Velha paixão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Havia
minutos que o Israel lidava com o raino,
no terreiro, em frente à entrada da casa. Queria sair ao caminho e não
podia, porque o cavalo, ainda meio redomão, não “encostava” direito,
impedindo-lhe correr as varas aos moirões da porteira, embora metesse-lhe relho
a valer. Muito fogoso e pouco “feito de boca”, de novinho que era, pois o rapaz
o comprara quando ainda em “repassos” na mão do domador e dono, o crioulo,
Bonefino, do Rapa, negava rédea a uma camba, e de tal modo que, esporeado
a obedecer, empacava xucramente, saltando, empinando-se, boleando-se, aos
galões e aos trancos. Coberto já de suor, não parava, entretanto, o animal, aos
pinchos, para trás e para frente, quase no mesmo lugar, sem querer reatar a
marcha. Era preciso, talvez, apear. Mas o cavaleiro se recusava a isso porque
abrir uma porteira a cavalo, em ginete de “grito” e fazendo figura, é para a
ardente mocidade roceira verdadeira glória e façanha. E por isso o Israel
teimava, lançando pequenas “largadas” que revolviam o terreno, abancando e
virando consecutivamente de encontro à cancela, e, curvado todo sobre o arção,
alongava o braço para as varas, sem poder corrê-las, no entanto. E o danado do raino a negar seguidamente a
camba! Furioso, recusando desmontar por lhe parecer uma humilhação, dispunha-se
já a fazer o cavalo saltar a porteira de arranco, quando, numa das voltas da
estrada, surgiu de repente o Julião, de mão erguida para ele, no seu malacara lunanco:
— Ó Rael,
não te jogues! Olha que perdes o cavalo! Espera lá um instante!...
O rapaz deteve-se então, mas chicoteando e esporeando sempre o animal, que
rodava em grandes empuxões revolvendo todo o chão.
O outro abancou de repente, cosendo-se à porteira, cujas varas começou a
correr destramente, com uma das mãos, e, tolhido e rubro do esforço, ia dizendo
ao Israel, seu antigo camarada de infância:
— Tu és o
diabo, Rael! Tu não te emendas, rapaz! Queres ter mais força que o “raino”? Olha a “guexa” do costão!...
Falava numa
voz contrafeita, quase dependurado do cavalo, as veias do pescoço tumefeitas de
sangue.
Com as suas
derradeiras palavras, aludia à queda que o amigo levara, nos Ingleses, pela
festa dos Navegantes, ao montar, pela primeira vez, uma égua xucra, que saltara
com ele um precipício, derrubando-o numa sanga.
O Israel,
apenas foi saindo ao caminho, retrucou-lhe na sua pressa de garrador intrépido:
— Qual o
que, Julião! Já lá se foi esse tempo! Hoje não há cavalo que me meta medo...
E
perguntou-lhe o que andava a fazer e para onde se atirava, pois não o via há um
ano, desde que o Julião se mudara para as Aranhas, onde morava agora, num
sítiozinho que comprara, ao voltar do Rio Grande, com as economias de um
triênio de mar, na catraia da barra, lutando na braveza das ondas.
O outro tornou,
muito alegre, correndo a última vara a porteira, e vindo emparelhar-se com o
Israel, que já largara estrada abaixo, num trote:
— Vou até a
Rua Velha, ao José escrivão, por causa da escritura de umas terras. Aquele
ranchozinho do Lúcio, na encruzilhada do Santos, negociei-o para a mamãe, que
não se dá com a Merência e quer ter o seu canto. Custou-me muito separar-me da
velha, coitada, uma santa, como sabes. Mas a Merência é uma fúria, e há dois
meses para cá, mal eu saía para a roça, punha-se em rixa com a velha que era
uma coisa sem conta. E fora tal a quizila que, para ela não lidar pela casa,
chegara até a esconder-lhe o bordão. A mamãe, que já se não tem sobre as pernas
sem um amparo qualquer, assim privada da cotia, passava os dias amarrada à esteira,
chegando a aguentar “precisões”. Essa judiaria me trazia cá o sangue a ferver
e, de uma feita, cheguei a “ensinar” a Merência com alguns safanões. Mas isso
andou-me a doer cá por dentro semanas e semanas. É uma estimação que a gente
tem que não pode. E eu, para não cair em outras razões, tratei o ranchozinho
com o Lúcio, a fim de a velha sossegar no seu canto. E ela já lá está há dois
dias, muito concha, a bater e a fiar algodão. Foi um peso que tirei cá do
peito. Por isso, hoje, peguei cedo o lunanco, e botei-me, como vês, para o José
escrivão. Depois há festa hoje por lá, pois vão meter um boi bravio na vara e há coroada e fandangos.
