11/07/2017

Uma por outra (Conto), de Machado de Assis


Uma por outra

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Era por sessenta e tantos... Musa, lembra-me as causas desta paixão romântica, conta as suas fases e o seu desfecho. Não fales em verso, posto que nesse tempo escrevi muitos. Não; a prosa basta, desataviada, sem céus azuis nem garças brancas, a prosa do tabelião que sou neste município do Ceará.

Era no Rio de Janeiro. Tinha eu vinte anos feitos e malfeitos, sem alegrias, longe dos meus, no pobre sótão de estudante, à Rua da Misericórdia. Certamente a vida do estudante de matemáticas era alegre, e as minhas ambições, depois do café e do cigarro, não iam além de um e outro teatro, mas foi isto mesmo que me deitou "uma gota amarga na existência". É a frase textual que escrevi em uma espécie de diário daquele tempo, rasgado anos depois. Foi no teatro que vi uma criaturinha bela e rica, toda sedas e joias, com o braço pousado na borda do camarote, e o binóculo na mão. Eu, das galerias onde estava, dei com a pequena e gostei do gesto. No fim do primeiro ato, quando se levantou, gostei da figura. E daí em diante, até o fim do espetáculo, não tive olhos para mais ninguém, nem para mais nada; todo eu era ela.

Se estivesse com outros colegas, como costumava, é provável que não gastasse mais de dois minutos com a pequena; mas naquela noite estava só, entre pessoas estranhas, e inspirado. Ao jantar, fizera de cabeça um soneto. Demais, antes de subir à galeria quedara-me à porta do teatro a ver entrar famílias. A procissão de mulheres, a atmosfera de cheiros, a constelação de pedrarias entonteceram-me. Finalmente, acabava de ler um dos romances aristocráticos de Feuillet, exemplar comprado por um cruzado não sei em que belchior de livros. Foi nesse estado de alma que descobri aquela moça do quinto camarote, primeira ordem, à esquerda, Teatro Lírico.

Antes de acabar o espetáculo, desci a escada, quatro a quatro, e vim colocar-me no corredor, defronte do camarote de Sílvia. Dei-lhe este nome, por ser doce, e por havê-lo lido não sei onde. Sílvia apareceu à porta do camarote, logo depois de cantada a ópera, metida em capa rica de cachemira, e com uns olhos que eu não pudera ver bem de cima, e valiam, só por si todas as joias e todas as luzes do teatro. Outra senhora estava com ela, e dois homens também deram-lhes os braços, e eu acompanhei-as logo. A marcha foi lenta, eu desejava que não acabasse mais, mas acabou. Sílvia entrou no carro que esperava a família, e os cavalos pegaram do meu tesouro e o levaram atrás de si.

Nessa mesma noite escrevi os meus versos A Visão. Dormi mal e acordei cedo. Abri a janela do sótão, e a luz que entrou no meu pobre aposento ainda mais aumentou o meu delírio da véspera. Comparei as minhas alfaias de estudante com as sedas, cachemiras, joias e cavalos de Sílvia, e compus umas sextilhas que não transcrevo aqui para não dar ciúmes à minha tabelioa, a quem já as recitei, dizendo que não prestavam para nada. E creio que não. Se as citasse não seria mais que por veracidade e modéstia, mas prefiro a paz doméstica ao complemento do escrito. Em verdade, não há negar que por esses dias andei tonto. Não seria exatamente por aquela moça do teatro, mas por todas as outras da mesma condição e de iguais atavios. Tornei ao teatro dali a dias, e vi-a, em outro camarote, com igual luxo e a mesma graça fina. Os meus companheiros de escola não me permitiram fitá-la exclusivamente: mas como deveras amavam a música, e a ouviam sem mais nada, eu aproveitava os melhores trechos da ópera para mirar a minha incógnita.

— Quem é aquela moça? perguntei a um deles, à saída do saguão.

— Não sei.

Ninguém me disse nada, não a encontrei mais, nem na Rua do Ouvidor, nem nos bairros elegantes por onde me meti, à espera do acaso. Afinal abri mão deste sonho, e deixei-me estar no meu sótão, com os meus livros e os meus versos. Foi então que a outra moça me apareceu.

O meu sótão dava para o morro do Castelo. Numa daquelas casas trepadas no morro, desordenadamente, vi um vulto de mulher, mas só adivinhei que o era pelo vestido. Cá de longe, e um pouco de baixo, não podia distinguir as feições. Estava afeito a ver mulheres nas outras casas do morro, como nos telhados da Rua da Misericórdia, onde algumas vinham estender as roupas que lavavam. Nenhuma me atraía mais que por um instante de curiosidade. Em que é que aquela me prendeu mais tempo? Cuido que, em primeiro lugar, o meu estado de vocação amorosa, a necessidade de uma droga que me curasse daquela febre recente e mal extinta. Depois, — e pode ser que esta fosse a principal causa, — porque a moça de que trato parecia justamente olhar de longe para mim, ereta no fundo escuro da janela. Duvidei disto a princípio, mas erigi também o corpo, ergui a cabeça, adiantei-a sobre o telhado, recuei, fiz uma série de gestos que revelassem o interesse e a admiração. A mulher deixou-se estar, — nem sempre na mesma atitude, inclinava-se, olhava para um e outro lado, mas tornava logo, e continuava ereta no fundo escuro.

Isto aconteceu de manhã. De tarde, não pude vir a casa, jantei com os rapazes. Na manhã seguinte, quando abri a janela, já achei na outra do morro a figura da véspera. Esperava-me, decerto; a atitude era a mesma, e, sem poder jurar que lhe vi algum movimento de longe, creio que fez algum. Era natural fazê-lo, caso me esperasse. No terceiro dia cumprimentei-a cá de baixo; não respondeu ao gesto e pouco depois entrou. Não tardou que voltasse, com os mesmos olhos, se os tinha, que eu não podia ver nada, estirados para mim. Estes preliminares duraram cerca de duas semanas.

