Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO
1
Eram quatro horas da tarde. Oliveira e Tomás
conversavam à porta da casa do Desmarais, Rua do Ouvidor, ano de 1868, quando
passou do lado oposto uma senhora, vestida de preto. Oliveira disse a Tomás:
— É a viúva Sales; espera.
E atravessando a rua, foi falar à viúva
Sales, cinco a seis minutos apenas. As últimas palavras foram estas:
— Mas não posso contar com a senhora?
— Mana Rita está constipada; se ela ficar
boa, vamos.
— Vou rezar para que fique boa.
— Os hereges não rezam, replicou a viúva
sorrindo e despedindo-se.
Oliveira tornou à porta do Desmarais. Tomás
seguiu com os olhos a viúva, até que ela dobrou a primeira esquina.
— Não é possível, disse ele.
— Que é que não possível?
— Essa viúva... É viúva de um médico, um
doutor João Sales?
— Isso.
— D. Raquel?
— Exatamente.
— Filha de um conselheiro de guerra?
— Xavier de Matos. Conheces?
— Sim, conheço, isto é, conheci. Foi há muitos
anos. Está mudada.
— Um pouco mais gorda.
— Conhecia-a magrinha.
— Mas não está mais velha. Queres vê-la,
queres jantar com ela, lá em casa, sábado?
— Ela vai?
— Prometeu que iria, se a mana ficasse boa.
— Sim, Mariana, mais velha que ela.
— Não, Rita, mais moça. A mais velha morreu
há anos; era casada com um deputado do Norte. A mais moça não casou. Vivem
juntas.
— Vou.
— Seis em ponto.
— Em ponto.
— Bem, agora que a viste, que tens algumas
notícias, que vais jantar com ela e conosco, sábado, às seis horas em ponto,
quero que me digas tudo ou só metade, o que puder ser contado.
— Tudo é nada, respondeu Tomás. Que diabo de ideia
é essa?
— Meu caro, quando eu me despedi dela, tu não
me viste chegar ao pé de ti; ias atrás dela com os olhos, com os ouvidos, com
tudo. O coração batia-te que se ouvia cá fora como o meu relógio de parede bate
as horas, nos primeiros dias da semana, por estar de corda nova. Relojoeiro,
desfaz o teu relógio.
Tomás sorriu, mas não sorriu bem; parecia
acanhado. Oliveira não soube ser discreto. Íntimos desde a Faculdade de Direito
de São Paulo, onde se formaram, foram confidentes um do outro, até o dia em que
a vida os separou; novamente ligados, Oliveira cuidava estar no mesmo ponto em
que a vida os deixara antes. Tomás, pela sua parte, vacilava. Evidentemente,
havia alguma coisa que dizer.
— Tudo é pouco.
— Esse pouco.
— Gostei dela em solteira, mas foi coisa que
passou, como outras. Sabes que nós, por esse tempo, namorávamos a todas.
— Mas nunca me falaste desta.
— Provavelmente, falei; mas eram tantas! Bom
tempo, Oliveira! Era melhor que isto de hoje com os nossos bigodes grisalhos,
tu pai de filhos, eu solteirão desamparado, quarenta e quatro anos no lombo; tu
tens mais três.
— Mais dois.
— Creio que já foram quatro, mas o tempo
diminui tudo, começando por si mesmo.
— Vai para o diabo. Quarenta e seis, feitos
em março.
Trocaram ainda algumas palavras, e
despediram-se. Oliveira meteu-se no carro que estava no largo de São Francisco
de Paulo e foi para Andaraí. Tomás meteu-se na gôndola e guiou para o Catete.
CAPÍTULO
2
Tomás de Castro Rodrigues tinha realmente
alguns fios de prata nos bigodes e nos cabelos; vieram-lhe cedo e tendiam a
multiplicar-se. Bonita figura, bem posta sobre uns pés pequenos, elegante com
certa graça do outono, dava ainda um noivo decente. Não casara por não achar
noiva que o quisesse, dizia ele; mas, realmente, por causa de uma paixão da
mocidade, esta mesma viúva Sales que passou agora na Rua do Ouvidor, então
Raquel, simples Raquel.
Não tomes isto ao pé da letra, para me não
acusares de romantismo. É certo que ele prometeu não casar nunca, depois da
paixão de Raquel; mas, não foi precisamente a paixão que o deixou solteiro.
