Umas Férias
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Vieram dizer ao mestre-escola que alguém lhe
queria falar.
— Quem é?
— Diz que meu senhor não o conhece, respondeu
o preto.
— Que entre.
Houve um movimento geral de cabeças na
direção da porta do corredor, por onde devia entrar a pessoa desconhecida.
Éramos não sei quantos meninos na escola. Não tardou que aparecesse uma figura
rude, tez queimada, cabelos compridos, sem sinal de pente, a roupa amarrotada,
não me lembra bem a cor nem a fazenda, mas provavelmente era brim pardo. Todos
ficaram esperando o que vinha dizer o homem, eu mais que ninguém, porque ele
era meu tio, roceiro, morador em Guaratiba. Chamava-se tio Zeca.
Tio Zeca foi ao mestre e falou-lhe baixo. O
mestre fê-lo sentar, olhou para mim, e creio que lhe perguntou alguma coisa,
porque tio Zeca entrou a falar demorado, muito explicativo. O mestre insistiu,
ele respondeu, até que o mestre, voltando-se para mim, disse alto:
— Senhor José Martins, pode sair.
A minha sensação de prazer foi tal que venceu
a de espanto. Tinha dez anos apenas, gostava de folgar, não gostava de
aprender. Um chamado de casa, o próprio tio, irmão de meu pai, que chegara na
véspera de Guaratiba, era naturalmente alguma festa, passeio, qualquer coisa.
Corri a buscar o chapéu, meti o livro de leitura no bolso e desci as escadas da
escola, um sobradinho da Rua do Senado. No corredor beijei a mão a tio Zeca. Na
rua fui andando ao pé dele, amiudando os passos, e levantando a cara. Ele não
me dizia nada, eu não me atrevia a nenhuma pergunta. Pouco depois chegávamos ao
colégio de minha irmã Felícia; disse-me que esperasse, entrou, subiu, desceram,
e fomos os três caminho de casa. A minha alegria agora era maior. Certamente
havia festa em casa, pois que íamos os dois, ela e eu; íamos na frente,
trocando as nossas perguntas e conjeturas. Talvez anos de tio Zeca. Voltei a
cara para ele; vinha com os olhos no chão, provavelmente para não cair.
Fomos andando. Felícia era mais velha que eu
um ano. Calçava sapato raso, atado ao peito do pé por duas fitas cruzadas,
vindo acabar acima do tornozelo com laço. Eu, botins de cordovão, já gastos. As
calcinhas dela pegavam com a fita dos sapatos, as minhas calças, largas, caíam
sobre o peito do pé; eram de chita. Uma ou outra vez parávamos, ela para
admirar as bonecas à porta dos armarinhos, eu para ver, à porta das vendas,
algum papagaio que descia e subia pela corrente de ferro atada ao pé.
Geralmente, era meu conhecido, mas papagaio não cansa em tal idade. Tio Zeca é
que nos tirava do espetáculo industrial ou natural. — Andem, dizia ele em voz
sumida. E nós andávamos, até que outra curiosidade nos fazia deter o passo.
Entretanto, o principal era a festa que nos esperava em casa.
— Não creio que sejam anos de tio Zeca,
disse-me Felícia.
— Por quê?
— Parece meio triste.
— Triste, não, parece carrancudo.
— Ou carrancudo. Quem faz anos tem a cara
alegre.
— Então serão anos de meu padrinho...
— Ou de minha madrinha...
— Mas por que é que mamãe nos mandou para a
escola?
— Talvez não soubesse.
— Há de haver jantar grande...
— Com doce...
— Talvez dancemos.
Fizemos um acordo: podia ser festa, sem
aniversário de ninguém. A sorte grande, por exemplo. Ocorreu-me também que
podiam ser eleições. Meu padrinho era candidato a vereador; embora eu não
soubesse bem o que era candidatura nem vereação, tanto ouvira falar em vitória
próxima que a achei certa e ganha. Não sabia que a eleição era ao domingo, e o
dia era sexta-feira. Imaginei bandas de música, vivas e palmas, e nós, meninos,
pulando, rindo, comendo cocadas. Talvez houvesse espetáculo à noite; fiquei
meio tonto. Tinha ido uma vez ao teatro, e voltei dormindo, mas no dia seguinte
estava tão contente que morria por lá tornar, posto não houvesse entendido nada
do que ouvira. Vira muita coisa, isto sim, cadeiras ricas, tronos, lanças
compridas, cenas que mudavam à vista, passando de uma sala a um bosque, e do
bosque a uma rua. Depois, os personagens, todos príncipes. Era assim que
chamávamos aos que vestiam calção de seda, sapato de fivela ou botas, espada,
capa de veludo, gorra com pluma. Também houve bailado. As bailarinas e os
bailarinos falavam com os pés e as mãos, trocando de posição e um sorriso
constante na boca. Depois os gritos do público e as palmas...
