Uns braços
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.
— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo?
Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma
boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não.
Estúpido! maluco!
— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê
aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele
maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um
escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono
pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso
quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que
acabasse. Borges expectorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e
os homens.
Não digo que ficou em paz com os meninos,
porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e
bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha,
que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um
corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na
Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador
Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores
de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante alguns minutos não se ouviu mais que
o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e
vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava
logo calado.
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando
levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em
que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado.
Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e
de tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em
trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos
de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à
mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes
grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é
justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara
todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha
meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos
braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas
também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco;
alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente
de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro; nas orelhas,
nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.
Acabaram de jantar. Borges, vindo o café,
tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos,
escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na
mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao
nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à
larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre
um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele
imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois,
um São Pedro e um São João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa.
Vá que disfarçasse com São João, cuja cabeça moça alegra as imaginações
católicas, mas com o austero São Pedro era demais. A única defesa do moço
Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por
nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para
eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.
— Homem, você não acaba mais? bradou de
repente o solicitador.
Não havia remédio; Inácio bebeu a última
gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da
casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a
uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das
águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago,
inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta,
quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia
cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o
Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao
distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava
e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe
dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a
via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão,
de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio,
porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
"Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo
daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado
pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A
educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até
que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que
eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No
fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso.
Aguentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do
silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por
dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e
Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da
frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou
alguma coisa. Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da
família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e
pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca
do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a
amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e
beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e
mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.
— Que é que você tem? disse-lhe o
solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
— Não tenho nada.
— Nada? Parece que cá em casa anda tudo
dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos
dorminhocos...
E foi por ali, no mesmo tom zangado,
fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes
grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não
estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o
Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redarguia que andava
cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e
descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao
colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e
contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito
fim: — vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D. Severina apaziguava-o com desculpas, a
pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que
eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que
acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges,
cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi
fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo
e com a descoberta que acaba de fazer.
Tudo parecia dizer à dama que era verdade;
mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação
moral, que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que
era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao
solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui
estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente
ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as
atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de
estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau
acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de
observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.
Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo
dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá
era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde
observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e
temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um
sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D.
Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o
melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à
pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar
tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir
que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio
Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo,
muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras
partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era
curto.
— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos
primeiros dias.
Chegava a casa e não se ia embora. Os braços
de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período
da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma ideia original e
profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia
andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e
porquê.
D. Severina tratava-o desde alguns dias com
benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura,
havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que
não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de
amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão.
Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais
fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava
um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então
que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era
menos quando ria.
A agitação de Inácio ia crescendo, sem que
ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma.
Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava
as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que
lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do
trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no
topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo
acudido a ver quem era.
Um domingo, — nunca ele esqueceu esse
domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a
mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as
gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou
avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era
um imenso domingo universal.
Inácio passava-os todos ali no quarto ou à
janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros
tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas
horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado
muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler.
Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias
tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao
cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco
minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se
espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a
desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram
os seus mesmos braços.
É certo, porém, que D. Severina tanto não
podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava
justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as
escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se
perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se
no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi
pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois
caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se
outra vez, cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco
ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser
até que estivesse muito mal.
Saiu da sala, atravessou rasgadamente o
corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina
parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto
caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os
olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.
D. Severina sentiu bater-lhe o coração com
veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse
sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos
olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três,
cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma
expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. "Uma
criança!" disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos
trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe
em parte a turvação dos sentidos.
"Uma criança!"
E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com
a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança,
achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas ideias corrigia
ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído
ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao
chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o
sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de
posição. E ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar.
Que não possamos ver os sonhos uns dos
outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz;
ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe
nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio,
namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas, cálidas,
principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não
conhecia, posto que o entendesse. Duas, três e quatro vezes a figura esvaía-se,
para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou
atravessando o corredor, com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando,
inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até
que, inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um
beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as
mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não
recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta,
vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem
olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se
escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito
tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada
lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas,
se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de
crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que
era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia
mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa,
irritada, aborrecida, mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar
fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.
Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só
acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina
calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a
rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa
que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que
D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na
segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que
Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado,
porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
— Quando precisar de mim para alguma coisa,
procure-me.
— Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
— Está lá para o quarto, com muita dor de
cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.
Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a
despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale,
nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente...
Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma
distração que a ofendera; não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale
que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do
sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos,
nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando
ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
— E foi um sonho! um simples sonho!
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Imagem:
Correio da Manhã: 28/06/1958.
py7fvohubil
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