Então eu fiz uma reflexão filosófica, acerca da diferença de classes; disse comigo que a própria fortuna era por essa graduação dos homens, fazendo com que a outra moça, rica e elegante, de alta classe, não desse por mim, quando estava a tão poucos passos dela, sem tirar dela os olhos, ao passo que esta outra, medíocre ou pobre, foi a primeira que me viu e me chamou a atenção. É assim mesmo, pensei eu; a sorte destina-me esta outra criatura que não terá de subir nem descer, para que as nossas vidas se entrelacem e nos deem a felicidade que merecemos. Isto me deu uma ideia de versos. Lancei-me à velha mesa de pinho, e compus o meu recitativo das Ondas: "A vida é onda dividida em duas..." "A vida é onda dividida em duas..." Oh! quantas vezes disse eu este recitativo aos rapazes da Escola e a uma família da Rua dos Arcos! Não frequentava outras casas; a família compunha-se de um casal e de uma tia, que também fazia versos. Só muitos anos depois vim a entender que os versos dela eram maus; naquele tempo achava-os excelentes. Também ela gostava dos meus, e os do recitativo dizia-os sublimes. Sentava-se ao piano um pouco desafinado, logo que eu lá entrava, e, voltada para mim:

— Senhor Josino, vamos ao recitativo.

— Ora D. Adelaide, uns versos que...

— Que o quê? Ande: "A vida é onda dividida em duas..."

E eu:

— A vida é onda dividida em duas...

— Delicioso! exclamava ela no fim, entornando os olhos murchos e cobiçosos.

Os meus colegas da Escola eram menos entusiastas; alguns gostavam dos versos, outros não lhes davam grande valor, mas eu lançava isto à conta da inveja ou da incapacidade estética. Imprimi o recitativo nos semanários do tempo. Sei que foi recitado em várias casas, e ainda agora me lembro que, um dia, passando pela Rua do Ouvidor, ouvi a uma senhora dizer a outra: "Lá vai o autor das Ondas".

Nada disso me fez esquecer a moça do morro do Castelo, nem ela esquecia. De longe, sem nos distinguirmos um ao outro, continuávamos aquela contemplação que não podia deixar de ser muda, posto que eu às vezes desse por mim a falar alto: "Mas quem será aquela criatura?" e outras palavras equivalentes. Talvez ela perguntasse a mesma coisa. Uma vez, lembrando-me de Sílvia, consolei-me com esta reflexão:

"Será uma por outra; esta pode ser até que valha mais. Elegante é; isso vê-se cá mesmo de longe e de baixo."

Os namoros dos telhados são pouco sabidos das pessoas que só têm namorado nas ruas; é por isso que não têm igual fama. Mais graciosos são, e romanescos também. Eu já estava acostumado a eles. Tivera muitos, de sótão a sótão, e mais próximos um do outro. Víamo-nos os dois, ela estendendo as roupas molhadas da lavagem, eu a folhear os meus compêndios. Risos de cá e de lá, depois rumo diverso, um pai ou mãe que descobria a troca de sinais e mandava fechar as janelas, uma doença, um arrufo e tudo acabava.

Desta vez, justamente quando eu não podia distinguir as feições da moça, nem ela as minhas, é que o namoro estava mais firme e continuava. Talvez por isso mesmo. O vago é muito em tais negócios; o desconhecido atrai mais. Assim foram decorrendo dias e semanas. Já tínhamos horas certas, dias especiais em que a contemplação era mais longa. Eu, depois dos primeiros tempos, temi que houvesse engano da minha parte, isto é, que a moça olhasse para outro sótão, ou simplesmente para o mar. O mar não digo: não prenderia tanto, mas a primeira hipótese era possível. A coincidência, porém, dos gestos e das atitudes, a espécie de respostas dadas à espécie de perguntas que eu lhe fazia, trouxeram-me a convicção de que realmente éramos nós dois os namorados. Um colega da Escola, por esse tempo meu camarada íntimo, foi o confidente daquele mistério.

— Josino, disse-me ele, e por que é que não vais ao morro do Castelo?

— Não sei onde fica a casa.

— Ora essa! Marca bem a posição cá de baixo, vê as que lhe ficam ao pé e sobe; se não estiver na ladeira, há de estar no alto em algum lugar...

— Mas não é só isto, disse eu; penso que se lá for e achar a casa é o mesmo que nada. Poderei conhecê-la, mas como é que ela saberá quem eu sou?

— É boa! Tu ficas conhecendo a pessoa, e escreve-lhe depois que o moço assim e assim lhe passou pela porta, em tal dia, a tantas horas, é o mesmo do sótão da Rua da Misericórdia.

— Já pensei nisso, respondi dali a um instante, mas confesso-te que não quis tentar nada.

— Por quê?

— Filho, o melhor deste meu namoro é o mistério...

— Ah! poesia!

— Não é poesia. Eu, se me aproximo dela, posso vir a casar, e como me hei de casar sem dinheiro? Para ela esperar que eu me forme, e arranje um emprego...

— Bem; é então um namoro de passagem, sempre dá para versos e para matar tempo.

Deitei fora o cigarro, apenas começado (estávamos no Café Carceler), e dei um murro no mármore da mesa; acudiu o criado a perguntar o que queríamos, respondi-lhe que fosse bugiar, e após alguns instantes declarei ao meu colega que não pensava em matar tempo.

— Vá que faça versos; é um desabafo, e ela merece-os; mas matar o tempo, deixá-la ir aos braços de outro...

— Então... queres... raptá-la?

— Oh! não! Tu bem sabes o que eu quero, Fernandes. Eu quero e não quero; casar é o que eu quero, mas não tenho meios, e estou apaixonado. Esta é a minha situação.

— Francamente, Josino; fala sério, não me respondas com chalaças. Tu estás deveras apaixonado por essa moça?

— Estou.

— Essa moça, quero dizer, esse vulto, porque tu não sabes ainda se é moça ou velha.

— Isso vi; a figura é de moça.

— Em suma, um vulto. Nunca lhe viste a cara, não sabes se é feia ou bonita.

— É bonita.

— Adivinhaste?

— Adivinhei. Há um certo sentido na alma dos que amam que faz ver e saber as coisas ocultas ou obscuras, como se fossem claras e patentes. Crê, Fernandes; esta moça é bela, é pobre, e está doida por mim; eis o que te posso afirmar, tão certo corno aquele tílburi estar ali parado.