Já duas vezes escrevi palmas; é que as
conhecia bem. Felícia, a quem comuniquei a possibilidade do espetáculo, não me
pareceu gostar muito, mas também não recusou nada. Iria ao teatro. E quem sabe
se não seria em casa, teatrinho de bonecos? Íamos nessas conjeturas, quando tio
Zeca nos disse que esperássemos; tinha parado a conversar com um sujeito.
Paramos, à espera. A ideia da festa, qualquer
que fosse, continuou a agitar-nos, mais a mim que a ela. Imaginei trinta mil
coisas, sem acabar nenhuma, tão precipitadas vinham, e tão confusas que não as
distinguia, pode ser até que se repetissem. Felícia chamou a minha atenção para
dois moleques de carapuça encarnada, que passavam carregando canas, — o que nos
lembrou as noites de Santo Antônio e São João, já lá idas. Então falei-lhe das
fogueiras do nosso quintal, das bichas que queimamos, das rodinhas, das
pistolas e das danças com outros meninos. Se houvesse agora a mesma coisa...
Ah! lembrou-me que era ocasião de deitar à fogueira o livro da escola, e o dela
também, com os pontos de costura que estava aprendendo.
— Isso não, acudiu Felícia.
— Eu queimava o meu livro.
— Papai comprava outro.
— Enquanto comprasse, eu ficava brincando em
casa; aprender é muito aborrecido.
Nisto estávamos, quando vimos tio Zeca e o desconhecido
ao pé de nós. O desconhecido pegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para
ele, fitou-nos com seriedade, deixou-nos e despediu-se.
— Nove horas? Lá estarei, disse ele.
— Vamos, disse-nos tio Zeca.
Quis perguntar-lhe quem era aquele homem, e
até me pareceu conhecê-lo vagamente. Felícia também. Nenhum de nós acertava com
a pessoa; mas a promessa de lá estar às nove horas dominou o resto. Era festa,
algum baile, conquanto às nove horas costumássemos ir para a cama.
Naturalmente, por exceção, estaríamos acordados. Como chegássemos a um rego de
lama, peguei da mão de Felícia, e transpusemo-lo de um salto, tão violento que
quase me caiu o livro. Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do gesto; vi-o
abanar a cabeça com reprovação. Ri, ela sorriu, e fomos pela calçada adiante.
Era o dia dos desconhecidos. Desta vez
estavam em burros, e um dos dois era mulher. Vinham da roça. Tio Zeca foi ter
com eles ao meio da rua, depois de dizer que esperássemos. Os animais pararam,
creio que de si mesmos, por também conhecerem a tio Zeca, ideia que Felícia
reprovou com o gesto, e que eu defendi rindo. Teria apenas meia convicção; tudo
era folgar. Fosse como fosse, esperamos os dois, examinando o casal de
roceiros. Eram ambos magros, a mulher mais que o marido, e também mais moça;
ele tinha os cabelos grisalhos. Não ouvimos o que disseram, ele e tio Zeca;
vimo-lo, sim, o marido olhar para nós com ar de curiosidade, e falar à mulher,
que também nos deitou os olhos, agora com pena ou coisa parecida. Enfim
apartaram-se, tio Zeca veio ter conosco e enfiamos para casa.
A casa ficava na rua próxima, perto da
esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portais da casa forrados de preto, — o que
nos encheu de espanto. Instintivamente paramos e voltamos a cabeça para tio
Zeca. Este veio a nós, deu a mão a cada um e ia a dizer alguma palavra que lhe
ficou na garganta; andou, levando-nos consigo. Quando chegamos, as portas
estavam meio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho. Na rua,
curiosos. Nas janelas fronteiras e laterais, cabeças aglomeradas. Houve certo
rebuliço quando chegamos. É natural que eu tivesse a boca aberta, como Felícia.
Tio Zeca empurrou uma das meias portas, entramos os três, ele tornou a
cerrá-la, meteu-se pelo corredor e fomos à sala de jantar e à alcova.
Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a
cabeça entre as mãos. Sabendo da nossa chegada, ergueu-se de salto, veio
abraçar-nos entre lágrimas, bradando:
— Meus filhos, vosso pai morreu!
A comoção foi grande, por mais que o confuso
e o vago entorpecessem a consciência da notícia. Não tive forças para andar, e
teria medo de o fazer. Morto como? morto por quê? Estas duas perguntas, se as
meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele momento não perguntei nada a
mim nem a ninguém. Ouvi as palavras de minha mãe, se repetiam em mim, e os seus
soluços que eram grandes. Ela pegou em nós e arrastou-nos para a cama, onde
jazia o cadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu
daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o
silêncio das pessoas que rodeavam a cama ajudaram a explicar que meu pai
morrera deveras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não
era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa,
arredada dos castigos da escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse
crescer a minha dor de filho não é coisa que possa afirmar ou negar; melhor é
calar. O pai ali estava defunto, sem pulos, nem danças, nem risadas, nem bandas
de música, coisas todas também defuntas. Se me houvessem dito à saída da escola
por que é que me iam lá buscar, é claro que a alegria não houvera penetrado o
coração, donde era agora expelida a punhadas.