Esta doeu-lhe por muito tempo, fê-lo empreender uma viagem à Europa, onde se
demorou quatro anos. Os quatro anos, porém, não foram gastos em suspirar. O
tempo e a distância depressa o fizeram sarar; a própria vida é que o confinou
na solidão. Solidão fácil, aliás, composta de prazeres, viagens, distrações amorosas
e outras. Quando se afastou da Europa, tornou para o Rio de Janeiro, onde
assistiu à morte do pai, que lhe deixou todos os seus bens. Tomás era filho
único. Já então Raquel, tendo casado com um negociante de Pelotas, havia
partido para o Sul. Tomás começou a advogar; parece que defendeu algumas
causas, perdeu-as todas, ou quase todas. Não fechou a banca; mas achava meio de
não se meter em muito trabalho; este foi naturalmente fugindo, de maneira que,
em pouco tempo, acabaram os clientes. A banca era pretexto para ter um lugar de
descanso e conversação, e dar emprego a um servente.
Assim se passaram três a quatro anos. A
Europa entrou a fazer cócegas ao advogado sem causas; mas o amigo Oliveira, já
então casado, deu-lhe de conselho que entrasse na política. A ideia de ser
ministro foi talvez o único motivo de aceitação deste conselho por um homem que
não tinha partido nem inclinações políticas. Na Faculdade escrevera e falara
nas liberdades públicas, no futuro dos povos, nas instituições democráticas,
tudo isso, porém, sem convicção profunda nem superficial, um simples uso, uma
espécie de oração necessária. Concluindo o curso, não pensou em libertar nem
oprimir os povos. Agora a perspectiva ministerial fez alguma coisa; podia ser
até que ele desse um bom orador, tendo sido dos melhores de seu tempo em São
Paulo.
Oliveira arranjou-lhe a cadeira, por
intermédio de um parente ministro; aproveitou-se uma vaga, e Tomás entrou na
Câmara. No distrito que o elegeu ficou o seu nome execrado; disseram-lhe todas
as coisas feias, ambicioso vulgar, intruso, lacaio de ministro, gatuno, e
besta. “Não é diploma que ele leva aqui; é uma gazua”, escreveu um jornal.
Tomás quis rejeitar o diploma; não tinha a ambição necessária, ou qualquer
sentimento equivalente, para suportar todo esse desejo de injúrias; mas
Oliveira riu-lhe na cara, disse-lhe que não fosse tolo e ficasse; que os
autores da palavrada não sentiam nada do que diziam, era a irritação própria da
pretensão de outro candidato. Tomás obedeceu e entrou na Câmara.
Não foi ministro, proferiu dois discursos,
aborreceu-se ao fim de algum tempo; cinco anos depois fazia outra viagem à
Europa. Lá esteve, tornou a ir e regressou agora, há quatro meses, sem
carreira, sem ambições, sem família. Conservava a riqueza, isso sim, não era
gastador, vivia das rendas.
Resta dizer da paixão que primeiro o levou a
andar por esse mundo. Já notei que, indiretamente, foi ela que o impediu de
casar. É possível que, se houvesse de fazer vida regular, casasse e fundasse
família. Raquel tinha vinte anos, quando ele a viu pela primeira vez, em um
baile do Cassino Fluminenses. Era linda entre as lindas. Não lhe parecendo que
ela o rejeitasse, buscou relacionar-se com a família. Houve da parte dele
confiança demasiada; desde que começou a ir à casa dela, Raquel retraiu-se. Mas
isto mesmo tornou mais forte a paixão do rapaz, — ou antes, foi isso que
verdadeiramente a gerou.
Até então o sentimento não passava do tom
médio e comum de tantos amores que acabam em nada ou em casamento. Que motivo
tinha Raquel para aceitá-lo a princípio e retrair-se depois? Talvez a lua o
explique, talvez o vento. Não foi o mesmo que teve, mais tarde, para aceitá-lo
novamente; aqui foi a piedade. Em verdade, a paixão do moço era tal que ela
entendeu de bom aviso dar-lhe novas esperanças, e acabar casando. Pode ser que
fosse assim, se ela não adoecesse daí a algumas semanas, indo para Minas,
convalescer. Antes de concluído o prazo, Tomás correu a visitá-la. Esse
encontro, após a ausência e a moléstia, devia desenganá-lo. Raquel
desacostumara-se de o ver, não teve saudades, não lhe escrevera apesar das
cartas dele, e o acolhimento foi apenas polido, senão pior. A piedade gastara
as forças na tentativa de um amor que não queria nascer. Tomás voltou
desesperado.