— Que tílburi, Josino? perguntou-me ele depois de puxar uma fumaça ao cigarro. Aquilo é uma laranjeira. Parece tílburi por causa do cavalo, mas todas as laranjeiras têm um cavalo, algumas dois; é a matéria do nosso segundo ano. Tu mesmo és um cavalo pegado a uma laranjeira, como eu; estamos ambos ao pé de um muro, que é o muro de Troia, Troia é dos troianos, e a tua dama naturalmente cose para fora. Adeus, Josino, continuou ele erguendo-se e pagando o café; não dou três meses que não estejas doido, a menos que o doido não seja eu.

— Vai caçoar para o diabo que te leve! exclamei furioso.

— Amém!

Este Fernandes era o chalaceiro da Escola, mas todos lhe queriam bem, e eu mais que todos. No dia seguinte foi visitar-me ao sótão. Queria ver a casa do morro do Castelo. Verifiquei primeiro se ela estava à janela; vendo que não, mostrei-lhe a casa. Reparou bem onde era, e acabou dizendo-me que ia passar por lá.

— Mas eu não te peço isto.

— Não importa. Vou descobrir a caça, e direi depois se é má ou boa. Ora espera; lá está um vulto.

— Entra, entra, disse-lhe puxando por ele. Pode ver-te e desconfiar que estou publicando o nosso namoro. Entra e espera. Lá está, é ela...

A vista de meu colega não dava para descobrir de baixo e de longe as feições da minha namorada. Fernandes não pôde saber se ela era feia ou bonita, mas concordou que o ar do corpo era elegante. Quanto à casa estava marcada; iria rondar por ela, até descobrir a pessoa. E por que não comprava eu um binóculo? perguntou-me. Achei-lhe razão. Se na ocasião achasse igualmente dinheiro teria o binóculo na manhã seguinte; mas, na ocasião faltava-me dinheiro e os binóculos já então não eram baratos. Respondi com a verdade, em primeiro lugar; depois aleguei ainda a razão do vago e do incerto. Era melhor não conhecer a moça completamente. Fernandes riu-se e despediu-se.

A situação não mudou. Os dias e as semanas não fizeram mais que apartar-nos um ao outro, sem estreitar a distância. Mostras e contemplações de longe. Cheguei aos sinais de lenços e ela também. De noite, tinha vela acesa até tarde; ela, se não ia até à mesma hora, chegava às dez, uma noite apagou a vela às onze. De ordinário, apesar de já não ver a luz dela, conservava a minha acesa, para que ela dormisse tarde, pensando em mim. As noites não foram assim seguidas, desde princípio; tinha hábitos noturnos, passeios, teatros, palestras ou cafés, que eram grande parte da minha vida de estudante; não mudei logo. Mas ao cabo de um mês, entrei a ficar todas as noites em casa. Os outros estudantes notavam a ausência; o meu confidente espalhava que eu trazia uns amores secretos e criminosos.

O resto do tempo era dado às musas. Convocava-as, — elas vinham dóceis e amigas. Horas e horas enchíamos o papel com versos de vária casta e metro, muitos dos quais eram logo divulgados pelas gazetas. Uma das composições foi dedicada à misteriosa moça do Castelo. Não tinham outra indicação; aquela pareceu-me bastante ao fim proposto, que era ser lido e entendido. Valha-me Deus! Julguei pelas suas atitudes daquele dia que realmente os versos foram lidos por ela, entendidos finalmente e beijados.

Chamei-lhe Pia. Se me perguntares a razão deste nome, ficarás sem resposta; foi o primeiro que me lembrou, e talvez porque a Ristori representava então a Pia de Tolomei. Assim como chamei Sílvia à outra, assim chamei Pia a esta; mania de lhe dar um nome. A diferença é que este se prestava melhor que o outro a alusões poéticas e morais; atribuí naturalmente à desconhecida a piedade de uma grande alma para com uma pobre vida, e disse isto mesmo em verso, — rimado e solto.

Um dia, ao abrir a janela, não vi a namorada. Já então nos víamos todos os dias, a hora certa, logo de manhã. Posto que eu não tivesse relógio, sabia que acordava cedo, à mesma hora; quando erguia a vidraça, já a via à minha espera, no alto. Daquela vez a própria janela estava fechada. Estaria dormindo, esperei; o tempo correu, saí para o almoço e para a Escola. O mesmo no dia seguinte. Supus que seria ausência ou moléstia; esperei. Passaram-se dois dias, três, uma semana. Fiquei desesperado; não exagero, fiquei fora de mim. E não pude dissimular esse estado; o meu confidente da Escola desconfiou que havia alguma coisa, eu contei-lhe tudo. Fernandes não acabava de crer.

— Mas como, Josino? Pois uma criatura que nem sequer conheces... é impossível! A verdade é que nunca a viste; mirar de longe um vulto não é ver uma pessoa.

— Vi-a, gosto dela, ela gosta de mim, aí tens.

— Confessa que amanhã, se a encontrares na rua, não és capaz de a conheceres.

— O meu coração há de conhecê-la.

— Poeta!

— Matemático!

Tínhamos razão os dois. Não é preciso explicar a afirmação dele; explico a minha. O meu amor, como vistes, era puramente intelectual; não teve outra origem. Achou-me, é verdade, inclinado a amar, mas não brotou nem cresceu de outra maneira. Tal era o estado da minha alma, — e por que não do meu tempo? — que assim mesmo me governou. Acabei amando um fantasma. Vivi por uma sombra. Um puro conceito, — ou quase, — fazia-me agitar o sangue. Essa mulher, — casada ou solteira, feia ou bonita, velha ou moça, — quem quer que era que eu não conheceria na rua, se a visse, enchia-me de saudades. Fiquei arrependido de não a ter buscado no morro; haver-lhe-ia escrito, saberia quem era, e para onde fora, ou se estava doente. Esta última hipótese sugeriu-me a ideia de ir ao morro procurar a casa. Fui; ao cabo de algum tempo e trabalho dei com a casa fechada. Os vizinhos disseram-me que a família saíra para um dos arrabaldes, não sabiam qual deles.

— Está certo que é a família Vieira? perguntei eu cheio de maquiavelismo.

— Vieira? Não, senhor; é a família Maia, um Pedro Maia, homem do comércio.

— Isso mesmo; tem loja na Rua de São Pedro, Pedro ou Sabão...

