Uma Vagabunda
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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É um caso bem curioso o que te
vou contar e que me parece digno de registro. Para muitos parecerá fantástico;
mas, como tu sabes, já houve quem dissesse que a realidade é mais fantástica do
que imaginamos.
— Dostoievski?
— Sim; creio que foi ele, embora
não afiance que fosse com estas palavras. Sabes bem como são as palavras dele?
— Não; mas estou certo que não
lhe trais o pensamento... Enfim! Isso não vem ao caso. Conta lá a história.
— Conto-a a ti com todos os
detalhes, para que possas tirar dela todo o profundo sentido que tem. Se
tratasse de outro, havia de abreviá-la, transformá-la-ia em anedota; mas,
tratando-se de ti, não há nada que seja prolixo para a compreensão de
semelhante fato.
Eles estavam no Campo de Sant'Ana
e aquelas cutias sempre ariscas e aquelas saracuras de galinheiro, apesar de
tudo, não deixavam de dar um toque selvagem naquele jardim educado.
O narrador continuou:
— Foi isto há alguns anos
passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo porque tinha por divisa ou
tudo ou nada. Além disso adotam uma frase não sei de que autor, como
complemento da divisa.
— Qual é? perguntou o outro.
— "O burguês bebe champanha;
o herói bebe aguardente".
— Essas duas sentenças cobiçadas
deviam dar resultados surpreendentes.
— Deram como tu sabes, mas eu te
quero contar uma que tu não sabes.
— Duvido.
— Pois vais ver.
— Não acredito, pois sei todas as
tuas proezas desse tempo.
— Essa proeza, porém, não é
minha; é de outro ou de outra.
— Que outra?
— Conheceste a Alzira?
— Sim! Aquela vagabunda que ia à
casa do "Guaco", na rua do Carmo.
— É isso mesmo: aquela vagabunda
que ia à casa do "Guaco", na rua do Carmo. É isso.
— Homem! Pelo modo por que falas,
parece que tiveste paixão por ela...
— Não tive paixão, mas sou-lhe
grato.
— Por quê?
— Lembras-te bem que ela bebia
conosco calistos de "Guaco".
— Lembro-me bem.
— E que ela tivera um passado de
lustre, de opulência, no alto mundanismo?
— Perfeitamente. Contudo,
Frederico, eu penso que ela exagerava um pouco.
— É verdade. Aquele caso que ela
nos contou de ter perdido uma noite, não sei em que jogo, em São Paulo, oitenta
contos, não me parece verossímil; entretanto...
— Não é só isso. Todas as
sumidades da República haviam sido seus amantes. Ora, isso não é possível,
porquanto muitas delas, quando começaram, eram pobretões que não podiam aspirar
a semelhante "objeto de luxo".
— Tens razão; mas...
— Uma coisa: quando me recordo da
Alzira, só me vem à mente o seu famoso chapéu-de-chuva de alpaca, com que, às
vezes, quando embriagada, desancava um qualquer e ia parar no xadrez.
— Eu, quando me vem ela à
lembrança, com a sua fisionomia triste, fanada, é com o seu orgulho de ter tido
muito dinheiro, por meios tão baixos...
— A observação é boa. Ela não
parecia ter dor em recordar os belos dias passados; parecia antes ter prazer...
Afinal, que tem ela com a tua história?
— Estavas fora, lá, para Alagoas.
Continuei a frequentar o "Guaco", onde ia todas as tardes encontrar
os companheiros. Ocasionalmente topava com Alzira e pagava-lhe um cálice. As
nossas relações eram as mais amistosas possíveis. Ela me contava as histórias
de aventuras passadas, quer as de jogo, quer as de amor; e eu as ouvia para
aprender a vida com aquela mulher batida pela sorte, pelo infortúnio e pela
maldade dos homens. Gostava até da emoção que ela sentia, narrando o seu
triunfo, quando, trepada no alto dos carros de Carnaval, era aclamada pelas famílias,
nas ruas apinhadas por onde passava. Pelo modo que ela me contava esses
episódios, julguei que Alzira nesses dias se supunha resgatada. Talvez tivesse
razão...
— Coitada! fez o outro.
— Bem. Como te contava, ia sempre
ao "Guaco" e, em certo dia do pagamento, lá fui. Tinha os vencimentos
quase intactos na algibeira. Encontrei-a, sentei-me e pedi cerveja. Ela não
quis, ficou no seu cálice habitual. Em dado momento, ao passar o proprietário,
o Martins — tu te lembras dele?
— Pois não.
— Disse-lhe: Martins, vê quanto
te devo. Ele respondeu e, logo que ele se afastou, Alzira perguntou-me:
"Frederico, tens dinheiro?" Disse-lhe que sim; e ela me pediu:
"Podes passar cinco mil-réis?" Não me fiz esperar e dei-lhe uma nota
de cinco mil-réis que tinha na algibeira do colete. Ela guardou e continuou a
conversa. Veio a hora de sair e de pagar a despesa atual e as passadas. Martins
fez a soma e tirei da algibeira da calça o grosso do dinheiro, dando-lhe uma
nota que satisfizesse a conta. Logo que o Martins se dirigiu ao balcão, ela me
disse ao ouvido: "Tu não podes dar mais cinco mil-réis?" Disse-lhe
peremptoriamente: não! Não teve um momento de hesitação: levantou-se e
atirou-me a nota na cara. Foi saindo e descompondo-me baixamente.
— Era muito malcriada.
— Pensei isso e o Marfins
aconselhou-me a evitá-la, por isso. Um acontecimento posterior, porém, fez-me
julgá-la melhor.
— É daí que...
— Vais ouvir: passaram-se meses
e, para publicar um livro, meti-me em complicações. Se o livro deu dinheiro eu
não sei, porque só perdi com ele; entretanto, fez um sucessozinho; mas, cai de
roupas, etc., etc. Uma noite estava sentado entre desanimados, como eu, num
banco do largo da Carioca, considerando aqueles automóveis vazios, que lhe
levam algum encanto. Apesar disso, não pude deixar de comparar aquele rodar de
automóveis, rodar em tomo da praça, como que para dar ilusão de movimento, aos
figurantes de teatro que entram por um lado e saem pelo outro, para fingir
multidão; e como que me pareceu que aquilo era um truque do Rio de janeiro,
para se dar ares de grande capital movimentada... Estava assim, quando me
bateram ao ombro: "Oh! Frederiquinho!"
— Quem era?
— Era a Alzira.
— Queria ela alguma coisa?
— Queria dar-me. Nada mais.
— O quê?
— A passagem do bonde.
— Tu não a tinhas?
— Tinha. Disse-lhe isso até; mas
o meu aspecto era da mais completa miséria. Minha roupa estava sebosa, meu
chapéu de palha muito sujo, cabeludo, barba velha; e, além de tudo,
sobreviera-me uma fraqueza de pálpebras, que me obrigava a usar uns sinistros óculos
escuros de mendigo semicego. Apesar da minha recusa, ela insistiu de tal modo,
de forma tão cheia de piedade e ternura, que me pareceu uma cruel desfeita não
lhe aceitar o cruzado.
— Aceitaste?
— Aceitei.
— Curioso.
— Está aí a vagabunda do
"Guaco", meu caro Chaves.
Levantaram-se, saíram do jardim e
o advento da noite, misteriosa e profunda, era anunciado pelo acender dos
lampiões de gás e o piscar dos globos de luz elétrica, naquele magnífico fim de
crepúsculo.
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