O Israel
ouvia tudo em silêncio e só se interessou verdadeira mente pelas últimas
palavras, perguntando-lhe ainda duvidoso:
— Então hoje
há folia por lá, Julião?! Mas quem te contou? Cá no arraial ainda não se sabe
de nada. Até ontem à noite, pelo menos, não corria essa nova, nem pela venda do
Cosme, nem pelo engenho do Albano, e lá se sabe sempre de tudo pelo Albino e o
Pires, que andam a pombear todo o dia por aquelas bandas. É verdade que os não
encontrei ontem por ali, na trela costumada. Mas se tal se desse, os rapazes da
praia saberiam de tudo, e eles lá estiveram a grulhar até ao cantar do galo, e
nem “pio” sobre a festa na Rua Velha! É para admirar, Julião, que eles não
soubessem do caso! E para admirar, meu rapaz!...
O Julião,
porém, insistia:
— Pois há
folia, repito, e é na casa do Vidal. O Luís Mafra foi quem me disse, anteontem,
quando veio do Zé Alves. A rapaziada de lá estava muito influída, por ser a
última noite de terço no Vidal e pelo
boi que vão pegar hoje para a “vara”. O boi vai estar só do “fino”, pois vão
laçá-lo no campo, do lado do rio do Brás. O diabo é “meio inteiro” e investe
como um raio! Já tem dado corridas danadas na gente que atravessa o Luís Dias e
a Roça de Baixo... Ó Rael, vamos num pulo até lá? Vai ser um barrigado, menino,
pois a que tempo não se pega um bagual...
Hoje é feriado, dia forro, nada se tem a perder. Aproveita-se o brinquedo e
o raino toma mais um
“repasso”...
— Não, Julião; hoje, não! Estou aqui de lago nos “tentos”, para ir pegar o
salino para o tronco. O diabo já está com um ano e muito bom para se amansar
para o engenho e para o carro. Já devia ter ido há mais tempo, mas tu conheces
as coisas: hoje para amanhã, amanhã para depois, e lá se vai todo o tempo...
Não, Julião, hoje não posso... Vamos juntos até a Estiva, e de lá ou tomo pros
Banhados e tu para Rua Velha ou para o rio do Brás... Depois não me convém aparecer por ali por causa da Aninhas. Lembras-te
do caso da Aninhas, não?... Se eu for até ao Vidal, tenho de entrar na folia do
boi, e vou decerto encontrar-me com ela que há de andar entre as raparigas... E
Deus me livre, aquele povo vai-me chamar de oferecido... Não, lá não ponho os
meus pés nem a mandado de Deus! É uma questão de capricho que não há quem não
tenha... E vamos puxar, menino, que o sol já vai alto...
Romperam
então num galope, sob os espinheiros tufados que beiravam, a uma e outra
margem, o caminho arenoso, entrançando no alto as ramagens que formavam um
largo túnel de renda verde, sobre um fundo dourado. O sol vivo da manhã — uma
alegre manhã estival — aquecia todo o ar, malhando o solo de gemas rutilantes
que tremiam na areia ao tremer das folhas na aragem.
Em pouco
chegavam à Estiva, onde a estrada desafogava amplamente no campo, imensa
planície de esmeralda cortada em todas as direções pelos sulcos negros dos
carros e as fitas coleantes dos atalhos, interrompidas aqui e além por altas macegas
de ervagens. No começo da Estiva cavalos dispersos pastavam, de focinho no
chão, tosando pacificamente a grama, enquanto outros, em manadas, caminhavam, a
passo, para a Roça de Baixo. Densas tropas de reses mansas moviam-se
lentamente, em manchas de cores variegadas, em plena campina rasa ou contra a
orla dos capões. Do céu, de um azul delicado, onde nuvenzinhas erravam em
sidéreos vagares, caía a luz fulgurante iluminando tudo e fazendo brilhar os
banhados. Ao fundo, os morros da Rua Velha erguiam os cimos no espaço,
ostentando em seus pendores e lombadas fartas culturas de cana, de mandioca e
de milho, fulvas de maturidade. E dentre as altas frondes dos pomares,
branquejava alegremente, ao sol, a frontaria risonha dos engenhos e casais...
Na encruzilhada
das trilhas que levavam ao rio do Brás e aos Banhados, quase beirando as matas
virgens da Caieira, o Israel estacou o cavalo e, puxando de um grosso e longo
cigarro que trazia à orelha direita, acendeu-o ao isqueiro, dizendo
imediatamente ao outro:
— Bem;
adeusinho, Julião, Vou já pegar o salino,
para o meter no tronco esta tarde...