— A rua não sabemos; não se dá com vizinhos. Há de crer que só ultimamente nos cumprimentava? Muito cheio de si. Se é seu amigo, desculpe...

Fiz um gesto de desculpa, mas fiquei sem saber a loja do homem, nem o arrabalde para onde fora; sabia só que tornaria à casa, e era muito. Desci animado. Bem: não a perdi, ela volta, disse comigo.

— E terá pensado em mim?

Resolvi pela afirmativa. A imaginação mostrou-me a desconhecida vendo passar as horas e os dias, onde quer que estava com a família, a cuidar no desconhecido da Rua da Misericórdia. Talvez me tivesse feito na véspera da partida algum sinal que não pude ver. Se cuidou que sim, estaria um pouco mais consolada, mas a dúvida poderia assaltá-la, e a inquietação complicaria a tristeza.

Entramos nas férias. A minha ideia era não ir à província, ficar por qualquer pretexto, e esperar a volta da minha diva. Não contava com a fatalidade. Perdi minha mãe; recebi carta do meu pai, dizendo estar à minha espera. Haveis de crer que hesitei? Hesitei; mas a ordem era imperiosa, a ocasião triste, e meu pai não brincava.

— Vou, não tenho remédio, mas...

Como dizer à misteriosa Pia que ia à província, que voltaria dois ou três meses depois, e que me esperasse? A princípio, lembrou-me incumbir o meu colega Fernandes de a avisar, de manter o sacro fogo, até que me achasse de volta. Fernandes era assaz engenhoso e tenaz para desempenhar-se disto; mas abri mão dele, por vergonha. Então lembrou-me outra coisa; não deixaria o sótão, conservá-lo-ia alugado, mediante a garantia do correspondente de meu pai, a pretexto de não haver melhor lugar para residência de estudante. Quando voltasse, já ela estaria ali também. Não se enganaria com outro, porque nunca a janela se abriria na minha ausência; eu, apenas tornasse, recomeçaria a conversação de outro tempo. Isto feito, meti-me no vapor. Custa-me dizer que chorei, mas chorei.

Tudo o que vos acabo de dizer é vergonhoso, como plano, e dá ideia de uma sensibilidade mui pouco matemática; mas, sendo verdade, como é, e consistindo nesta o único interesse da narração, se algum lhe achais, força é que vos diga o que se passou naquele tempo.

 Embarquei, e fui para a província. Meu pai achou-me forte e belo, disse que tinha boas notícias minhas, tanto de rapaz como de estudante, dadas pelo correspondente e outras pessoas.

Gostei de ouvi-lo e cuidei de confirmar a opinião, metendo-me a estudar nas férias. Dois dias depois, declarou-me ele que estava disposto a fazer-me trocar de carreira. Não entendi. Ele explicou-me que, bem pensado, era melhor bacharelar-me em direito; todos os seus conhecidos mandavam os filhos para o Recife. A advocacia e a magistratura eram bonitas carreiras, não contando que a Câmara dos Deputados e o Senado estavam cheios de juristas. Todos os presidentes de província não eram outra coisa. Era muito mais certo, brilhante e lucrativo. Repetiu-me isto por dias. Eu rejeitei os presentes de Artaxerxes; combati as suas ideias, desdenhei da jurisprudência, e nisto era sincero; as matemáticas e a engenharia faziam-me seriamente crer que o estudo e a prática das leis eram ocupações ocas. Para mim a linha mais curta entre os dois pontos valia mais que qualquer axioma jurídico. Assim que, não era preciso ter nenhuma paixão amorosa para me animar a recusar o Recife; é certo, porém, que a moça do Castelo deu algum calor à minha palavra. Já agora queria acabar um romance tão bem começado.

Sobretudo havia em mim, relativamente à moça do Castelo, uma aventura particular. Não queria morrer sem conhecê-la. O fato de haver deixado o Rio de janeiro sem tê-la visto de perto, cara a cara, pareceu-me fantástico. Achei razão ao Fernandes. A distância tornava mais dura esta circunstância, e a minha alma começou a ser castigada pelo delírio. Delírio é termo excessivo e ambicioso, bem sei; maluquice diz a mesma coisa, é mais familiar e dá a esta confissão uma nota de chufa que não destoa muito do meu estado. Mas é preciso alguma nobreza de estilo em um namorado daqueles tempos, e namorado poeta, e poeta cativo de uma sombra. Meu pai, depois de teimar algum tempo no Recife, abriu mão da ideia e consentiu em que eu continuasse as matemáticas. Como me mostrasse ansioso por tornar à Corte, desconfiou que andassem comigo alguns amores espúrios, e falou de corrupção carioca.

— A Corte sempre foi um poço de perdição; perdi lá um tio...

O que lhe confirmou esta suspeita foi o fato de haver ficado por minha conta o sótão da Rua da Misericórdia. Custou-lhe muito aceitar este arranjo, e quis escrever ao correspondente; não escreveu, mas agora pareceu-lhe que o sótão ficara em poder de alguma moça minha, e como não era de biocos, disse-me o que pensava e ordenou-me que lhe confessasse tudo.

— Antes quero que me fales verdade, qualquer que seja. Sei que és homem e posso fechar os olhos, contanto que te não percas... Vamos, o que é.

— Não é nada, meu pai.

— Mau! fala verdade.

— Está falada. Meu pai escreva ao Sr. Duarte, e ele dirá se o sótão não está fechado à minha espera. Não há muitos sótãos vagos no Rio de Janeiro; quero dizer em lugar que sirva, porque não hei de ir para fora da cidade, e um estudante deve estar perto da Escola. E aquele é tão bom! continuei com o pensamento na minha Pia. Não pode imaginar que sótão, a posição, o tamanho, a construção; no telhado há um vaso com miosótis, que dei à gente de baixo, quando embarquei; hei de comprar outro.

— Comprar outro? Mas tu estudas para engenheiro ou para jardineiro?

— Meu pai, as flores alegram, e não há estudante sério que não tenha um ou dois vasos de flores. Os próprios lentes...

Hoje dói-me escrever isto; era já uma troça de estudante, tanto mais condenável quanto meu pai era bom e crédulo. Certamente, eu possuía o vaso e a doce flor azul, e era verdade que o tinha dado à gente da casa; mas vós sabeis que o resto era invenção.