A verdade parece ser que Raquel era, mais que
tudo, desconfiada e tímida. Pelo mesmo tempo em que Tomás a cortejava, era
pretendida por mais dois homens, e essa competência produziu efeito contrário
ao que se devia supor. Em casa, Raquel era chamada esquisitona. Acresce que um
dos dois pretendentes, depois de desenganado, casou com outra moça, amiga dela,
sem intervalo de dois meses. Essa facilidade de passar de uma a outra mulher
fê-la ainda mais tímida e desconfiada. Tinha medo de entregar-se. De resto, foi
a própria violência do amor de Tomás que o perdeu. Raquel achou a nota
excessiva e teve medo. A separação fez-se com dor para ele, naturalmente sem
saudade para ela. Nenhum pretendente os separou. Foi só depois que apareceu o
negociante de Pelotas, sem paixão, apresentado pelo pai, como moço de muito
futuro, e sério. Sales tinha trinta anos. Raquel aceitou-o sem combate nem
entusiasmo; casou e partiu. Já Tomás estava na Europa.
Sales, negociante de Pelotas e doutor em
medicina, liquidou a casa no fim de poucos anos e veio para o Rio de Janeiro. A
ideia dele era viver uma vida elegante, participar de todos os prazeres da alta
roda da capital. Contava com o papel eminente que caberia à mulher, agora mais
bela que nunca. Assim foi. Em poucas semanas, em três meses, o nome de Raquel
andava em todas as bocas, e a pessoa em todos os bailes e teatros. Toda a gente
a conhecia na rua. Sales comprou uma carruagem e uma parelha de cavalos
ingleses. A primeira modista era dela. Não eram dela as primeiras modas porque
vinham feitas da Europa; mas entre as primeiras divulgadoras de um corte, de
uma fazenda ou de um chapéu, estava a bela Raquel, — ou a bela Sales, como iam
dizendo alguns, até que este nome se generalizou.
Pouco mais de um ano bastou a cansar o
marido. Os hábitos do comércio ou da província, — os dele, ao menos, — não se
podiam casar com a vida agitada que ele mesmo quisera e escolhera. Os bailes
pareciam-lhes tristes, ao cabo de uma ou duas horas. Quando havia jogo, Sales
atirava-se às cartas, enquanto a mulher valsava ou polcava. Gostava mais do
teatro, e particularmente do teatro lírico; mas, se a primeira e segunda
estação o encantaram, a terceira entrou a aborrecê-lo. Em casa, recebia bem e
estava mais a gosto; mas tudo somado, a realidade da vida elegante não correspondia
à expectação. Além do mais, para um homem afeito às lidas do comércio, a vida
ociosa era pesada e vazia. Não sabendo que fazer do tempo, Sales lembrou-se de
exercer a medicina. Curava de graça; não lhe faltavam doentes, e atrás deles a
reputação. Assim passou alguns anos, até que ele próprio adoeceu, e, mais
infeliz que os seus enfermos, sucumbiu.
CAPÍTULO
3
No sábado marcado, Tomás acudiu a Andaraí,
onde já achou a viúva. Oliveira tinha anunciado a vinda do amigo, mas nem
então, nem quando este chegou, houve da parte de Raquel a menor emoção. Ela
falou ao namorado de outros dias, como se nada houvesse passado entre ambos, em
bem ou em mal. Oliveira fê-los sentar, à mesa, ao pé um do outro; mas a
vizinhança não alterou a disposição da viúva.