O outro
procurava retê-lo, exclamando:
— Ora
deixa-te disso, Rael. Guarda o novilho para depois. Hoje é dia de descanso. Vem
comigo à Rua Velha, que nos divertiremos à grande. Deixa os caprichos para
outra vez. Isso não passa de tolice. Eu sei que gostas ainda da Aninhas, e ela
é doida por ti. Isto é mais do que sabido. E todos dizem que vocês vêm ainda a
casar... Tens um bom dia para as “pazes”. Ninguém repara. E fazes isso sem
sentir. Deixa o novilho pra depois, ó Rael. Anda daí, homem! Caprichos o
demônio que os leve!...
O Israel
meditava, tirando largas fumaças ao cigarro, com os olhos vagamente perdidos na
imensa amplidão do campo. Estava quase, quase a ceder às palavras tão docemente
convidativas do amigo. Mas dois pensamentos, ambos de igual possança e império,
inteiramente adversos, debatiam-se-lhe no seu espírito, e eram — primeiro, o
orgulho em manter bem saliente e bem alta a aparente indiferença que votava à
Aninhas desde que, ao voltar do Rio Grande, soubera que ela, durante os seus
três longos anos de ausência, voltara-se deslealmente para outro, quando tinha
com ele casamento, embora todos lhe dissessem que isso não passara de uma
leviandade inocente e passageira da rapariga; segundo, não deixar transparecer
nunca que partia dele o desejo de um reatamento, mas fazer com que isso, ao ter
de dar-se, ficasse patente publicamente como coisa toda originada dela.
Entretanto, se tal jamais sucedesse, paciência: resignar-se-ia a sofrer, a
morrer com essa dor. O que não era possível é que, ludibriado uma vez no seu
grande afeto — não obstante logo se arrependesse dessa falta a ludibriadora —
fosse ele, agora, o primeiro a submeter-se, a dar o braço a torcer. Amava-a
talvez, ao presente, mais intensamente que dantes: não queria, porém, fazer de
“padecente” e, sobretudo, sancionar precedentes que lhe podiam, quem sabe!
acarretar desgraças futuras. O Julião, no entanto, arrastava-o. E ele estava
vai, não vai, para o acompanhar à Rua Velha, curioso de ver como o enfrentaria
a Aninhas, após dois anos de abandono...
Por isso,
enquanto o amigo falava, consultava-se intimamente, com os olhos sem fixidez
certa e perdidos no campo, a pesar tudo com critério para tomar uma deliberação
condigna. Esta veio inconsciente. Iria, por que não? Nesse ato não havia o
menor desdouro ou vexame. Sim, porque não poderia toda a vida andar a furtar
voltas à Aninhas. Seria um nunca acabar e, mais do que isso, uma tolice... E,
teso de repente na sela, como para uma heroica largada, gritou ao amigo:
— Pois sim,
Julião! Deixa o novilho para outro dia. Vamos lá à Rua Velha!...
E deitaram
ambos a galope para o rio do Brás. Do atalho do Siqueira, para lá do Capão
Alto, encontraram já um ajuntamento de povo, por entre os macegões e rinchões.
Eram rapazes a pé e laçadores a cavalo, que andavam a tocar um boi de pelo
negro e de guampas retorcidas para o recanto do rio, onde o queriam pegar.
Ao vê-los
chegar a galope, um dos laçadores que passava em torno à alimária, numa
disparada, girando o laço no ar em largas voltas campeiras, berrou ao Israel,
acenando num gesto vivo do braço:
— O Rael!
Tira o laço dos “tentos”! E acode cá, rapaz, que nós precisamos de ti!...
Homens a pé,
correndo igualmente em volta para cercar o animal, gritaram também:
— Encosta o raino, Rael! E ataca o “bicho” lá
pela Toca, cerrando-lhe o laço nos galhos!...
O Israel,
sem detença, calcou esporas no cavalo, e partiu para o sítio indicado, abrindo
o laço no ar, numa atitude de mazepa e peão. O camarada, impelido como ele numa
rajada “gaúcha”, largou a toda a brida, a escorar o animal noutro ponto.
Por toda a
parte, em torno, via-se o gado manso a correr, assustado, de cauda no ar, a
refugiar-se nos vassourais e capões. O boi xucro, apertado contra a volta do
rio sob a perseguição dos cavaleiros, já com dois laços partidos e os pedaços
de rastros, atirava-se furiosamente à água, atravessava-a a nado, galgava
presto a outra margem e tomava, numa disparada terrível, em direção ao arraial.
