Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Poucas vezes, ia ao antigo Pedro
II e as poucas em que lá fui, era das galerias que assistia ao espetáculo.
Munido do competente bilhete, às
oito horas, entrava, subia, procurava o lugar marcado e nele mantinha-me,
durante a representação. De forma que aquela sociedade brilhante que eu via
formigar nos camarotes e nas cadeiras, me parecia distante, colocada muito
afastada de mim, em lugar inacessível, no fundo de cratera de vulcão extinto.
Cá do alto, debruçado na grade, eu sorvia o vazio da sala com a volúpia de uma
atração de abismo. As casacas corretas, os uniformes aparatosos, as altas
toaletes das senhoras, semeadas entre eles, tentavam-me, hipnotizavam-me.
Decorava os movimentos, os gestos dos cavalheiros e procurava descobrir a harmonia
oculta entre eles e os risos e os ademanes das damas.
Nos intervalos, encostado a uma
das colunas que sustentam o teto, observando os camarotes, apurava o meu estudo
do hors-ligne, do distinto, com os
espectadores que ficavam nas lojas.
Via correrem-se-lhes os
reposteiros, e os cavaleiros bem encasacados, juntarem os pés, curvarem
ligeiramente o corpo, apertarem ou mesmo beijarem a mão das damas que se
mantinham eretas, encostadas a uma das cadeiras, de costas para a sala, com o
leque em uma das mãos caídas ao longo do corpo. Quantas vezes não tive ímpetos
de ali mesmo, com risco de parecer doido ao polícia vizinho, imitar aquele
cavalheiro?
Quase tomava notas, desenhava
esquemas da postura, das maneiras, das mesuras do elegante senhora...
Havia naquilo tudo, na singular
concordância dos olhares e gestos, dos ademanes e posturas dos interlocutores,
uma relação oculta, uma vaga harmonia, uma deliciosa equivalência que mais do
que o espetáculo do palco, me interessavam e seduziam. E tal era o ascendente
que tudo isso tinha sobre o meu espírito que, ao chegar em casa, antes de
deitar, quase repetia, com o meu velho chapéu de feltro, diante do meu espelho
ordinário, as performances do cavalheiro.
Quando cheguei ao quinto ano do
curso e os meus destinos me impuseram, resolvi habilitar-me com uma casaca e
uma assinatura de cadeira do Lírico. Fiz consignações e toda a espécie de
agiotagem com os meus vencimentos de funcionário público e para lá fui.
Nas primeiras representações,
pouco familiarizado com aquele mundo, não tive grandes satisfações; mas, por
fim, habituei-me.
As criadas não se fazem em
instantes duquesas? Eu me fiz logo homem na sociedade.
O meu colega Cardoso, moço rico,
cujo pai enriquecera na indústria das indenizações, muito concorreu para isso.
Fora simples a ascensão do pai à
riqueza. Pelo tempo do governo provisório, o velho Cardoso pedira concessão
para instalar uns poucos de burgos agrícolas, com colonos javaneses, nas
nascentes do Purus; mas, não os tendo instalado no prazo, o governo seguinte
cassou o contrato. Aconteceu, porém, que ele provou ter construído lá um rancho
de palha. Foi para os tribunais que lhe deram ganho de causa, e recebeu de
indenização cerca de quinhentos contos.
Encarregou-se o jovem Cardoso de
me apresentar ao "mundo", de me informar sobre toda aquela gente.
Lembro-me bem que, certa noite, me levou ao camarote dos viscondes de
Jacarepaguá. A Viscondessa estava só; o marido e a filha tinham ido ao bufê.
Era a Viscondessa uma senhora idosa, de traços empastados, sem relevo algum, de
ventre proeminente, com um pince-nez de ouro trepado sobre o pequeno nariz e
sempre a agitar o cordão de ouro que prendia um grande leque rococó.
Quando entramos, estava sentada,
com as mãos unidas sobre o ventre, tendo o fatal leque entre elas, o corpo
inclinado para trás e a cabeça a repousar sobre o espaldar da cadeira. Mal
desmanchou a posição em que estava, respondeu maternalmente aos cumprimentos, e
interrogou o meu amigo sobre a família.
— Não desceram de Petrópolis,
este ano?
— Meu pai não tem querido... Há
tanta bexiga...
— Que medo tolo! Não acha,
doutor? dirigindo-se a mim.
Respondi:
— Penso assim também,
Viscondessa.
Ela ajuntou então:
— Olhe, doutor... como é a sua
graça?
— Bastos, Frederico.
— Olhe, doutor Frederico; lá em
casa havia uma rapariga... uma negra... boa rapariga...
E, por aí, desandou a contar a
história vulgar de uma pessoa que trata de outra atacada de moléstia contagiosa
e não apanha a doença, enquanto a que foge vem a morrer dela.
Depois da sua narração, houve um
curto silêncio; ela, porém, o quebrou:
— Que tal o tenor?