Tomás achou-a ainda bela, e, a muitos
respeitos, melhor. Trinta e sete ou trinta e oito anos é o que devia ter. Era
conversada, interessante, atenta, falando de tudo e bem, sem excesso, sem
impertinência, calando a tempo, tudo isso com uma boca fresca e uns olhos
capazes de paixão e de mando. Assim pareceram eles a Tomás, que estava comovido
e ia-se sentindo acanhado. Para um homem vivido, o estado era inexplicável, se
não fora a situação especialíssima. Ele supôs, e qualquer pessoa o suporia, que
o longo celibato e a diferença dos tempos o teriam armado contra essa senhora,
e foi contrário. Já não falo dos termos da separação de outrora, que eram um
atrativo mais, não diminuído pela viuvez. A viuvez era antes um pico.
Raquel demorou-se pouco. A irmã, que estava
presente, embora restabelecida, não podia apanhar sereno e a noite esfriava.
Foi a razão dada pela viúva Sales para sair e não cantar, como lhe pedia
Oliveira.
— Uma só daquelas músicas espanholas, que a
senhora canta com tanta graça.
— Deixei a graça em casa; fica para outra
vez.
A mulher de Oliveira ofereceu-lhes pousada
por uma noite. Era impossível que D. Rita saísse; podiam ficar; iria levá-las
no dia seguinte. Raquel não aceitou nada e despediram-se às nove horas. Tomás
não ousou apertar fortemente a mão que ela lhe estendeu, à despedida, posto que
esse fosse o seu desejo; tocou-lhe apenas nos dedos. Entretanto, esperava que
ela lhe oferecesse a casa, e Raquel não lhe ofereceu coisa nenhuma.
Oliveira deu o braço a D. Rita, até o carro,
deixando ao amigo a fineza de ir com a viúva. Tomás aproveitou o favor. Entre a
casa, que ficava no centro de uma chácara, e a rua, havia cerca de trinta
passos; Tomás fê-los compridos como léguas, sem achar uma palavra que dizer.
Sentia o braço dela no seu, francamente pousado, sem cerimônia nem medo, e a
sensação que isto lhe dava ainda mais lhe atava a língua. Enfim, chegaram ao
carro.
— Obrigada, disse-lhe Raquel estendendo a
mão.
Quando o carro partiu:
— Que tal a achaste? perguntou Oliveira.
— Achei-a bem.
— Estavas pálido.
— Eu?
— Deixa ver a tua mão; está fria. Seriamente,
tu sentiste alguma coisa.
— Coisa nenhuma; tive recordações, mas, aos
quarenta e quatro anos, as recordações são como brinquedos velhos e quebrados.
Achei-a elegante. Queres que te diga? Mais distinta que em solteira.
— Mais senhora, mais tranquila. O que tu
queres dizer é que, em solteira, dava-te as mãos para que as beijasses.
— Nunca lhe beijei as mãos.
— Nunca! Nem os olhos?
— Menos ainda os olhos. Era muito arisca.
Tinham subido a escada de pedra, e parado à
porta da sala de visitas. Oliveira pegou na mão do amigo, e, depois de alguns
segundos:
— Se resolveres casar com ela, fala-me,
disse.
— Casar?
— Fala-me, repetiu Oliveira.
— Tu estás tonto...
— Não é conselho que te estou dando; digo-te
só que, se resolveres, estou pronto a servir de terceiro. Faz-se isto aos
amigos velhos. Tu estás velho.
— Um pedido; não digas nada à tua mulher.
— De quê?
— Do que houve entre mim e Raquel.
— Já sabe. Contei-lhe tudo hoje de manhã; mas
descansa, é discreta. Anda tomar uma xícara de chá; tens as mãos frias...
Tomás foi acabar a noite em um teatro. Não
perdeu o sono, e acordou à hora do costume. Entretanto, a segunda ou terceira ideia
que lhe acudiu, depois de acordado, foi a formosa viúva. Gostou de pensar nela;
reconhecia que ela fora apenas polida, nem sequer faceira, nada que revelasse o
desejo de lhe parecer bem. Durante uma semana pensou muitas vezes em Raquel.
Chegou a esperá-la na Rua do Ouvidor. Sabendo onde morava, passou por lá duas
vezes, sem a ver. Quinze dias depois do jantar, indo a Niterói, achou-a na
barca. Ia só, com um véu pelo rosto, e parece que o vira, porque voltou a cara
para o lado do mar. Tomás hesitou um instante; afinal foi cumprimentá-la.
Raquel falou-lhe com afabilidade; ele sentou-se no mesmo banco.
— Há de crer que não vou à Praia Grande há
dez anos? disse ele.
