Um que vendeu a sua alma
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
A anedota que lhe vou contar, tem
alguma coisa de fantástica e pareceria que, como homem de meu tempo, eu não
devia dar-lhe crédito algum. Entra nela o Diabo e toda a gente de certo
desenvolvimento mental está quase sempre disposta a acreditar em Deus, mas raramente
no Diabo.
Não sei se acredito em Deus, não
sei se acredito no Diabo, porque não tenho as minhas crenças muito firmes.
Desde que perdi a fé no meu
Lacroix; desde que me convenci da existência de muitas geometrias a se
contradizerem nas suas definições e teoremas mais vulgares; desde então deixei
que a certeza ficasse com os antropologistas, etnólogos, florianistas,
sociólogos e outros tolos de igual jaez.
A horrível mania da certeza de
que fala Renan, já a tive; hoje, porém, não. De modo que posso bem à vontade
contar-lhes uma anedota em que entra o Diabo.
Se os senhores quiserem
acreditem; eu, cá por mim, se não acredito, não nego também.
Narrou-me o amigo:
— Certo dia, uma manhã, estava eu
muito aborrecido a pensar na minha vida. O meu aborrecimento era mortal. Um
tédio imenso invadia-me. Sentia-me vazio. Diante do espetáculo do mundo, eu não
reagia. Sentia-me como um toco de pau, como qualquer coisa de inerte.
Os desgostos da minha vida, os
meus excessos, as minhas decepções, me haviam levado a um estado de desespero,
de aborrecimento, de tédio, para o qual, em vão, procurava remédio. A Morte não
me servia. Se era verdade que a Vida não me agradava, a Morte não me atraía. Eu
queria outra Vida. Você se lembra do Bossuet, quando falou por ocasião de
Mademoiselle de la Vallière tomar o véu?
Respondi:
— Lembro-me.
— Pois sentia aquilo que ele
disse e censurou: queria outra vida.
E então só me daria muito
dinheiro. Queria andar, queria viajar, queria experimentar se as belezas que o
tempo e o sofrimento dos homens acumularam sobre a terra, despertavam em mim a
emoção necessária para a existência, o sabor de viver. Mas dinheiro! — como
arranjar? Pensei meios e modos: Furtos, assassinatos, estelionatos — sonhei-me
Raskólnikoff ou coisa parecida. Jeito, porém, não havia e a energia não me
sobrava. Pensei então no Diabo. Se ele quisesse comprar-me a alma? Havia tanta
história popular que contava pactos com ele que eu, homem céptico e
ultramoderno apelei para o Diabo, e sinceramente! Nisto bateram-me a porta. —
Abri.
— Quem era?
— O Diabo.
— Como o conheceste?
— Espera. Era um cavalheiro como
qualquer, sem barbichas, sem chavelhos, sem nenhum atributo diabólico. Entrou
como um velho conhecimento e tive a impressão de que conhecia muito o visitante.
Sem cerimônia sentou-se e foi perguntando: "Que diabo de spleen é esse?" Retorqui: " A
palavra vai bem mas falta-me o milhão." Disse-lhe isso sem reflexão e ele
sem se espantar, deu umas voltas pela minha sala e olhou um retrato.
Indagou: "E tua noiva?"
Acudi: "Não. É um retrato que encontrei na rua. Simpatizei e..."
"Queres vê-la já?" perguntou-me o homem. "Quero", respondi.
E logo, entre nós dois sentou-se a mulher do retrato. Estivemos conversando e
adquiri certeza de que estava falando com o Diabo. A mulher foi-se e logo o
Diabo inquiriu: "Que querias de mim?"
"Vender-te minha alma",
disse-lhe eu.
E o diálogo continuou assim:
Diabo — Quanto queres por ela?
Eu — Quinhentos contos.
Diabo — Não queres pouco.
Eu — Achas caro?
Diabo — Certamente.
Eu — Aceito mesmo a coisa por
trezentos.
Diabo — Ora! Ora!
Eu — Então, quanto dás?
Diabo — Filho, não te faço preço.
Hoje, recebo tanta alma de graça que não me vale a pena comprá-las.
Eu — Então não dás nada?
Diabo — Homem! Para falar-te com
franqueza, simpatizo muito contigo, por isso vou dar-te alguma coisa.
Eu — Quanto?
Diabo — Queres vinte mil-réis?
E logo perguntei ao meu amigo:
— Aceitaste?
O meu amigo esteve um instante
suspenso, afinal respondeu:
— Eu... Eu aceitei.
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