— E depois és poeta, concluiu meu pai rindo.

Parti para a Corte alguns dias antes do prazo. Não esqueço dizer que, durante as férias, compus e mandei publicar na imprensa fluminense várias poesias datadas da província. Eram dedicadas "à moça do Castelo", e algumas falavam de janelas cerradas. Comparava-me aos pássaros que emigram, mas prometem voltar cedo, e voltam. Jurava neles que tornaria a vê-la em breves dias. Não assinei esses versos; meu pai podia lê-los, e acharia assim explicado o sótão. Para ela a assinatura era desnecessária, visto que me não conhecia.

Encontrei a bordo um homem, que vinha do Pará, e a quem meu pai me apresentou e recomendou. Era negociante do Rio de Janeiro; trazia mulher e filha, ambas enjoadas. Gostou de mim, como se gosta a bordo, sem mais cerimônia, e viemos conversando por ali fora. Tinha parentes em Belém, e era associado em um negócio de borracha.

 Contou-me coisas infinitas da borracha e do seu futuro. Não lhe falei de versos; dando comigo a ler alguns, exclamou rindo:

— Gosta de versos? A minha Estela gosta, e desconfio até que é poetisa.

— Também faço o meu versinho de pé quebrado, disse eu com modéstia.

— Sim? Pois ela... Não confunda, não falo de minha mulher, mas de minha filha. Já uma vez dei com Estela a escrever, com uma amiga, na mesma mesa, uma de um lado, outra de outro, e as linhas não iam ao fim. Feliciana falou-lhe nisso, e ela respondeu rindo — que era engano meu; desconfio que não.

No porto de Recife, vi Estela e a mãe, e daí até o Rio de Janeiro, pude conversar com elas. A filha, como eu lhe falasse do que o pai me contara, autorizado por ele, que disse que os poetas naturalmente têm mais confiança entre si, que com estranhos, respondeu envergonhada que era falso; tinha composto meia dúzia de quadrinhas sem valor. Naturalmente protestei contra o juízo, e esperei que me desse alguma estrofe, mas teimou em calar. Era criatura de vinte anos, magra e pálida; faltava-lhe a elegância e a expressão que só em terra lhe vi, uma semana depois de chegados. Os olhos eram cor do mar. Esta circunstância fez-me escrever um soneto que lhe ofereci, e que ela ouviu com muito prazer, entre a mãe e o pai. O soneto dizia que os olhos, como as vagas do mar, encobriam o movimento de uma alma grande e misteriosa. Assim, em prosa, não tem graça; os versos não eram absolutamente feios, e ela fez-me o favor de os achar parecidos com os de Gonçalves Dias, o que era pura exageração. No dia seguinte disse-lhe o meu recitativo das Ondas: "A vida é onda dividida em duas..." Achou-o muito bonito.

— Tem a beleza da oportunidade; estamos no mar, retorqui eu.

— Não senhor, são bonitos versos. Peço-lhe que os escreva no meu álbum quando chegarmos.

Chegamos. O pai ofereceu-me a casa; eu dei-lhe o número da minha, explicando que era um sótão de estudante.

— Os pássaros também moram alto, disse Estela.

Sorri, agradeci, apertei-lhe a mão, e corri para a Rua da Misericórdia. A moça do Castelo chamava-me. De memória, tinha ante mim aquele corpo elegante, ereto no escuro da janela, erguendo os braços curvos, como asas de uma ânfora... Pia, Pia, santa e doce, dizia o meu coração batendo; aqui venho, aqui trago o sangue puro e quente da mocidade, ó minha doce Pia santa!

Nem Pia, nem nada. Durante três, quatro, cinco dias, não me apareceu o vulto do Castelo. Não sabendo que eu tornara ao sótão, é natural que não viesse ali às nossas horas de outro tempo. Também podia estar doente, ou fora, na roça ou na cidade. A ideia de que se houvesse mudado só me acudiu no fim de duas semanas, e admirou-me que não houvesse pensado nisso mais cedo.

— Mudou-se, é o que é.

A esperança disse-me que era impossível haver-se mudado. Mudado para onde? Onde iria uma moça, cujo busto ficava tão bem no escuro da janela e no alto do morro, com espaço para se deixar admirar de longe, levantar os braços e tão em direitura do meu sótão? Era impossível; assim ninguém se muda.

Já então visitara o negociante. A filha deu-me o álbum para escrever o recitativo das Ondas, e mostrou-me duas poesias que fizera depois de chegar: Guanabara e Minhas Flores.

— Qual acha mais bonita?

— Ambas são bonitas.

— Mas uma há de ser mais que a outra, insistiu Estela; é impossível que o senhor não ache diferença.

— Tem a diferença do assunto; a primeira canta a cidade e as águas; a segunda é mais íntima, fala das flores que não quiseram esperar pela dona, e compara-as às felicidades que também não esperam; eis a diferença.

Estela ouviu-me com os olhos muito abertos, e toda a vida neles. Uma sombra de sorriso mostrava que a minha apreciação lhe dava gosto. Após alguns instantes abanou a cabeça.

— Parece-me que o senhor gosta mais da Guanabara...

— Não há tal!

— Então não presta?

— Que ideia, D. Estela! Pois um talento como o seu há de fazer versos que não prestem?

— Acha-me talento?

— Muito.

— É bondade sua. Então a outra é que lhe parece melhor?

Como teimasse muito, achei de bom aviso concordar que uma delas era melhor, e escolhi Minhas Flores. E pode ser que fosse assim mesmo; Guanabara era uma reminiscência de Gonçalves Dias. Pois a escolha foi o meu mal. Estela ficou meio alegre, meio triste, e daí em diante quando me mostrava alguns versos, e eu os achava bons, tinha de lutar muito para prová-lo; respondia-me sempre que já da primeira vez a enganara.

A ação do tempo fez-se naturalmente sentir, em relação à moça do Castelo. Um dia vi ali um vulto, e acreditei que fosse a minha incógnita; tinha uma blusa branca; atentei bem, era um homem em mangas de camisa. Fiquei tão vexado de mim e daquela interminável esperança, que pensei em mudar de casa. A alma do rapaz é que principalmente reagiu, — e as matemáticas venceram a fantasia, — coisa que poderiam ter feito muito antes. Conto assim a minha história, sem confiança de ser crido, não por ser mentira, mas por não saber contá-la. A coisa vai como me lembra e a pena sabe, que não é muito nem pouco. As matemáticas não só venceram a fantasia, mas até quiseram acabar com os versos; disseram-me que nem fosse mais à casa de Estela.