— Eu há dois meses. Vou visitar uma tia que
está doente.
— Uma tia? Não me lembra, aventurou Tomás.
— Uma tia do finado.
O finado era o marido. Raquel referiu-lhe a
moléstia, a idade, os costumes da pessoa, como se fossem coisas que o
interessassem. Depois falou do mar. Depois falou do céu. Tudo como quem mata a
alfinetadas um tempo que não quer morrer. Tomás pouco dizia; todo ele era ouvidos
para escutá-la, olhos para vê-la, com os seus ombros fortes, as mãos finamente
enluvadas, e os olhos, que pareciam de esfinge, agora que o céu os cobria.
Pareciam ao nosso herói; ele é que o dizia consigo, romanticamente, não eu, que
apenas traduzo aqui o próprio sentir do solteirão. Esfinge era a imagem velha;
mas tinha para ele a mocidade de sua mocidade.
CAPÍTULO
4
Repetiram-se os encontros. Poucas semanas
depois, Tomás fazia à viúva a sua primeira visita. Já então se podia dizer
completamente enamorado, posto não ousasse confessá-lo, antes buscasse
encobri-lo. Nada lhe dava certeza de poder ser aceito; mas também é verdade que
não achava aparência de recusa. A viúva era atraente, cortês, interessante,
ouvia-o com muito prazer, chegava a falar de outros tempos sem hesitação.
O quarto de século de distância eliminou-se
como um castelo em ruínas de um teatro dá lugar a um campo alastrado de
verdura, ao aceno do contrarregra. Tudo se renovava inteiramente. Casamento de
um, ausência, dispersão de sentimentos, cansaço, fastio, desapareceram; e não
foi só a moça que substituiu a viúva, mas o próprio sonho antigo que
integralmente emergiu dos tempos. Tomás achou em si a força necessária para
restaurar as suas imaginações perdidas. O que ele outrora pedia ao casamento
com a solteira, achou-o nas mãos da viúva, como se o ofício delas não fosse
mais que esperar por ele, guardando-se intactas do mundo e seus favores.
Seis meses não é pouco tempo entre um
solteirão e uma viúva; mas tal foi o prazo decorrido sem que ele dissesse nada.
Oliveira, a princípio, quis precipitar as coisas; a mulher disse-lhe que não;
seria tomar a responsabilidade do que podia acontecer.
— Não são duas crianças, observou ela.
— Por isso mesmo, confirmou Oliveira rindo.
Um dia, enfim, Tomás resolveu pedir a viúva.
Escreveu-lhe uma carta, que rasgou, por
achá-la extensa; escreveu outra, mais extensa, e mandou-lha.
Raquel, logo que deu com as primeiras
palavras, interrompeu a leitura e deixou-se estar com os olhos no ar, perdidos.
Sabia o conteúdo do papel; talvez houvesse ajudado a escrevê-lo. É o que
perguntava agora a si mesma, um pouco arrependida, um pouco satisfeita. Não vos
admireis deste sentimento duplo, que parecerá contraditório, e na verdade o é;
mas a contradição também é deste mundo. Raquel, já viúva, rejeitara duas
propostas de casamento. Era a terceira, e podia rejeitá-la, como as outras. Que
é que a impedia de o fazer? Não chegava a explicar-se.
A ideia de que ele ficara solteiro, para não
casar nunca, e rompia a promessa para acabar casando com ela, foi a causa
principal da animação que lhe dera agora. A animação tinha de produzir os seus
efeitos. Diante destes é que a viúva parecia espantada. Os olhos perderam-se
cada vez mais, até que buscaram a carta e leram o que dizia.
O estilo era inflamado. Uma só vez a carta
aludia ao passado: “Se achar que este meu modo de sentir é juvenil, saiba que
dia houve em que o meu coração parou, e que a minha idade é a dele”. Raquel
releu a carta, naturalmente não lhe respondeu logo; fá-lo-ia no dia seguinte.
Tinha de refletir primeiro.
— Sim ou não? perguntou a si mesma.
E depois de alguns minutos:
— Amanhã; tenho tempo.