O enterro foi no dia seguinte às nove horas
da manhã, e provavelmente lá estava aquele amigo de tio Zeca que se despediu na
rua, com a promessa de ir às nove horas. Não vi as cerimônias; alguns vultos,
poucos, vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu padrinho, dono de um trapiche,
lá estava, e a mulher também, que me levou a uma alcova dos fundos para me
mostrar gravuras. Na ocasião da saída, ouvi os gritos de minha mãe, o rumor dos
passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas alças do caixão,
creio eu: — “vire de lado, — mais à esquerda, — assim, segure bem...” Depois,
ao longe, o coche andando e as seges atrás dele...
Lá iam meu pai e as férias! Um dia de folga
sem folguedo! Não, não foi um dia, mas oito, oito dias de nojo, durante os
quais alguma vez me lembrei do colégio. Minha mãe chorava, cosendo o luto,
entre duas visitas de pêsames. Eu também chorava; não via meu pai às horas do
costume, não lhe ouvia as palavras à mesa ou ao balcão, nem as carícias que
dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de pássaros, e tinha três ou
quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quase que só falava às pessoas de
fora. Foi assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta
notícia muitas vezes; as visitas perguntavam pela causa da morte, e ela referia
tudo, a hora, o gesto, a ocasião: tinha ido beber água, e enchia um copo, à
janela da área. Tudo decorei, à força de ouvi-lo contar.
Nem por isso os meninos do colégio deixavam
de vir espiar para dentro da minha memória. Um deles chegou a perguntar-me
quando é que eu voltaria.
— Sábado, meu filho, disse minha mãe, quando
lhe repeti a pergunta imaginada; a missa é sexta-feira. Talvez seja melhor
voltar na segunda.
— Antes sábado, emendei.
— Pois sim, concordou.
Não sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao
ver que eu queria voltar mais cedo à escola. Mas, sabendo que eu não gostava de
aprender, como entenderia a emenda? Provavelmente, deu-lhe algum sentido
superior, conselho do céu ou do marido. Em verdade, eu não folgava, se lerdes
isto com o sentido de rir. Com o de descansar também não cabe, porque minha mãe
fazia-me estudar, e, tanto como o estudo, aborrecia-me a atitude. Obrigado a
estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o
livro, a mesa e a cadeira. Usava um recurso que recomendo aos preguiçosos:
deixava os olhos na página e
abria
a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os
realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de
brincadeira, como for mais claro.
Uma vez, como desse por mim a andar na sala
sem ler, minha mãe repreendeu-me, e eu respondi que estava pensando em meu pai.
A explicação fê-la chorar, e, para dizer tudo, não era totalmente mentira;
tinha-me lembrado o último presentinho que ele me dera, e entrei a vê-lo com o
mimo na mão.
Felícia vivia tão triste como eu, mas
confesso a minha verdade, a causa principal não era a mesma. Gostava de
brincar, mas não sentia a ausência do brinco, não se lhe dava de acompanhar a
mãe, coser com ela, e uma vez fui achá-la a enxugar-lhe os olhos. Meio vexado,
pensei em imitá-la, e meti a mão no bolso para tirar o lenço. A mão entrou sem
ternura, e, não achando o lenço, saiu sem pesar. Creio que ao gesto não faltava
só originalidade, mas sinceridade também.
Não me censurem. Sincero fui longos dias
calados e reclusos. Quis uma vez ir para o armarinho, que se abriu depois do
enterro, onde o caixeiro continuou a servir. Conversaria com este, assistiria à
venda de linhas e agulhas, à medição de fitas, iria à porta, à calçada, à
esquina da rua... Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer. Mal
chegara ao balcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da
casa e para o estudo. Arrepelei-me, apertei os dedos à guisa de quem quer dar
murro; não me lembra se chorei de raiva.
O livro lembrou-me a escola, e a imagem da
escola consolou-me. Já então lhe tinha grandes saudades. Via de longe as caras
dos meninos, os nossos gestos de troça nos bancos, e os saltos à saída. Senti
cair-me na cara uma daquelas bolinhas de papel com que nos espertávamos uns aos
outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador. A bolinha, como
acontecia às vezes, foi cair na cabeça de terceiro, que se desforrou depressa.
Alguns, mais tímidos, limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco,
mas já me valia por ele. Aquele degredo que eu deixei tão alegremente com tio
Zeca, parecia-me agora um céu remoto, e tinha medo de o perder. Nenhuma festa
em casa, poucas palavras, raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a
lápis maior número de gatos nas margens do livro de leitura; gatos e porcos.
Não alegrava, mas distraía.
A missa do sétimo dia restituiu-me à rua; no
sábado não fui à escola, fui à casa de meu padrinho, onde pude falar um pouco
mais, e no domingo estive à porta da loja. Não era alegria completa. A total
alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido de preto, fui mirado com
curiosidade, mas tão outro ao pé dos meus condiscípulos, que me esqueceram as
férias sem gosto, e achei uma grande alegria sem férias.
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