Uma Carta
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Celestina acabando de almoçar, voltou à
alcova, e, indo casualmente à cesta de costura, achou uma cartinha de papel
bordado. Não tinha sobrescrito, mas estava aberta. Celestina, depois de hesitar
um pouco, desdobrou-a e leu:
Meu anjo adorado,
Perdoe-me esta audácia, mas não posso mais
resistir ao desejo de lhe abrir o meu coração e dizer que a adoro com todas as
forças da minha alma. Mais de uma vez tenho passado pela rua, sem que a senhora
me dê a esmola de um olhar, e há muito tempo que suspiro por lhe dizer isto e
pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me ama, como eu a amo,
creia que morrerei de desgosto. Os seus olhos lindos como as estrelas do céu
são para mim as luzes da existência, e os seus lábios, semelhantes às pétalas
da rosa, têm toda a frescura de um jardim de Deus...
Não copio o resto; era longa a carta, e no
mesmo estilo composto de trivialidade e imaginação. Apesar de longa, Celestina
leu-a duas vezes, e, em alguns lugares, três e quatro; naturalmente eram os que
falavam da beleza dela, dos olhos, dos lábios, dos cabelos, das mãos. Estas
pegavam trêmulas na carta, tão comovida ficara a dona, tão assombrada de um tal
achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente, a escrava — a única escrava da
casa, peitada pelo autor. E quem seria este? Celestina não tinha a menor
lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas, como ele dizia que ela
mesma não lhe dera a esmola de um olhar, estava explicado o caso, e só restava
agora reparar bem nos homens da rua.
Celestina foi ao espelho, e lançou um olhar
complacente sobre si. Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta ideia de
suas graças. Contava então trinta e nove anos, parece mesmo que mais um; mas
este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na história. Era
simples opinião da mãe; esta senhora, porém, contando sessenta e quatro anos,
podia confundir as coisas. Em todo o caso, qualquer que fosse o exato número, a
própria dona dos anos não os discutiu, e limitava-se a parecer bem. Não parecia
mal, nem fazia má figura, todas as tardes, à janela.
Esquecia-me dizer que isto acontecia aqui
mesmo, no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1862. Celestina era filha de um antigo
comerciante, que morreu pobre, tendo apenas feito para a família um pequeno
pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para fora.
A ideia de casar entrou na cabeça de
Celestina, desde os treze anos, e ali se conservou até os trinta e sete, pode
ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a perdera de todo, e só
se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre, não contava que
ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto podia compensar o
resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.
Foi neste ponto da vida que Celestina deu com
a carta na cesta de costura. Compreende-se o alvoroço do pobre coração. Afinal,
recebia o prêmio da demora; aí aparecia um namorado, por seu próprio pé, sem
ela dar por ele, e dispunha-se a fazê-la feliz.
Já vimos que ela atribuía à escrava da casa a
intervenção naquele negócio, e o primeiro impulso foi ir ter com ela; mas
recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto, não estando nos seus
quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a autoridade. Mas,
por outro lado, se se calasse, arriscava o namorado, que, não tendo resposta, poderia
desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria, até que resolveu
consultar a irmã. A irmã, Joaninha, tinha vinte anos, e era pessoa de muita
gravidade; podia dar-lhe um conselho.
— O quê? Não ouço.
— Queria consultar você sobre uma coisa.
— Que coisa? Você hoje está assim esquisita,
tão alegre, e tão acanhada. Que é que você quer, Titina? Diga. Já adivinhei.
— O que é?
— É sobre aquele vestido da Baronesa.
Celestina fez um gesto de desgosto, e ia
negar, mas não conseguindo abrir-se com a irmã, preferiu mentir, e foi buscar o
vestido. Na verdade, podia ser mãe dela, viu-a nascer, ajudou-a a criar. Nunca
entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é que ambas os não
tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.
Não sabendo como sair da dificuldade,
Celestina adotou um plano intermédio; procuraria primeiro descobrir a pessoa
que lhe mandara a carta, e se a merecesse, como era de supor, à vista da
linguagem da carta, abrir-se-ia com a escrava, e depois com a irmã. Nessa mesma
tarde, ela foi mais cedo para a janela, e mais enfeitada, esteve menos
distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua, abaixo e acima; não
apontava rapaz ao longe, que não o seguisse com curiosidade inquieta e
esperançosa. Joaninha, ao pé dela, notava que a irmã não estava como de
costume; e pode ser mesmo que lhe atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é
que não via nada. Sentada na outra janela (era uma casa assobradada), ora
cochilava, ora perguntava às filhas quem era que ia passando.
— Celestina, aquele não é o Dr. Norberto?
— Joaninha, parece que lá vai a família do
Alvarenga.
Perto das ave-marias, viu Celestina surdir da
esquina um rapaz, que, tão depressa entrara na rua, pôs os olhos na casa.