— É o que vou fazer; nem versos de homens nem de mulheres. E depois, já penso demais naquela espevitada...

Espevitada! Daí a algumas semanas a lembrança deste nome enchia-me de remorsos; estava apaixonado por ela. Achava-lhe os versos deliciosos, a figura angélica, a voz argentina (rimando com divina, musa divina) toda ela uma perfeição, uma fascinação, uma salvação. Os versos que fiz por esse tempo não têm conta na aritmética humana. A musa entrou-me em casa e pôs fora as matemáticas. Ficou ela só, e os seus metros e consoantes, que ainda não eram ricos nem raros como agora. As flores que rimei com amores, os céus que rimei com véus, podiam receber outros mundos e cobri-los a todos. Ela era menos fecunda que eu, mas os versos continuavam a ser deliciosos. Já então eu os declarava tais com entusiasmo.

— Não está caçoando?

— Não, meu anjo! Pois eu hei de?... São lindíssimos; recita outra vez.

E ela recitava, e eu ouvia com os olhos em alvo. Projetamos imprimir e publicar os nossos versos em um só volume comum, com esse título: Versos Dela e Dele. A ideia foi minha, e ela gostou tanto que começou logo a copiá-los em um livro que tinha em branco. As composições seriam alternadas, ou as de cada um de nós formariam uma parte do livro? Nesta questão gastamos muitos dias. Afinal resolvemos alterná-las.

— Uns serão conhecidos pela própria matéria, outros pela linguagem, disse eu.

— Quer dizer que a minha linguagem não presta para nada?

— Que ideia, minha Estela!

— E acho que não tem razão: não presta.

Como estávamos sós, ajoelhei-me e jurei pelo céu e pela terra, pelos olhos dela, por tudo o que pudesse haver mais sagrado que não pensava assim. Estela perdoa-me e começou a cópia dos versos.

Nisso estávamos, eu ia pouco à Escola, e via raras vezes o Fernandes; este um dia levou-me a um café, e disse-me que ia casar.

— Tu?

— Sim; caso-me no princípio do ano, depois de tomar o grau, e mal sabes com quem.

— Pois também eu caso-me, disse-lhe daí a alguns segundos.

— Também?

— Ainda não está pedida a noiva, mas é certo que me caso, e não espero o fim dos estudos. Há de ser daqui a meses.

— Não é a do Castelo?

— Oh! não! Nem pensei mais nisso: é outra, e falta só pedir-lhe autorização e falar ao pai. É filha de um negociante. Conheci-a a bordo.

— Que singular caso! exclamou o Fernandes. Sabes tu com quem me caso? com a moça do Castelo.

Explicou-me tudo. Sabendo que a noiva morava no Castelo, falou-lhe de mim e do namoro; ela negou, mas ele insistiu tanto que Margarida acabou confessando e rindo muito do caso.

— Sabes que não sou de ciúmes retrospectivos. Queres tu vê-la? Agora que vocês dois estão para casar, e nunca se conheceram, há de ser curioso verem-se e conhecerem-se; eu direi a Margarida que és tu, mas que tu não sabes; tu ficas sabendo que é ela e que ela não sabe.

Poucos dias depois, Fernandes levou-me à casa da noiva. Era na Rua do Senado, uma família de poucos meios, pai, mãe, duas filhas, uma de onze anos. Margarida recebeu-me com afabilidade; estimava muito conhecer um amigo e colega do noivo, e tão distinto como lhe ouvira dizer muitas vezes. Não respondi nada; quis honrar a escolha da esposa que o meu Fernandes fizera, mas não achei palavra que exprimisse este pensamento. Todo eu era, ou devia ser uma boca aberta e pasmada. Realmente, era uma bela criatura. Ao vê-la, recordei os nossos gestos de janela a janela, estive a ponto de lhe atirar, como outrora, o beijo simbólico, e pedir-lhe que levantasse os braços. Ela não respondera nunca aos beijos, mas erguia os braços de si mesma por um instinto estético. E as longas horas, as tardes, as noites... Todas essas reminiscências vieram ali de tropel, e por alguns minutos, encheram-me a alma, a vista, a sala, tudo o que nos cercava.

— O doutor fala-me muita vez no senhor, insistiu Margarida.

— Fala de um amigo, murmurei finalmente.

Tendo-me ele dito que ela sabia ser eu o namorado do sótão, pareceu-me ver em cada gesto da moça alguma repetição daquele tempo. Era ilusão; mas que esperar de uma alma de poeta, perdida em matemáticas? Saí de lá com recordações do passado. A vista da rua e do presente, e sobretudo a imagem de Estela desfizeram aqueles fumos.

Há encontros curiosos. Enquanto eu conversava com Margarida, e evocava os dias de outrora, Estela compunha versos, que me mostrou no dia seguinte, com este título: Que é o passado? Imediatamente peguei do lápis, respondi com outros que denominei: Nada. Não os transcrevo por não me parecerem dignos do prelo; falo dos meus. Os dela eram bons, mas não devo divulgá-los. São segredos do coração. Digo só que a modéstia de Estela fê-los achar inferiores aos meus, e foi preciso muito trabalho para convencê-la do contrário. Uma vez convencida, releu-os à minha vista três e quatro vezes; pelo meio da noite, dei com os olhos dela perdidos no ar, e, como tinha ciúmes, perguntei-lhe se pensava em alguém.

— Que tolice!

— Mas...

— Estava recitando os versos. Você acha mesmo que são bonitos?

— São muito bonitos.

— Recite você.

Peguei dos versos de Estela e recitei-os outra vez. O prazer com que ela os ouvia foi, não digo enorme, mas grande, muito grande; tão grande que ainda os recitei uma vez mais.

— São lindos! exclamei no fim.

— Não diga isso!

— Digo, sim; são deliciosos.

Não acreditou, posto sorrisse; o que fez foi recitar os versos ainda uma vez ou duas, creio que duas. Eram só três estrofes; vim de lá com elas de cor.