A multidão
seguia-o, correndo por entre o matagal, a cercá-lo por todos os atalhos, numa
gritaria infernal:
— Oô! oô!
oô! oô!...
O boi fora
esbarrar, na corrida, à Cancela grande, que fecha o caminho na cerca geral das
pastagens particulares extremantes com o campo, e não podendo vencê-la de um
salto, varou o posto do engenho do Maurício, indo sair na estrada real, onde
tomou para os lados do Vidal. O povo, que enchia o caminho nessa altura, em
frente ao pasto da casa, ao centro do qual se erguia um grande chorão secular
onde o animal ia ser amarrado para o brinquedo da “vara” — tocou-o porteira a
dentro e atirou-se após ele.
Daí a pouco
toda a estrada rumorejava à galopada furiosa dos laçadores montados, vindo à
frente de todos, a bolear garbosamente o laço, o Israel que parecia um
centauro. De envolta com eles, outra multidão de homens a pé vinha correndo,
num berreiro colossal. E todos se jogaram para o pasto, perdendo-se entre os
outros, que já batiam as capoeiras onde o boi se asilara.
Defronte, no
vasto prédio do Vidal, situado num alto, a poucos passos da estrada, pelo
terreiro e às janelas enxameavam as filhas da casa e as moças da vizinhança, em
meio das quais se via a Aninhas, alvoroçada e curiosa com a presença inesperada
do Israel, que ela descobrira logo entre os laçadores. As amigas que o tinham
visto também, começaram a caçoar:
— Então,
Aninhas, estás outra vez nas tuas sete quintas, hein?! Viste como o Israel
passou ufano a cavalo?... Deixem lá dizer, vocês ainda se gostam... Hoje
decerto é o dia das “pazes”... E se não, logo à noite veremos...
A Aninhas
protestava, mas a sorrir, o rosto muito fresco e rosado, os olhos fulgindo de
alegria:
— Que não!
Nem pensar, nisso, meninas! Nem eu quero, nem ele... Com tudo há tanto tempo
acabado, era o que faltava! Estas coisas não se fazem assim...
E via-se-lhe claramente nos olhos — uns formosos olhos negros que se não
despegavam um instante do pasto — um lumezinho de curiosidade e cuidado pelos
movimentos do rapaz que galopava airosamente, com os outros, no laçamento do
boi.
Entre a
grande massa de povo agitando-se em toda a zona em volta, era uma verdadeira
preocupação saber quem seria o primeiro a laçar. Faziam-se apostas, optando uns
pelo Manoel Maria e outros pelo Zé Tomás, os famosos peões e laçadores da Rua
Velha. Mas, entre os homens, matronas e moças que enchiam a casa do Vidal, a
maioria era toda pelo Israel. Ali não havia quem o excedesse naquilo! Era
impossível! E todos se recordavam perfeitamente do que ele fizera, havia seis
anos, com o queimado, um boi xucro
como nunca mais pisara outro no sítio. O animal levara o dia inteiro a pintar,
a zombar dos melhores peões, partindo laços, saltando cercas, investindo como
uma fera contra cavaleiros e pedestres e levando tudo, ante si, de roldão. Pois
o único que o conseguira laçar — e isto já à boca da noite ― fora o Israel, no
seu famoso picaço, um cavalo ligeiro
como um cervo e valente como um leão...
Nisto, o boi
surgiu de repente, de cauda no ar e sinistro, sobre grama rasa do pasto, bem em
frente à porteira. E, em galões violentos e loucos que revolviam o solo,
investia como um cão contra a gente de pé, o laço cerrado nos chifres e preso à
chincha larga do raino, em que vinha
o Israel.
De todas as
bocas uma aclamação estrugiu, triunfante. As moças, lá no alto da casa, em
sinal de alegria, agitavam os lenços. E a Aninhas, arrebatada, tirou a faixa
vermelha que trazia à cintura e, acenando com ela ao rapaz, deixava-a palpitar
nervosamente ao vento como uma flâmula de sangue...
Mas o boi,
num furor possantíssimo e açulado pelos gritos do povo, arremetia cegamente
para todos os lados e por fim voltava-se todo para o cavalo do Israel, quando o
Manoel Maria deitou-lhe outro laço certeiro nas guampas. Então, no claro que
abriu entre a gente o laçador, o boi se jogou numa disparada terrível, e o
laço, retesado de tirão, partiu-se no ar, num estalo. O Julião, porém, saiu-lhe
logo na “cola” e enquanto o Israel buscava evitar outro tirão acompanhando a
fera na corrida, ele atirou-lhe o seu laço, apanhando-a pelos chifres, e,
disparando para frente, foi abancar adiante, mantendo-a agora sem movimento,
para trás ou para vante, entre os dois laços tesos.
