CARTA DO DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE
POLÍCIA DA CORTE
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Corte, 20 de setembro de 1875.
Desculpe vossa excelência o tremido da letra
e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco.
Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto
esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco.
Vossa excelência, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu,
desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que
vossa excelência lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras
disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio
alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra.
Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana,
ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos
modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a Rua do
Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça.
Uma verdadeira digestão literária.
Foi o que se deu hoje. A página aberta
acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loquela ática;
daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses,
guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia
reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine vossa excelência
se vivi! Mas, o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer
voar toda a arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto
os olhos me caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de
alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo:
— Que impressão daria ao ilustre ateniense o
nosso vestuário moderno?
Sou espiritista desde alguns meses.
Convencido de que todos os sistemas são puras niilidades, resolvi adotar o mais
recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas também
útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o espírito dos
mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não
há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que
o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse
a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do
gosto de admirar a minha própria habilidade. Determinei portanto, evocar o
ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.
E aqui começa o extraordinário da aventura.
Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali,
na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que eu cuidara
ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e
osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e
desgarre com que usava arengar às grandes assembleias de Atenas, e também, um
pouco, aos seus pataus. vossa excelência, tão sabedor da história, não ignora
que também houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse
precedente é uma desculpa. Juro a vossa excelência que não acreditei; por mais
fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse
ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades
redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o
efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da
luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...
— Que me queres? perguntou ele.
Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O
vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia duvidar que
era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão cabalmente
como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro que, sem
o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai
de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a
pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse
frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me com muito
carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a
confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a vossa excelência? No fim de
poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e
natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma
visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, — de um incêndio.
Escusado é dizer a vossa excelência que abri
mão da ideia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro,
não um homem “de verdade”, como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao
que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era
enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a
independência, Botzaris, lord Byron.
O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca; e, mostrando-me
admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me que à
porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris
nem lord Byron, — em primeiro lugar,
porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem
naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá congregam-se, não
por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, costume e
profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e
namorados, com o Duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc.
Em seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo;
falei-lhe do parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e
Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone,
revezando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de discurso. Ele, que foi
um magnífico orador, interrompeu-me:
— Bravo, atenienses!
Se entro nestas minúcias é para o fim de nada
omitir do que possa dar a vossa excelência o conhecimento exato do
extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades escutava-me
com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem
largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu
em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela mostrava-se
simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho, note vossa excelência,
tão gamenho como outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as
nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não
saía de certas atitudes esculturais.
— Vá, continua, dizia-me ele, quando eu
parava de lhe dar notícias.
Mas eu não podia mais. Entrado no
inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão,
assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à
eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e
aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.
Se pudesses fugir... Animei-me: disse-lhe que
ia a um baile.
— Um baile? Que coisa é um baile?
Expliquei-lho.
— Ah! ver dançar a pírrica!
— Não, emendei eu, a pírrica já lá vai. Cada
século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós já não
dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não
dançará as deste. A pírrica foi-se, como os homens de Plutarco e os numes de
Hesíodo.
— Com os numes?
Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara,
que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção,
nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,
Evohé! padre Bassaréu! Evohé! etc.
honesto passatempo de alguns desembargadores
pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe,
acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da
teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu
todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.
— Morto Zeus?
— Morto.
— Dionisos, Afrodita?...
— Tudo morto.
O homem de Plutarco levantou-se, andou um
pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: — Ah!
se lá estou com os meus atenienses! — Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de
quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos
deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e
naturalmente postiça. Esquecia-me, — um devoto do grego! — esquecia-me que ele
era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive
tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente
declarou-me que iria ao baile comigo.
— Ao baile? repeti atônito.
— Ao baile, vamos ao baile.
Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não
era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo; pareceria doido; salvo se
ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo,
para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma
vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com vossa excelência. Mas o diabo do
homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante.
Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia
desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu
século.
— Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora
não vou sem comparar as danças.
— Meu caro Alcibíades, não acho prudente um
tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em
fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas
os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível.
— Por quê?
— Já disse; imaginarão que és um doido ou um
comediante, porque essa roupa...
— Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do
século. Não tens alguma roupa que me emprestes?
Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o
mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para
escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.
— Pois bem, tornou ele levantando-se, irei à
maneira do século. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te
depois.
Levantei-me também, e pedi-lhe que me
acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado. Vi que só então reparara
nas minhas calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca
aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano.
Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais
recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o
seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o
lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.
— Enfim!
Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei
a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem
elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros. — Eu vestia-me,
como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi
que passasse...
— Canudos pretos! exclamou ele.
Eram as calças pretas que eu acabava de
vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio,
o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note vossa
excelência, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de
execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não
respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os
suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...
— Feia, mas séria, disse-lhe. Olha,
entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz,
embora preto, e trabalhado com muita perfeição.
E vendo que ele abanava a cabeça:
— Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente
exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio
da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que
os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou
desgracioso é perfeitamente racional e belo, — belo à nossa maneira, que não
andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus versos, nem os oradores os
seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te
acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...
— Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim.
Antes de entender a causa do grito e do
gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma ilusão. Como eu passasse a
gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia
enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo,
em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da
gravata, e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas
pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma.
Atei-a enfim, depois vesti o colete.
— Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais
singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite — uma noite
com três estrelas apenas — continuou apontando para os botões do peito. O mundo
deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e
tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...
Não pôde concluir a frase; eu acabava de
enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os
braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em
mim, grandes, abertos. Creia vossa excelência que fiquei com medo, e tratei de
apressar ainda mais a saída.
— Estás completo? perguntou-me ele.
— Não: falta o chapéu.
— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o
resto! tornou Alcibíades com voz suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a
elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outro
par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo
dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que
corrija isso. O que é que falta, dizes tu?
— O chapéu.
— Põe o que te falta, meu caro, põe o que te
falta.
Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o
chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri
ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava
morto, morto pela segunda vez. Rogo a vossa excelência se digne de expedir suas
respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se
proceda ao corpo de delito, relevando de não ir pessoalmente à casa de vossa
excelência agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que
acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.
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