A poesia dava à minha namorada um toque particular. Quando eu estava com o Fernandes dizia-lhe isso, ele dizia-me outras coisas de Margarida, e assim trocávamos as nossas sensações de felicidade. Um dia comunicou-me que ia casar dali a três meses.

— Assentou-se tudo ontem. E tu?

— Eu vou ver, creio que breve.

Casaram no dito prazo. Lá estive na igreja do Sacramento. Ainda agora penso como é que pude assistir ao casamento da moça do Castelo. Verdade é que estava preso à outra, mas as recordações, qualquer que fosse o meu atual estado, deviam fazer-me repugnante aquele espetáculo da felicidade de um amigo, com uma pessoa que... Margarida sorria encantada para ele, e aceitou os meus cumprimentos sem a menor reminiscência do passado... Sorriu também para mim, como qualquer outra noiva. Um tiro que levasse a vida ao meu amigo seria duro para mim, far-me-ia padecer muito e longo; mas houve um minuto, não me recordo bem qual, ao entrar ou sair da igreja, ou no altar, ou em casa, minuto houve em que, se ele cai ali com umas cãibras, eu não amaldiçoaria o céu. Expliquem-me isto. Tais foram as sensações e ideias que me assaltaram, e com algumas delas saí da casa deles, às dez horas da noite; iam dançar.

— Então a noiva estava bonita? perguntou-me Estela no dia seguinte.

— Estava.

— Muito?

Refleti um instante e respondi.

— Menos que você, quando cingir o mesmo véu.

Estela não acreditou, por mais que lhe jurasse, que tal era minha convicção: eram cumprimentos. Tinha justamente composto na véspera uma poesia, sobre o assunto, mas tão ruim, que não a mostraria; disse apenas o primeiro verso:

— Se hei de cingir um véu de noiva ou freira...

— Diga os outros!

— Não digo, que não prestam.

Como eu não teimasse, e ela quisesse provar que não prestavam, recitou-os assim mesmo, e confesso que não os achei tão ruins. Foi o nosso primeiro e sério arrufo. Estela suspeitou que eu estava caçoando, e não me falou durante uns vinte minutos. Afinal reconciliamo-nos. Como eu lhe não pedisse os versos, viu nisso a prova de que eles não prestavam para nada, e disse-mo. Provei-lhe o contrário, arrancando-lhe o papel da mão.

— Amanhã lhe dou cópia deles.

Copiei-os à noite, sonhei com ela, e no dia seguinte levei-lhe a cópia. Encontrei-a em caminho, com algumas amigas: iam ver um grande casamento. Acompanhei-as; à porta da igreja estavam ricas carruagens, cavalos magníficos, librés de bom gosto, povo à porta, povo dentro. Os noivos, os pais, os convidados esperavam o padre, que apareceu alguns minutos depois. Compreendi o gosto das moças em ver casamentos alheios; também eu estava alvoroçado. O que ninguém ali teve, creio e juro, foi a impressão que recebi quando dei com os olhos na noiva; era nada menos que a moça do teatro, a quem eu dera o nome de Sílvia, por lhe não saber outro. Só uma vez a vira, mas as feições não se apagaram da memória apesar de Margarida, apesar de Estela. O estremeção que tive não foi visto por ninguém: todos os olhos eram poucos para ela e para ele? Quem era ele? Um jovem médico.

Não houvera entre mim e esta moça mais que o encontro daquela noite do teatro; mas a circunstância de assistir ao seu casamento, como já assistir ao de Margarida, davam-lhe agora um cunho especial. Estaria eu destinado a ver ir para os braços alheios os meus sonhos mais íntimos? Assisti ao casamento de Sílvia o menos que pude, olhando para outras pessoas; afinal tudo acabou, os noivos, os pais e os convidados saíram; Estela e as amigas foram vê-los entrar nas carruagens.

— Que é que tem? perguntou-me ela na rua.

— Dir-lhe-ei depois.

— Quando?

— Logo.

Em casa disse-lhe que pensava no dia em que fôssemos objeto da curiosidade pública, e a nossa felicidade se consumasse assim.

— Não tardará muito, acrescentei; uma vez formado, virei pedi-la.

Os olhos dela confirmavam este acordo, e a musa o fez por versos que foram dos mais belos que li da minha poetisa.

Sim, o casamento aparecia-me como uma necessidade cada vez maior. Tratei de ir preparando as coisas de modo que, uma vez formado, não me demorasse muito. Antes disso, era impossível que meu pai consentisse. Estela estava por tudo; assim mo disse em prosa e verso. A prosa era a das nossas noites de conversação, ao canto da janela. O verso foi o de um soneto em que se comparava à folha, que vai para onde o vento a leva; o fecho era este:

Eu sou a folha, tu serás o vento.

Ao recordar todas essas coisas, sinto que muitas delas era melhor que se perdessem; revivê-las não paga o esforço, menos ainda a tristeza, a saudade, ou como quer que chamemos a um sentimento que, sem levar a gente a detestar o dia de hoje, traz não sei que remoto sabor do dia de ontem... Não, não deixo o meu cartório de tabelião do Ceará; na minha idade, e depois da minha vida, é o melhor Parnaso que conheço. As escrituras, se não rimam umas com outras, rimam com as custas, e sempre me dão algum prazer para recordar versos perdidos, de par com outros que são eternos... Fiquemos tabelião.

Íamos passando o tempo, sem grave incidente, quando uma tarde o pai de Estela entrou em casa, anunciando à mulher e à filha que tinha de ir a São Paulo. Não compreendi por que razão D. Feliciana empalideceu. Era uma senhora de vida severa e monótona, sem paixões, sem emoções. Depois é que me contaram algo que me explicou tudo. O marido de D. Feliciana tinha agora os negócios complicados, e parece que uma vez falara à mulher em fugir do Rio de Janeiro. Foi o que me disseram uns; outros falavam de amores. Tudo era mentira, mas D. Feliciana creio que teve medo de uma e de outra coisa, senão de ambas, e, com uma doçura incomparável, murmurou:

— Guimarães, leva-me a São Paulo!