Passou pelo lado oposto, lento, evidentemente
abalado, olhando ora para o chão, ora para a janela. Foi até o fim da rua,
atravessou-a, e voltou pelo lado da casa. Já então era um pouco escuro, não
tanto, porém, que encobrisse a gentileza do rapaz, que era positivamente um rapagão.
Celestina ficou realmente fora de si. A irmã
não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a
alma de Celestina de uma vida desusada. Com efeito, durante a noite, esteve ela
como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos
outros. Quase que não quis tomar chá, e só a muito custo se recolheu para
dormir.
“Titina viu passarinho verde” pensou Joaninha
ao deitar-se.
Celestina, recolhida ao quarto, meteu-se na
cama, e releu a carta do rapaz, lentamente, saboreando as palavras de amor, e
os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura, para pensar nele, vê-lo surdir
de uma esquina, ir pela rua fora do lado oposto, e tornar depois do lado dela.
Via-lhe os olhos, o andar, a figura... Depois tornava à carta, e beijava-a
muitas vezes, e numa delas, sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou da lágrima;
era das que se confessam. Quando cansou de ler a carta, meteu-a debaixo do
travesseiro, e dispôs-se a dormir.
Mas qual dormir! Fechava os olhos, mas o sono
andava pelas casas dos indiferentes, não queria nada com uma pessoa em quem as
esperanças mortas reviviam com o vigor da adolescência. Celestina recorria a
todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da carta fincava-lhe os olhos
ardentes, e ia de um lado para outro; não tinha mais que contemplá-lo. Não era
ele o namorado, o apaixonado, o noivo próximo? Que ela planeara tudo: no dia
seguinte escreveria uma resposta ao rapaz, e dá-la-ia à escrava, para que a
entregasse. Estava disposta a não perder tempo.
Era meia-noite, quando Celestina conseguiu
adormecer; e antes o fizesse há mais tempo, porque sonhou ainda com o rapaz, e
não perdeu nada.
Sonhou que ele tornara a passar, recebera a
resposta e escrevera de novo. No fim de alguns dias, pediu-lhe autorização para
solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma festa brilhante, concorrida, à
qual todas as pessoas amigas foram, cerca de dezoito carros. Nada mais lindo
que o vestido dela, de cetim branco, um ramalhete de flores de laranjeira, ao
peito, algumas outras nos apanhados da saia. A grinalda era lindíssima. Toda a
vizinhança nas janelas. Na rua gente, na igreja muita gente, e ela entrando por
meio de alas, ao lado da madrinha... Quem seria a madrinha? D. Mariana Pinto ou
a Baronesa? A Baronesa... A mãe talvez quisesse D. Mariana, mas a Baronesa...
Em sonhos mesmo discutiu isso, interrompendo a entrada triunfal no templo.
O padrinho do noivo era o próprio Ministro da
Justiça, que ia ao lado dele fardado, condecorado, brilhante, e que, no fim da
cerimônia, veio cumprimentá-la com grande atenção. Celestina estava cheia de
si, a mãe também, a irmã também, e ela prometia a esta um casamento igual.
— Daqui a três meses, você está também
casada, dizia-lhe ao receber dela os parabéns.
Muitas rosas desfolhadas sobre ela. Eram
caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço, e ela saiu como se fosse entrando
no céu. Os curiosos eram agora em maior número. Gente e mais gente. Chegam os
carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai depois o cortejo devagar
e brilhante, todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com uma gravidade
fidalga. E ela, ela, tão feliz! ao lado do noivo!
A fada branca dos sonhos continuou assim a
fazer surdir do nada uma porção de coisas belas. Celestina descobriu, no fim de
uma semana de casada, que o marido era príncipe. Celestina princesa! A prova é
que aqui está um palácio, e todas as portas, louça, cadeiras, coches, tudo tem
armas principescas, no escudo, uma águia ou leão, um animal qualquer, mas
soberano.
— Vossa Alteza se quiser...
— Rogo a Vossa Alteza.
— Perdão, Alteza...
E tudo assim, até quase de manhã. Antes do
sol acordou, esteve alguns minutos esperta, mas tornou a dormir para continuar
o sonho, que então já não era de príncipe. O marido era um grande poeta, viviam
ao pé de um lago, ao pôr-do-sol, cisnes nadando, um princípio da lua, e a
felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.
Celestina acordou tarde; ergueu-se ainda com
o sabor das coisas imaginadas, e o pensamento no namorado, noivo próximo.
Embebida na imagem dele, foi às suas abluções matinais. A escrava entrou-lhe na
alcova.
— Nhã Titina...
— Que é?
A preta hesitou.
— Fala, fala.
— Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?
— Achei.
— Vosmecê me perdoe, mas a carta era para nhã
Joaninha...
Celestina empalideceu. Quando a preta a
deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima — e foi a última que o amor lhe
arrancou.
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