Velada
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Em frente ao
Rio Grande, o Itaoca bramia
surdamente pelas grossas chaminés desprendendo fumaça. O longo casco asseteado,
que varava as ondas, engolindo as distâncias a milhas, na sua velocidade de
expresso, retesava, à proa, a forte amarra inglesa, oscilando levemente,
mergulhada já a faixa rubra do fundo, na planície das águas. Pronto e
carregado, estava a largar nesse instante para o Rio de Janeiro. E como um
cavalo de raça, todo ele fremia, impaciente da demora arfando, dando golpes de
hélice, abrindo a rade em frisos
trêmulos de espuma.
Escaleres e
lanchas, vindos de terra a toda a força de remos, manobravam e davam à popa,
junto ao leme, abalroando-se às vezes na pressa da atracação. Catraieiros aos
gritos, num tumulto, xingavam-se mutuamente, em protestos hostis — uns, de pé, brandindo os croques contra o patamar da
escada, ou sobraçando malas e bagagens; outros, debruçados da borda os braços
estendidos, amparando as embarcações. Passageiros retardados, da última hora,
ansiavam, mudos em meio à balbúrdia, pelo portaló do paquete. E escada acima,
um fervilhar de corpos e volumes, em demanda do convés.
No alto, à
balaustrada, o imediato, a tez queimada e cor de papoula, berrava para os
botes, ordenando que atracassem também pelo outro lado. Dizia mesmo palavras
ásperas aos boteleiros recalcitrantes, tratando rudemente a todos, na azafama
da partida, indignado por deixarem tudo para os últimos momentos. Inflava-se
tanto que o comandante julgou dever intervir:
— Mas, para
que essa rascada? Temos tempo... O navio não precisa disso; em chegando lá fora
come léguas...
E
voltando-se para os passageiros, que curiosamente olhavam tudo aquilo,
acrescentou:
— Quatro ou
cinco dias levam os outros vapores até ao Rio de Janeiro; para o Itaoca tal viagem é questão de quarenta
e oito horas...
E, mãos nos
bolsos do grosso jaquetão de pano piloto, atacado de alto a baixo e
contornando-lhe densamente as formas robustas, subiu para o passadiço correndo
sob os toldos brancos.
À ré, num
recanto isolado, junto às gaiútas da câmara, sentada em uma cadeira de viagem,
uma moça, espécie de miss, envolta em
custosa pelica, parecia alheada de tudo. A fisionomia, bela e triste, túmida de
lágrimas, mostrava através o véu espesso que a cobria, as equimoses de uma
longa amargura. Os cabelos, ondulados e bastos, caíam-lhe pelas costas em
madeixas escuras da maciez do cetim. E seus olhos formosíssimos reluziam
vagamente, num encanto doloroso, sob o pranto que fluía.
Ao seu lado,
uma figura de governanta, esgrouviada e velha, lembrando, na face, o perfil de
uma avestruz, procurava consolá-la, dizendo-lhe de instante a instante:
— Não se
aflija mais, Dora! Procure distrair-se. Olhe que a senhora assim se está
matando...
E
permaneciam ambas indiferentes às manobras e ruídos em torno, voltadas para os
lados de terra, olhando saudosamente a cidade e o recorte meridional arenoso da
Lagoa dos Patos. Aí a planície infindável corria longinquamente até o
horizonte, tendo apenas, de espaço a espaço, grossas intumescências ou traços
fugidios de arvoredo, nas margens rasas dos rios. Para oeste, longe, nuvens
densas de inverno, faziam como o vago desenho de serras, ondulando em
recortadas silhuetas. E para leste, entre as duas pontas aguçadas da costa, o rasgão
azulado da barra, espumando em gigantescos velos de prata...
Afinal, o
paquete zarpou em direção ao pontal do sul, onde se ergue a torre esguia do
farol, semelhando à distância o chifre colossal de algum rinoceronte
fantástico, cujo focinho monstruoso mergulhasse no mar; e, em pouco, entrou a
cabriolar na tumidez bramante das ondas, rolando em vagalhões alterosos e
cobrindo de largas rendas de espuma a vastidão curva das praias. Nos bancos de
areia a água torvelinhava, enovelava-se em fofos alvacentos de arrebentação,
dando um sinal e um aviso de lugar temeroso aos transeuntes da barra. A um
lado, os cômoros de São José do Norte, de uma alvura imaculada, pareciam
colinas de gelo. O oceano bramia furiosamente, numa perpétua revolta de costa
indomável, recordando os mares bravios do norte da Europa, onde a vaga jamais
dorme na sua ronda infernal.