O povo
prorrompia agora em uma nova aclamação ao Israel que, muito risonho e num
júbilo por se sentir a principal figura daquela festa, fixava mais
demoradamente então a janela da casa do Vidal onde estava a Aninhas a agitar
ainda para ele a sua larga faixa vermelha, que tremia alegremente ao vento como
uma estranha flâmula de sangue.
Mas era
preciso meter o boi na “vara” e o Israel gritava já por uma corda para essa
função, quando um dos escravos do Vidal se precipitou pela porteira com uma
peça de rijo cabo de cairo à cabeça. O Israel apeou então, e para coroar a alta
façanha daquele dia, desenrolou rapidamente uma das pontas do cabo e, com uma
dessas resoluções intranstornáveis da afoiteza inculta e bronca quando investe
com o perigo, devagar e sorrindo, encaminhou-se serenamente para o boi e
deitou-lhe corda aos chifres. O boi arrancou logo em marradas satânicas, mas
ele com admirável rapidez e destreza deu um salto para o lado, continuando a
desenrolar o seio coleante da corda. Em seguida dirigiu-se para o grosso chorão
secular e aí a amarrou a grandes voltas seguras. E voltou para a fera, que
empacara de novo, a língua de fora, os olhos em sangue, furiosa e berrante,
entre os dois laços retesos. Ardido, mas cauto, foi avançando cuidadosamente
por um dos flancos da rês para desprender os dois laços e deixá-la somente a
puxar pela corda possante. Com efeito, num abrir e fechar de olhos realizou o
seu intento e voltou imediatamente a montar o seu raino...
A multidão
vitoriou-o ainda, em prolongada aclamação.
E todos
achegaram-se do animal num grande círculo compacto, a jogar-lhe paus e calhaus
apanhados ali mesmo, açulando-o com um vozear ensurdecedor e assobios
estrídulos, desenvolvendo em torno, com a rapidez de um aparelho mecânico, toda
a sorte de figuras, cambalhotas, saltos, trejeitos. Alguns rapazes mais atrevidos
agarravam-no pela cauda, torcendo-a destros a um lado, para o fazerem
espinotear furioso; ou montavam-lhe à garupa ou no dorso, fazendo verdadeiros
equilíbrios e deslocações de acrobatas...
Assim
entregue o boi à multidão, os laçadores subiram até a casa do Vidal, a tomar
uma pinga da branca. Mas o
Israel, ainda um pouco vexado, recusou-se a acompanhá-los, apesar dos rogos de
todos e dos instantes convites do lavrador, que ameaçava até de o arrastar por
um braço. À noite, porém, ansioso por acabar de uma vez com aquela “situação
impossível” e falar francamente à Aninhas, que já duas vezes com as amigas
descera a “espiá-lo” na estrada, em frente à venda do Cipriano onde ele fora
jantar, dirigiu-se resolutamente para a habitação do Vidal, a assistir ao coroado e tomar parte nas danças.
Na sala,
onde estava armado o altar entre duas portas ao fundo, já o terço começara. Todos, ajoelhados,
acompanhavam em coro, e numa voz arrastada, o Pai-Nosso que o capelão rezava num tom rouco e monótono.
Mas o Israel se acomodara num recanto onde estavam os homens, seguido
sempre do Julião — que fraternalmente o não deixara um momento durante todo o
dia — deparou-se-lhe a Aninhas, que o fitou logo com o maior desembaraço, a
sorrir, com os seus dentes muito alvos. E enquanto as oblatas subiam até Deus
não cessaram ambos de olhar-se, enlevados e felizes, no reatamento da sua velha
paixão.
Quando as
danças começaram, em quadrilhas, polcas e valsas da roça que se sucediam
entusiásticas e com pequenos intervalos — o Israel e a moça, em recíproca
adoração, não se despegaram um do outro, nas marcas, senão apenas por
instantes. Parabéns e risos festivos, partindo de raparigas e rapazes, choviam
de toda a parte sobre os dois, no meio de imenso turbilhão dos pares...
Ao terminar
a festa, já com o sol despontando nos montes, estavam definitivamente
cimentadas as “pazes” entre os dois namorados e, ao trocarem o adeus de
despedida, ela lhe pediu que a fosse ver, ao menos uma vez por semana, como
dantes.
E assim o
Israel triunfou na sua velha paixão.
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