Parecerá esquisito que ainda agora hesitasse;
mas a esquisitice também é deste mundo. Gostava do antigo noivo; não encarava
até então a ideia de casar. Podia propor um adiamento. Verdade é que o
adiamento acabaria, e sempre chegaria a necessidade de dar resposta. No dia
seguinte, sentou-se, pegou na pena e começou dez vezes um bilhete em que lhe
dizia que ia pensar; não atinava com o modo de concluir, e, por fim, achou que
o alvitre era mau. O melhor era recusar logo. Com que palavras escreveria a
negativa? Era melhor aceitar; mas, como?
Tudo isso parecer-vos-á insuportável, leitora
atenta, e a mim também, que o estou contando, não menos que à própria dama em
cujo cérebro todos esses pensamentos se esbarravam uns nos outros, sem vitória
de nenhum. Passaram-se três dias. Ao quarto, Raquel consultou a irmã, que a
animou a aceitar o marido.
— Estás certa que nenhum interesse o atrai?
— Seguramente.
— Pois aceita.
Raquel respondeu enfim, com duas linhas
apenas, que pareceram a Tomás muito mais compridas que a longa carta que lhe
escrevera: “Dou-lhe a minha mão, e espero que sejamos felizes”. Tomás foi
agradecer-lhe a resposta. Estava trêmulo, como se contasse vinte anos, e fosse
aquele o primeiro amor. A própria Raquel, uma vez decidida, tinha a comoção da
adolescência. Pouco mediou entre a aceitação e a realização. Dois meses depois
estavam casados.
CAPÍTULO
5
Após um quarto de século, voltara Tomás ao
ponto de onde partira. Tendo navegado mares longos e enfadonhos, ei-lo que
aporta à mesma terra vizinha, cujo acesso fora o sonho dos primeiros anos.
— Raquel, vinte e cinco anos de separação e
desesperança, disse ele na carruagem que o trazia da igreja.
A lua-de-mel foi passada em Petrópolis, longe
do universo, porque eles acharam uma casa separada do centro, e não saíram dela
uns três dias. O plano do marido era não sair nunca; uma tarde, porém,
transpondo o jardim, chegaram à rua, depois à outra rua. No dia seguinte, foram
à Rua do Imperador; antes do fim da semana seguiram em carro ao alto da serra,
a ver chegar o trem.
Não se pense que lhes foi indiferente a vista
de coisas estranhas. Ao contrário, acharam certo prazer em mostrar aos outros a
própria felicidade, Raquel ainda mais que o marido. Duas semanas depois de
subidos a Petrópolis, recebeu Tomás uma carta de Oliveira. Era longa, banal,
mas amiga; acabava perguntando quando esperavam descer do céu.
— Podemos ir amanhã, propôs a mulher.
— Já!
— Se você quiser; eu estou bem.
Tomás refletiu um instante.
— Sim, podemos ir amanhã ou depois.
A eternidade ficou reduzida de alguns séculos
de séculos; mas, como todas as eternidades deste mundo são assim, a questão é
saber em que proporção se reduzem. Ora, eles tiveram duas semanas de
lua-de-mel; havia-as muito menores.
Três, quatro, cinco meses passaram, sem
acontecimento apreciável. Mas há uma falta de acontecimentos, que o estado
moral supre, e um homem e uma mulher podem viver mais que Alexandre ou César.
Tal não era o estado do casal recente. Ao cabo de três meses, Tomás sentia em
Raquel uma placidez de espírito, que não era o alvoroço que esperava, nem ainda
o dos primeiros dias. Esse mesmo dos dias iniciais não correspondeu à
esperança, mas confundia-se com o dele, e ambos lhe pareceram no mesmo grau
infinito. Pouco a pouco, o estado normal vingou; ao fim de seis semanas, a
diferença apareceu, até que, dobrado o prazo, Raquel ficou sendo uma senhora
tranquila, sem assomos de nenhuma espécie, sem inquietações nem saudades. Tudo
o que pode definir bem a ausência de paixão parecia reunir-se nela. Quando a
convicção desse estado entrou no ânimo do marido, houve uma tal ou qual sombra
no céu conjugal. O pior é que ela não deu pelo fenômeno. Tomás encerrava-se
longas horas no gabinete, a pretexto de trabalho, mas realmente para ler
romances parisienses, comprados às dúzias. Raquel não iria arrancá-lo ao
suposto trabalho, nem ralhava pelo excesso de esforço que devia atribuir-lhe.