— E bom, disse o meu amigo. Não é
de primeira ordem, mas se o pode ouvir...
— Ah! O Tamagno! suspirou a
Viscondessa.
— O câmbio está mau, refleti; os
empresários não podem trazer notabilidades.
— Nem tanto, doutor! Quando
estive na Europa, pagava por um camarote quase a mesma coisa que aqui... Era
outra coisa! Que diferença!
Como houvessem anunciado o começo
do ato seguinte, despedimo-nos. No corredor, encontramos o visconde e a filha.
Cumprimentamo-nos rapidamente e descemos para as cadeiras.
Meu companheiro, segundo a praxe
elegante e desgraciosa, não quis entrar logo. Era mais chique esperar o começo
do ato... Eu, porém, que era novato, fui tratando de abancar-me. Ao entrar na
sala, dei com o Alfredo Costa, o que me causou grande surpresa, por sabê-lo,
apesar de rico, o mais feroz inimigo daquela gente toda.
Não foi durável o meu espanto.
Juvenal tinha posto a casaca e cartola, para melhor zombar, satirizar e estudar
aquele meio.
— De que te admiras? Venho a este
barracão imundo, feio, pechisbeque, que faz todo o Brasil roubar, matar,
prevaricar, adulterar, a fim de rir-me dessa gente que tem as almas candidatas
ao pez ardente do inferno. Onde estás?
Disse-lhe eu, ao que ele me
convidou:
— Vem para junto de mim... Ao meu
lado, a cadeira está vazia e o dono não virá. E a do Abrantes que me avisou
disso, pois, no fim do primeiro ato, me disse que tinha de estar em certo lugar
especial... Vem que o lugar é bom para observar.
Aceitei. Não tardou que o ato
começasse e a sala se enchesse... Ele, logo que a viu assim, falou-me:
— Não te dizia que, daqui, tu
poderias ver quase toda a sala?
— É verdade! Bela casa!
— Cheia, rica! observou o meu
amigo com um acento sarcástico.
— Há muito que não via tanta
gente poderosa e rica reunida.
— E eu há muito tempo que não via
tantos casos notáveis da nossa triste humanidade. Estamos como que diante de
vitrinas de um museu de casos de patologia social.
Estivemos calados, ouvindo a
música; mas, ao surgir na boca de um camarote, à minha direita, já pelo meio do
ato, uma mulher, alta, esguia, de grande porte, cuja tez moreno-claro e as
joias rutilantes saíam muito friamente do fundo negro do vestido, discretamente
decotado em quadrado, eu perguntei:
— Quem é?
— Não conheces? A Pilar, a
"Espanhola”.
— Ah! Como se consente?
— É um lugar público... Não há
provas... Demais, todas as "outras" a invejavam... Tem joias caras,
carros, palacetes...
—Já vens tu...
— Ora! Queres ver? Vê o sexto
camarote de segunda ordem, contando de lá para cá! Viste?
— Vi.
— Conheces a senhora que lá está?
— Não, respondi.
— É a mulher de Aldong, que não
tem rendimentos, sem profissão conhecida ou com a vaga de que trata de
negócios. Pois bem: há mais de vinte anos, depois de ter gasto a fortuna da
mulher, ele a sustenta como um nababo. Adiante, embaixo, no camarote de
primeira ordem vês aquela moça que está com a família?
— Vejo. Quem é?
É a filha do doutor Silva a quem,
certo dia, encontraram, em uma festa campestre, naquela atitude que Anatole
France, num dos Bergerets, diz ter alguma coisa de luta e de amor... E os
homens não ficam atrás...
— És cruel!
— Repara naquele que está na segunda
fila, quarta cadeira, primeira classe. Sabes de que vive?
— Não.
— Nem eu. Mas, ao que corre, é
banqueiro de casa do jogo. E aquele general, acolá? Quem é?
— Não sei.
— O nome não vem ao acaso; mas
sempre ganhou as batalhas... nos jornais. Aquele almirante que tu vês, naquele
camarote, possui todas as bravuras, menos a de afrontar os perigos do mar. Mais
além, está o desembargador Genserico...
Costa não pôde acabar. O ato
terminava: palmas entrelaçavam-se, bravos soavam. A sala toda era uma vibração
única de entusiasmo. Saímos para o saguão e eu me pus a ver todos aqueles
homens e mulheres tão maldosamente catalogados pelo meu amigo. Notei-lhes as
feições transtornadas, o tormento do futuro, a certeza da instabilidade de suas
posições. Vi todos eles a arrombar portas, arcas, sôfregos, febris, preocupados
por não fazer bulha, a correr à menor que fosse...
E ali, entre eles, a
"Espanhola" era a única que me aparecia calma, segura dos dias a vir,
sem pressa, sem querer atropelar os outros, com o brilho estranho da pessoa
humana que pode e não se atormenta...
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