Guimarães recusou; mas a esposa insistiu, alegando que tinha imensa vontade de ver São Paulo. Como o marido continuasse a negar, dizendo-lhe que ia a negócios e não podia carregar família, além de ser um desarranjo, a mulher trocou de maneiras, e pôs nos olhos tal expressão de desconfiança que o fez recuar.

— Vamos todos, Guimarães; havemos de ir todos a São Paulo.

— Sim, podíamos ir... mas é que... por tão pouco tempo... cinco ou seis semanas, dois meses... Valerá a pena, Feliciana? Mas, vamos, se queres; os vapores são pouco cômodos.

Olhei para Estela, pedindo-lhe com o gesto que interviesse contra o desejo da mãe. Estela empalidecera e perdera a voz; foi o que me pareceu, mas a prova do contrário é que, passados alguns instantes, como ouvisse ao pai dizer que sim, que iriam a São Paulo, suspirou esta palavra cheia de resignação e melancolia:

— Outra vez o mar! Um dia ir-me-ei ao fundo, procurar a pérola da morte!

— Dias de poesia, menina! ralhou a mãe. O mar até faz bem às pessoas.

As nossas despedidas foram o que são despedidas de namorados, ainda por ausências curtas de um ou dois meses. Na véspera da minha partida tivemos inspiração igual, compor uns versos em que chorássemos a dor da separação e ríssemos a alegria da volta. Ainda desta vez os versos dela eram melhores; mas, ou a tristeza ou outra coisa fez-lhe crer o contrário, e gastamos alguns minutos em provar, eu a superioridade dos dela, ela a dos meus. Não menos namorado que poeta, murmurei finalmente:

— Quaisquer que sejam eles, os melhores versos são as tuas lágrimas.

Estela não chorava; esta minha palavra fê-la chorar. Mordeu o beiço, levou o lenço aos olhos, e disse com um tom único, um tom que nunca mais esqueci:

— Já sei! é que os meus versos não prestam para nada, são próprios para o fogo; nem arte nem inspiração, nada, nada!

— Que dizes, Estela?

— Basta: compreendo. O senhor nunca me teve amor.

— Meu anjo!

— Nunca!

Não pude pegar-lhe na mão; correra à janela. Como eu ali fosse também, entrou novamente. Só depois de grande resistência consentiu em ouvir gabar-lhe os versos e explicar a preferência dada às lágrimas; era por serem dela. As lágrimas, disse-lhe eu, eram os próprios versos dela mudados em pérolas finas... Estela engoliu um sorriso vago, enxugou os olhos e releu para si os versos, depois alto, depois quis que eu os relesse também, e novamente os releu, até que o pai veio ter conosco.

— Doutor, disse-me ele, e se fosse também conosco?

— A São Paulo?

— Sim.

— Iria, se pudesse. Já pensei nisso, mas os exames do fim do ano...

— Também são apenas dois meses, ou menos.

Embarcaram para Santos. Fui despedir-me a bordo, e ao voltar para o meu sótão, comecei logo a escrever a primeira carta; no dia seguinte, remeti-a. Três dias depois tive a primeira carta de Estela, uma breve e triste carta em que falava mais do mar que de mim, mais de si que do mar, e mais da poesia que de nenhum dos três. “A musa é a consolação final de tudo”. Compreendi que assim fosse, teria mostrado a carta à mãe, e não conviria escrever intimidades. Cuidei de ser mais discreto que na primeira. Assim se passaram as primeiras semanas. No fim das seis ainda me falava em vir, mas não veio. Passados dois meses, contei-lhe as minhas saudades. Não me respondeu; escrevi-lhe outra; recebi um bilhete em que me contava um baile do presidente da província, descrição longa e amorosa, as valsas, as quadrilhas, e no fim uns versos que compôs na seguinte manhã, com o pedido de os fazer imprimir em alguma folha, “e um pequeno juízo”.

— Não me ama! bradei desesperado. Nunca esta criatura gostou de mim! Nem uma palavra de consolação ou de explicação! Bailes? Que são bailes?

E fui por aí adiante, com tal desvario, que falava às paredes, aos ares, e falaria ao diabo, se ali me aparecesse; ao menos, ele seria pessoa viva. As paredes ficaram surdas; os ares apenas repercutiram as minhas vozes. Entretanto, copiei os versos, pus-lhe algumas palavras de louvor, e levei-os ao Correio Mercantil, onde um amigo me fez o favor de os publicar na parte editorial. Foi um dos elementos da minha desgraça.

Os versos entraram por São Paulo, com os elogios do Correio Mercantil. Todos os leram, as pessoas das relações de Estela ficaram admirando esta moça que merecia tanto da imprensa da Corte. Era um grande talento, um gênio; um dos poetas da Faculdade de Direito chamou-lhe Safo. E ela subiu às nuvens, talvez acima.

Escasseando as cartas, resolvi ir a São Paulo; mas então o pai escreveu-me dizendo que iriam a Sorocaba e outros lugares, e só daí a dois ou três meses poderiam estar de volta. Estela escreveu-me um bilhetinho de três linhas, com um soneto, para o Correio Mercantil. Posto me não falasse em juízo algum da folha, e o meu desejo fosse estrangulá-la, não deixei de escrever quatro palavras de "louvor ao grande talento da nossa ilustre patrícia". Agradeceu-me com um bilhetinho, fiquei sem mais cartas. Onde estariam? Na casa comercial do pai é que me iam informando do itinerário da família, pelas cartas que recebiam dele.

Um dia, anunciaram-me ali que o Guimarães vinha à Corte, mas só.

— Só!

— É o que ele diz.

— Mas a família?...

— A família parece que fica.

Veio só. Corri a vê-lo, recebeu-me com polidez, mas frio e triste, vexado, penalizado. Não me disse nada nos primeiros dias, mas uma notícia grave e um acontecimento certo e próximo não são coisas que se guardem por muito tempo: Estela ia casar. Casava em Sorocaba...

Não ouvi o resto. A noite, o mar, as ruas é que ouviram as minhas imprecações e lamentações, não sei quanto tempo. Assim pois, uma por outra, vim trocando as mulheres possíveis e perdendo-as sucessivamente. Aquela com quem afinal me casei é que não substituiu nenhuma Sílvia, Margarida ou Estela; é uma senhora do Crato, meiga e amiga, robusta apesar de magra, é mãe de dois filhos que vou mandar para o Recife, um dia destes.

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