Um dia, quando muito, perguntou-lhe o que estava fazendo.
— Estou compondo um livro, disse ele, um
estudo, uma obra política.
— Você quer ser deputado?
— Não.
E depois de um instante, sorrindo:
— Você gostaria de ouvir os meus discursos na
câmara?
— Naturalmente.
Há mil modos de dizer naturalmente; Raquel
escolheu um que não significava a coparticipação da glória, e não o fez por
afligi-lo, mas por não saber de outro. Tomás, que de começo, lia os romances
com pouca atenção, acabou lendo-os por gosto e voltando assim a uma das suas
diversões antigas. As longas reclusões eram menos aborrecidas que antes. Outras
vezes demorava-se fora, ia a reuniões, ao teatro, a jantares, sem que Raquel
achasse que dizer uma palavra amarga. Também não o recebia triste nem alegre.
Uma ou outra vez bocejava este gracejo:
— Sim, senhor, bela vida para um homem
casado.
— Eu te explico...
Tomás explicava-se, mas era difícil saber se
ela escutava a explicação. Não tinha nos olhos sequer uma sombra de desconfiança.
Nem ciúmes, nem despeito, nem nada.
Ao fim de seis meses Raquel foi a um baile.
Havia anos que não pisava em nenhum, e já depois de casada, recusara ir a dois.
Aceitara aquele. Não teve a folgança de outro tempo, mas achou alguma coisa que
podia trazê-la. Daí a aceitação do segundo em que dançou, e de mais dois. O
marido, fez-se sócio do Cassino Fluminense, a pedido dela.
— Com uma condição, disse Raquel; é que uma
quadrilha será nossa.
— Justo.
Assim fizeram nos dois primeiros bailes; no
terceiro, já não dançaram juntos.
— Raquel casou comigo, sem entusiasmo,
pensava ele; foi como quem aceita um vestido novo. Não digo novo, mas bonito,
talhado à moda...
Um dia, chegou a insinuar-lhe isto mesmo, no
terraço da casa, antes do jantar. Ambos liam; ele, erguendo os olhos da página,
viu que ela estava com o livro no regaço e as pálpebras caídas.
— É do livro ou do companheiro? perguntou
ele.
Raquel sorriu constrangida, mas não disse
nada.
Como ele insistisse:
— É do companheiro, respondeu.
— Talvez.
— Que ideia!
— Sim, a resposta é de gracejo, mas pode ser
exata, sem que você dê por isso. Não me há de fazer crer que lhe dou a
felicidade esperada, se é que esperou alguma. Não; você casou para fugir à
importunação. A liberdade era melhor; podia ser até, — quem sabe? — podia ser
que a sorte... Não falemos nisto!
Raquel olhava espantada. Tomás atirara o
livro para um sofá e erguera-se, metendo as mãos nas algibeiras das calças.
Mordia o beiço, e olhava para fora. Raquel fechou tranquilamente o livro.
— Tomás, que ideias são essas?
— Que ideias?
— Essas.
— Essas quais?
— Essas! Não compreendo nada do que você me
acaba de dizer. Principalmente, não compreendo que na nossa idade... Não somos
crianças, Tomás, esses arrufos são bons para os vinte anos. Pois você crê que
eu viva aborrecida?...
— Não vive de outra maneira, interrompeu o
marido. Eu sinto, eu vejo, eu percebo tudo. Peço-lhe que não me obrigue a ir
adiante. Olhe se os bailes a aborrecem, apesar de não ser criança? Tudo que é
ir divertir-se é excelente; a minha companhia é que é um aborrecimento mortal.
Era a primeira vez que ele falava assim, em
tal maneira, e com tal despeito, que Raquel sentiu-se lisonjeada. Vendo que era
sincero, posto lhe parecesse esquisito, ela disse quatro ou cinco palavras
amigas e alegres; ergueu-se, arrancou-lhe as mãos do bolso e fechou-as nas
suas.
— Criança! disse. Pois você então pensa
deveras que me aborrece? Tudo porque fechei os olhos, lendo um livro
aborrecido. Ora, Tomás! Vamos, ria, ria um pouco.
— Deixa...
— Há de rir. Vamos, ria!