Os
passageiros, amedrontados com os balanços do vapor, nas vagas curtas do canal,
num temor de morte ou na repugnância do enjoo, recolheram-se logo às cabines. E foi só quando os vagalhões
amainaram, em pleno mar largo, por ocasião do chá à noite, que de novo se
reuniram, numa algazarra alegre e na camaradagem íntima das viagens, deixando
as profundezas das celas de bordo.
Os olhos
baixos e tristes, as lágrimas mal contidas da moça passageira, o véu espesso
ocultando o rosto, a estranheza da face excêntrica da governanta, tinham
lançado a bordo uma curiosidade intensa. Na desocupação da viagem, todos
estavam curiosos por saber a história da triste criatura e a origem do seu
pranto, que jamais estancava, teimando em fluir involuntariamente daqueles
olhos de miss. Indagavam insistentemente, num zumbido segredeiro correndo de
lábio a lábio o salão do paquete; e, por fim, se soube todo o caso misterioso
por um velho estancieiro de Bagé, que vinha num camarote, muito prostrado pelo
enjoo.
De Bajé era
também a moça, e na cenografia pitoresca dos arredores dessa cidade de
campanha, se tinha passado um nobre romance a dois. Um filho de fazendeiro,
instruído e opulento, com um porte fidalgo e o dandismo característico dos
rio-grandenses, e que se educara na Europa, fora o galã dessa história de amor.
Quando voltara definitivamente à sua terra, mais fidalgo e mais dândi que
dantes, fascinara irresistivelmente a adorável timidez de uma das filhas de um
tio estancieiro, uma prima formosíssima, chamada Dora, e que tinha sido educada
nas irmãs de São José, em Porto Alegre. A jovem, após seis anos de colégio,
tornou a Bagé, justamente por aquele tempo da chegada do primo. Toda ela era
uma beleza seráfica, com a diafaneidade de uma Virgem de missal. Jamais
namorara, e era um lírio. A sua prece, no rosto lindo, dava-lhe a atitude ideal
da figura de um quadro célebre, A oração,
que a reprodução oleográfica, abastardando a genialidade do grande artista
que o fizera, espalhou por todo o mundo. O seu perfil de santa medieval, tocado
de uma auréola mística, dava-lhe a placidez, a humildade e a resignação das Horas Marianas e da Imitação de Cristo. Mas a natureza, colocando-a frente a frente ao
belo guasca elegante, traspassou-a
vivamente com a espada das paixões, flamejando-lhe o ser na faísca dos afetos
supremos. Amou violentamente, arrebatadamente, a celeste criatura, na
intensidade de um único amor triunfante...
Entretanto,
o robusto rapaz, fidalgo e dândi, que suscitara as flamas daquele sentimento,
caiu de repente aniquilado por um tifo dos campos, durante os calores candentes
do verão, nas imprudências de cavalgatas e caçadas ao sol brutal, escaldante. O
rude golpe prostrou Dora para sempre...
A mesma violência que mostrara ao
amor, votava agora à viuvez ou a orfandade de seu coração. E, dentro em pouco,
a Heloísa que existia nela feneceu, e em seu lugar reapareceu a freira de
outrora, de espessos véus e fronte mística de anjo, a velada do Senhor, a noiva
viúva, aquela que as irmãs de São José tinham feito nascer para a Crença e para
o Sonho...
E agora,
após uma prostração de meses, lá ia ela, num apartamento ordenado pelos
médicos, em demanda do Rio de Janeiro, para a companhia de uma tia, na
esperança de toda a família de que a imensa capital, rumorosa e álacre,
conseguisse dissipar aqueles véus espessos, afogando em esquecimento a
funerária lembrança assoladora da existência de Dora, e aguardando ela
volvesse liberta para sempre de dores passadas, abrindo outra vez, à alegria e
à vida, a sua alma de vinte anos...
Talvez que semelhante coisa
viesse a suceder mais tarde.
Mas, toda a
viagem, a viúva e noiva triste, conservou inclinada languidamente, sob a tule
espessa do véu, a face empalidecida, imaculada e virginal de monja.
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