ansioso. O tabelião dizia-lhe que os ares eram bons, que a
filha andava fraca, e não desceria sem estar inteiramente restabelecida. Um dia
leu-lhe uma fábula, composta na véspera, e dedicada ao bacharel Vieira,
sobrinho da comadre.
— Compreendeu o sentido, não? perguntou-lhe
no fim.
— Sim, senhor, entendi que o sol, disposto a
restituir a vida à lua...
— E não atina?
— A moralidade é clara.
— Creio; mas a ocasião...
— A ocasião?
— A ocasião é o casamento da minha pequerrucha
com o bacharel Vieira, que chegou de São Paulo; gostaram-se; foi pedida
anteontem...
Esta nova desilusão atordoou completamente o
rapaz. Desenganado, jurou acabar com mulheres e musas. Que eram musas senão
mulheres? Contou à mãe esta resolução, sem entrar em pormenores, e a mãe o
aprovou de todo. De fato, meteu-se em casa, as tardes e as noites, deu de mão
aos passeios e aos namoros. Não compôs mais versos, esteve a ponto de quebrar a
Vênus de Milo. Um dia soube que Felismina, a prima, ia casar. Maria dos Anjos
pediu-lhe uns cinco ou dez mil-réis para um presentinho; ele deu-lhe dez
mil-réis, logo que recebeu o ordenado.
— Com quem casa? perguntou.
— Com um moço da Estrada de Ferro.
Ricardo consentiu em ir com a mãe, à noite,
visitar a prima. Lá achou o noivo, ao pé dela, no canapé, conversando baixinho.
Depois das apresentações, Ricardo encostou-se ao canto de uma janela, e o noivo
foi ter com ele, passados alguns minutos, para dizer-lhe que estimava muito
conhecê-lo, tinha uma casa às suas ordens e um criado para o servir. Já o
tratava por primo.
— Sei que meu primo é poeta.
Ricardo, com fastio, deu de ombros.
— Ouvi dizer que é um grande poeta.
— Quem lhe disse isso?
— Pessoas que sabem. Sua prima também me
disse que fazia bonitos versos.
Ricardo, após alguns segundos:
— Fiz versos; provavelmente não os farei
mais.
Daí a pouco estavam os noivos outra vez
juntos, falando baixinho. Ricardo teve-lhe inveja. Eram felizes, uma vez que
gostavam um do outro. Pareceu-lhe até que ela gostava ainda mais, porque sorria
sempre; e daí talvez fosse para mostrar os lindos dentes que Deus lhe dera. O
andar da moça também era mais gracioso. O amor transforma as mulheres, pensava
ele; a prima está melhor do que era. O noivo é que lhe pareceu um tanto
impertinente, só a tratá-lo por primo... Disse isto à mãe, na volta para casa.
— Mas que tem isso?
Sonhou nessa noite que assistia ao casamento
de Felismina, muitos carros, muitas flores, ela toda de branco, o noivo de
gravata branca e casaca preta, ceia lauta, brindes, recitando ele Ricardo uns
versos...
— Se outro não recitar, se não eu... disse
ele de manhã, ao sair da cama.
E a figura de Felismina entrou a persegui-lo.
Dias depois, indo à casa dela, viu-a conversar com o noivo, e teve um pequeno
desejo de atirá-lo à rua. Soube que ele ia na manhã seguinte para a Barra do
Piraí, a serviço.
— Demora-se muito?
— Oito dias.
Ricardo visitou a prima todas essas noites.
Ela, aterrada com o sentimento que via nascer no primo, não sabia que fizesse.
A princípio resolveu não aparecer-lhe; mas aparecia-lhe, e ouvia tudo o que ele
contava com os olhos postos nos dele. A mãe dela tinha a vista curta. Na
véspera da volta do noivo, Ricardo apertou-lhe a mão com força, com violência,
e disse-lhe adeus "até nunca mais". Felismina não ousou pedir-lhe que
viesse; mas passou a noite mal. O noivo regressou por dois dias.
— Dois dias? perguntou-lhe Ricardo na rua
onde ele lhe deu a notícia.
— Sim, primo, tenho muito que fazer, explicou
o outro.
Partiu, as visitas continuaram; os olhos
falavam, os braços, as mãos, um diálogo perpétuo, não espiritual, não
filosófico, um diálogo fisiológico e familiar. Uma noite, Ricardo sonhou que
pegava da prima e subia com ela ao alto de um penedo, no meio do oceano. Viu-a
sem braços. Acordando de manhã, olhou para a Vênus de Milo.
— Vênus! Vênus! divina Vênus!
Atirou-se à mesa, ao papel, meteu mãos à
obra, para compor alguma coisa, um soneto, um soneto que fosse. E olhava para
Vênus — a imagem da prima, — e escrevia, riscava, tornava a escrever e a
riscar, e novamente escrevia até que lhe saíram os dois primeiros versos do
soneto. Os outros vieram vindo, cai aqui, cai acolá.
— Felismina! exclamava ele. O nome dela há de
ser a chave de ouro. Rima com divina e
cristalina. E concluía assim o soneto.
E tu,
criança amada, tão divina
Não és
cópia da Vênus celebrada,
És antes
seu modelo, Felismina.
Deu-lho nessa noite. Ela chorou depois que os
leu. Tinha de pertencer a outro homem. Ricardo ouviu essa palavra e disse-lhe
ao ouvido:
— Nunca!
Indo a acabar os quinze dias, o noivo
escreveu dizendo que precisava ficar ainda na Barra umas duas ou três semanas.
Os dois, que iam dando pressa a tudo, trataram da conclusão. Quando Maria dos
Anjos ouviu ao filho que ia desposar a prima, ficou espantada, e pediu que se
explicasse.
— Isto não se explica, mamãe...
— E o outro?
— Está na Barra. Ela já lhe escreveu pedindo
desculpa e contando a verdade.
Maria dos Anjos abanou a cabeça, com ar de
reprovação.
— Não é bonito, Ricardo...
— Mas se nós gostamos um do outro? Felismina
confessou que ia casar com ele, à toa, sem vontade; que sempre gostara de mim;
casava por não ter com quem.
— Sim, mas palavra dada...
— Que palavra, mamãe? Mas se eu a adoro;
digo-lhe que a adoro. Queria que eu ficasse a olhar ao sinal, e ela também, só
porque houve um equívoco, uma palavra dada sem reflexão? Felismina é um anjo.
Não foi à toa que lhe deram um nome, que é a rima de divina. Um anjo, mamãe!
— Oxalá sejam felizes.
— Com certeza; mamãe verá.
Casaram-se. Ricardo era todo para a realidade
do amor. Conservou a Vênus de Milo, a divina Vênus, posta na parede, apesar dos
protestos de modéstia da mulher. Convém saber que o noivo casou mais tarde na
Barra, Marcela e Virgínia estavam casadas. As outras moças que Ricardo amou e
cantou, tinham já maridos. O poeta deixou de poetar, com grande mágoa dos seus
admiradores. Um deles perguntou-lhe um dia, ansioso:
— Então você não faz mais versos?
— Não se pode fazer tudo, respondeu Ricardo,
acariciando os seus cinco filhos.
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