11/01/2017

Um romance desconhecido (Conto), de Alfred de Musset


Um romance desconhecido (lenda alemã)

Tradução publicada na "Revista da America", início do século XX. Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Contaram-me na Alemanha uma lenda, ou uma balada, como quiserem, que guardei, não porque contenha coisa muito notável, mas pelo seu horrível desenlace.  Infelizmente não a traduzi; não fiz mais do que procurar lembrar-me mais ou menos do assunto e do estilo. 

Em uma cidade alemã, pouco distante das margens do Reno, viviam os dois irmãos Van Buck, que passavam, com justiça, por hábeis gravadores. 

Acostumaram-se a ir quase todas as noites, depois de jantarem, a casa de um velho ourives seu vizinho. Este honrado homem que se chamava Thomaz Hermans, recebia-os em sua oficina, ao calor do lume com um grande cachimbo na boca.

Não eram muito animados os serões que passavam os três; os dois irmãos eram de um natural bastante taciturno, e o ourives, ainda que tivesse o olhar animado, contudo os trabalhos a que se entregava durante o dia preocupavam-no bastante para tornarem-no distraído e pouco acessível. 

Todavia, os três se entendiam perfeitamente e nem por isso se estimavam menos pela conformidade de gênios; era raríssimo que, ao passar de noite pela oficina de Hermans, não se apercebesse através dos vidros as cabeças dos três amigos em redor de uma lâmpada, e, a maior parte do tempo, de uma grande jarra com cerveja. 

Uma noite (havia pouco tempo), o velho Hermans mostrou-se mais alegre que de ordinário. 

— O que é isso? perguntaram-lhe os gravadores; por Deus, que tendes uma nova alegria estampada no semblante. 

— Meus filhos, replicou o velho ourives, amanhã minha filha sai do convento; está terminada sua educação, e me vês, meus dignos amigos, meus queridos vizinhos, com uma alegria que até me dá vontade de dançar sobre esta mesa. 

É preciso notar que o honrado Hermans queria tanto bem aos padres como a uma peste. Porém uma irmã velha, rica e devota, exigira que a sobrinha entrasse para um convento, e com pesar consentiu nisto o sábio calculista. 

— Sim, meus filhos, haveis de vê-la: que cócegas sinto nas mãos para afagar-lhe as faces! 

Os gravadores apertaram-lhe afetuosamente a mão, e o resto do serão passou-se falando-se na senhorita Guilhermina. Como estará bonita! dizia o velho. 

Nesse dia a jarra da cerveja foi substituído por uma garrafa bem rolhada e lacrada, e ficou combinado que no dia seguinte os dois vizinhos lá iriam jantar. 

Tiveram a precaução de não faltar. Vestidos com seus trajos domingueiros, dirigiram-se ao lusco-fusco, à casa de seu velho amigo e sentaram-se à mesa quase imediatamente. Apenas Thomaz Hermans deu um formidável murro na mesa capaz de quebrar os vasos, a fim de manifestar seu contentamento. A jovem com passo tímido e braços descabidos, sentou-se, toda ruborizada entre os dois moços. 

O jantar correu silenciosamente, apesar dos esforços que empregava o ourives, o qual depois de haver esgotado em primeira explosão de alegria, viu-o obrigado a contentar-se em olhar sorrindo para sua querida filha. 

Os gravadores conservaram uma atitude fria, e entraram a olhar-se. 

À noite quando voltaram para casa, deitaram-se sem trocar uma palavra, contra o costume, que era discorrer sobre os acontecimentos e trabalhos  do dia, e como dormiam no mesmo quarto prolongavam a conversação até hora muito adiantada da noite. 

Os dois irmãos Van Buck amavam-se ternamente; viam-nos em todos os lugares, no passeio, nas festas, em casa e que preferiam a tudo. Tinham o mesmo talento, e o trabalho de um era firmado às vezes pelo outro. Dir-se-ia que a fisionomia de um estava esculpida na do outro. Nunca se vira sob as abóbadas celestes mais bela união. Era, pois, muito de estranhar que evitassem a conversação, e olhar. Teriam dado motivo de mortificação ao seu bom vizinho? 

Assim passou-se a noite, sem que nenhum deles pregasse olho. A luz iluminava a casa, e cada momento volviam-se nos leitos, suspirando.

Era evidente que ambos haviam recebido ao mesmo tempo um profundo golpe: amavam Guilhermina. 

Passou-se uma semana sem trocarem um aperto de mãos. Um silêncio pertinaz reinou na oficina, e cada um deles, curvado na prancha de cobre, não voltava a cabeça um só instante. 

No último dia dessa triste semana, estava o velho Hermans sentado no umbral da porta, em frente de sua filha. 

— Não me tinhas dito, querido pai, que veríamos todas as noites os dois irmãos Van Buck? 

— É verdade, respondeu o ourives, que há oito dias não aparecem! É singular! 

— Porventura serei eu a causa? disse Guilhermina. Desde que cheguei deixaram de aparecer.

A estas palavras pronunciadas ingenuamente, o ancião inclinou a cabeça e conservou-se por muito tempo calado. 

— Oh minha filha! minha querida filha, exclamou por fim, levando aos seus ressequidos lábios a mão roliça e mimosa da jovem. Esses monges ensinaram-te sem dúvida a detestar o amor; ensinaram-te porém eles a resistir-lhe? Oh! por Deus! não contarás a teu velho pai algumas noites de verão? 

Guilhermina por única resposta, sacudiu a cabeça e sorriu. 

— É doce teu sorriso, meu anjo, tão doce como mel. Permita Deus que nunca se troque em lágrimas. 

— Ah! meu pai, me julgais tão bela para ser tão desgraçada?