Tomás acabou rindo. O melhor era terminar ali
mesmo o debate, e, se não estivessem expostos, terminá-lo com um beijo. Mas o
riso do marido foi tão forçado que a mulher entendeu desculpar-se do que lhe
parecia fastio ou indiferença. Era o modo dela. Nunca fora expansiva; a própria
mãe a achava sempre assim; ia a falar do primeiro marido, mas recuou a tempo.
Um tanto vexado da cena, Tomás depressa se
reconciliou; ela por sua parte, buscou trocar de maneiras; troca difícil. Tomás
não achara no casamento a realização esperada de um sonho de longos anos. Toda
essa mulher, deixada em botão, achada em flor, parecia uma flor sem cheiro.
Raquel sacrificou os seus bailes; passou a fazer reuniões em casa, dava
jantares, cercava-se de amigas. Conseguia prendê-lo; lia até o fim, com os
olhos abertos, todos os livros que ele lhe dava. Entrou a censurá-lo, quando
ele se demorava fora; e, em vez de ir dormir, como a princípio, deixava-se
estar até uma e duas horas, quando ele voltava do teatro, nas noites em que ia
só ou com algum amigo. A solicitude teve o mesmo efeito da indiferença; tudo
acabou no mesmo tédio.
— Talvez o mal esteja em mim, pensou ele um
dia.
E inclinando o espírito aos tempos de
solteiro, sentiu grande saudade. Para reaver um pouco da sensação antiga,
convidou a mulher a uma viagem à Europa; foram, gastaram dois anos, tornaram
mais conservados; mas a viagem não apertou os laços da afeição.
Realmente, o consórcio era para ele mesmo um
ofício novo, aprendido fora de tempo, quando a pessoa só ama e conhece outro
ofício.
Já se não queixava; deixava-se ir com os
anos. Vieram os cinquenta.
A cunhada morreu. A casa fez-se mais deserta.
Tomás, fora do voltarete, só achava prazer na Rua do Ouvidor. Era ainda e
sempre o mesmo homem elegante. Deleitava-se em ver passar as senhoras,
mirá-las, acompanhá-las com os olhos e as ideias. Chamava a isto liberdade —
uma liberdade que perdeu, que entregou por seu gosto nas mãos do casamento.
Mudando de casa por esse tempo, mandou preparar
ao rés-do-chão um gabinete para si, exclusivo, reprodução do último aposento de
solteiro. Nada havia ali que cheirasse ao casamento, nem a fotografia da
mulher, nada. Era a casa do celibato, em que ele se metia duas e três horas
diariamente, para viver outra vida não totalmente outra, mas algo que a
lembrasse.
Raquel não se opôs à alteração nem a sentiu.
Viviam em boa paz, uma santa paz bocejada e ininterrupta. Os anos vieram vindo.
Um dia, Raquel caiu doente, uma febre perniciosa que a levou em poucos dias.
Tomás foi dedicado, não poupou esforços de toda a espécie para salvá-la; ela
morreu-lhe nos braços, ele quis acompanhá-la ao enterro. Oliveira foi ter com o
amigo.
— Tomás, disse-lhe, tu não podes viver só
aqui; anda cá para casa. Arranjo-te um cômodo grande e livre; ficas a teu
gosto.
— Obrigado, Oliveira; deixa-me; algum dia,
pode ser.
Meteu-se no aposento de solteiro, agora de
viúvo, sempre de solitário. Nada alterou a casa, em cima, onde almoçava e
jantava. Fez no ano seguinte outra viagem à Europa, muito mais alegre, como um
pássaro livre. Gostava da lufa-lufa de estradas de ferro, de hotéis, de
teatros, de revistas militares, bulevares; foi à França, foi à Inglaterra, à
Alemanha, e voltou o mesmo velho petimetre. Vinte e quatro horas depois de
chegado, estava no cemitério, visitando a sepultura da mulher. Deu-lhe um
mausoléu rico e belo, obra de um escultor italiano, e continuou a visitá-la
naquele palácio último. Os empregados do cemitério já o conheciam.
— É o viúvo da D. Raquel, diziam eles pelo
epitáfio. Se todos fossem como este!
Não podiam crer, nem eu digo isto, que ele
amasse mais a mulher morta que viva; é falso. O que se pode admitir é que ele
sentia antes a perda da mulher que do casamento.
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