Nessa ocasião apareceram-lhe os dois gravadores. Guilhermina retirou-se logo que chegaram.

— Vimos tua filha Hermans, disseram eles, e perdemos o sono. Falemos com franqueza; queres um de nós para genro? Perguntai-lhe a qual prefere ela e desse será legítima esposa. Nossas oficinas estão tão cheias de operários como as tuas; é magnífica a nossa freguesia. Vê o que decides? 

O ourives estendeu-lhes as mãos. 

— Peço-vos três dias. É muito? disse ele. Já vejo que estais apaixonados. 

— É verdade, responderam os gravadores; amamos tua filha, não é preciso deixar-nos tempo de amá-la, sem esperança de curarmo-nos deste amor. 

Apenas à noite a jovem ousou levantar os olhos. Sabia qual o escolhido. 

No dia seguinte o Velho Hermans endereçou aos dois irmãos uma carta concebida nestes termos:

“Minha filha viu-os ambos; estimará Tristão como esposo e Henrique como irmão. Oxalá esta confissão que lha arranco com trabalho, seja por vós recebida como deve sê-lo. Vosso velho amigo espera-vos para estreitar em seus braços toda a sua família.”

Estavam estes nobres corações convencidos de que aceito um o outro deveria calar-se para sempre. Tais são, infelizmente os pactos que se fazem antes de conhecer a sorte. Henrique, que havia tomado a carta do ourives para lê-la, não pôde terminá-la; largou-a sobre a mesa, e pálido como a neve, caiu sobre um escabelo. 

No entanto, continuaram vivendo juntos o em boa harmonia. Dirigiam-se ambos, como de costume, à casa do ourives. O afortunado noivo fazia a corte à sua futura esposa. O próprio Henrique esforçava-se por manifestar alegria, e somente a palidez que se lhe via no rosto contrastava com a calma que afetava. 

***

Um dia em que os dois irmãos se dirigiam para casa, pararam no meio de um bosque, fatigados de andarem e deitaram-se no musgo. 

— Tristão, disse Henrique Van Buck, há muito que me reconcentro; é necessário que te abra minha alma. É impossível que cases com a filha desse ourives. 

— Meu irmão, replicou Tristão, é assim que te recordas das leis da honra? 

— Sei que falto a estas leis; refleti muito sobre elas antes de falar-te; mas olha-me, já não vivo, conheço que a morte aproxima-se, e, apesar disto, sinto que o pouco sangue que me resta nas veias queima-me como fogo. 

— Vejo, respondeu Tristão, julgas que não sofro muito vendo-te reduzido a tal extremo? Ah! perco talvez toda a minha alegria, porém que remédio posso eu dar a teus sofrimentos? 

— Nenhum, meu irmão, não te peço senão um favor, e suplico-te, que mo concedas. Não te cases com essa jovem antes de minha morte. 

— De tua morte! exclamou Tristão. 

— Sim, meu querido Tristão, assim é necessário. Exijo que me dês a tua palavra, pois se eu fosse obrigado a firmar o teu contrato... 

— Não, meu irmão, é impossível que morras em tal desespero. Queres que te prometa uma coisa que só ao lembrar-me gela-me o coração? 

Ao dizer estas palavras, Tristão olhou para o irmão e viu a palidez da morte em seus lábios. 

— Querido Henrique! exclamou, prefiro ceder meus direitos a deixar-te morrer assim. Casa-te com ela, eu te peço, e me transporei para o outro lado dos mares. 

— Que eu me case! exclamou Henrique. Acaso podes transmitir-me com os teus direitos o amor que ela consagra-te? É preciso que um de nós morra, acrescentou com voz sombria. Sua mão tremia e brandia a faca. 

— Sim, respondeu Tristão. 

Ambos se levantaram maquinalmente. 

— Só vejo um meio, disse Henrique. 

Ambos empunharam as facas e puseram-se em guarda. Porém habituados a esgrimir juntos suas  armas e conhecendo todo o jogo, rara vez se alcançavam. Durou uma hora inteira, atiraram-se furiosos golpes, descansando de vez em quando com as costas já retalhadas por profundas feridas. 

Durante uma dessas pausas ouviram os tambores dar sinal que os habitantes da cidade já se recolhiam. Era a hora em que tantas vezes haviam entrado juntos, com os braços entrelaçados, alegres ou tristes, e os pés cobertos de poeira, conversando sobre seus mais secretos pensamentos. Toda a sua juventude desenvolveu-se-lhes ante os olhos. 

O sol estava quase a declinar; seus raios deslizavam por entre os velhos pinheiros, sobre a colina coberta de folhas secas. O rocio da tarde molhara a vegetação, e as aves saudavam a noite. Tristão voltou a cabeça; viu no vale os campanários da cidade natal que saíam da neblina e o rio estender-se sobre o brado como uma serpente branca no ervaçal.

Comoveu-se; deu um passo para o irmão e estendeu-lhe à mão. Porém apoderou-se de seu espírito uma debilidade moral; encostou-se a uma árvore, escorregou e caiu.

Henrique completava com horror os últimos esforços de seu irmão para recobrar a vida; queria arrastar-se até ele, mas não podia mover-se. Banhado em sangue, de pé e imóvel, vacilava como um homem ébrio.

Estes infelizes tiveram uma mãe que os amava muito. Do fundo do vale, no crepúsculo, uma forma vaga pareceu destacar-se de improviso, adiantou-se até eles. Subia lentamente a colina, e ao passo que se aproximava, os filhos reconheceram que era sua mãe.

Na ocasião em que o espectro aparecia visível, o que estava de pé, deixou por um último esforço o lugar em que estava pregado, e foi arrojar-se nos braços do que jazia por terra. 

Assim os dois, cobertos de sangue e de lágrimas, expiraram em um último abraço.

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