Um pintor de gatos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era uma vez, em mui remotos tempos, uma família de boa gente lavradora, vivendo
em certa aldeia do Japão. Marido, mulher e um rancho de filhos; gente pobre, é
claro; e ajunte-se que a mui árdua fadiga se dava o camponês, para que não
faltasse em cada dia, a cada uma das vorazes boquinhas dos garotos, a tigela de
arroz do almoço e do jantar. O mais velho dos rapazes, já aos quatorze anos,
robusto quase como um homem, começava a ajudar o pai, nas várzeas e nos campos,
o pobre pai, a quem as forças minguavam; e os outros, cada um conforme a sua
idade, iam fazendo também o que podiam; até a irmã pequena, — uma migalha de
gente, coitadita! — lá ia aliviando a atarefada mãe na lida do casebre.
Só o mais novo dos rapazes em nada se empregava que
prestasse; era um inútil; não que ele fosse falto de juízo; pelo contrário,
excedia em esperteza qualquer dos irmãos ou das irmãs; mas era enfezadito,
débil de músculo; e bem cedo os pais se convenceram de que aqueles braços
tenros não haviam nascido para a enxada. — “Faça-se dele um bonzo”, —
combinaram; e foi nesta intenção que um belo dia decidiram levá-lo ao templo do
lugar, e à presença do velho sacerdote, que era como quem diz — o prior daquela
freguesia. — O pai falou e expôs a questão, enquanto que a mãe aprovava com a
cabeça; o reverendo, que em breve trecho descobrira rara sagacidade na criança,
consentiu em tomá-la por pupilo, pensando talvez intimamente que ali o acaso
lhe trazia um digno sucessor, quando a hora lhe chegasse de despedir-se deste
mundo.
E ficou tudo resolvido.
***
O noviço mostrou-se, desde os primeiros dias,
submisso, inteligente e piedoso; e também — valha a verdade — não lhe iam mal a
rude túnica amarela e a cabecita rapada à navalha, de preceito; mas como não há
formosa sem senão, segundo um provérbio português (e a filosofia dos provérbios
se aplica à humanidade inteira), tinha um defeito o rapazito: pintar gatos.
Expliquemos o caso, que é curioso: nas horas de sueto ou nas horas de estudo,
no templo, na cela, no jardim, em toda a parte onde estivesse, punha-se a
pintar gatos; e tão bem os pintava, — faça-se-lhe justiça neste ponto, — que
nenhum pintor até então pintou gatos melhor do que o fradinho. As páginas dos
livros sagrados do convento, as paredes, os biombos, os pilares, as árvores, os
rochedos, — forte mania de criança! — tudo servia, tudo era tela para exercer a
sua pecha. Por onde ele passava, por onde se quedasse dois minutos, era logo a
sucessão interminável de desenhos, eram as curvas caprichosas dos travessos
felinos, de todos os tamanhos, em todas as posturas, creio que até
enjaneirados, os olhos redondos, esbraseando as duas orelhas espetadas, o
cotozito alçado e petulante (os gatos japoneses não têm rabo), a garra atrevida
posta em guarda... Está-se a adivinhar com que azedume o reverendo acolhia tais
desmandos; vezes sem conto repreendeu o artista
(como por ironia lhe chamava), tentando dissuadi-lo daquela triste balda, que
nem lhe permitia estudar com atenção os velhos alfarrábios do budismo, de tão
necessária ciência ao seu santo mister. Intento inútil: não por maldade, por
instinto, quanto mais lhe proibiam a proeza, mais ia pintando gatos o teimoso.
Até que finalmente, em certa ocasião, o reverendo perdeu de todo a paciência e
gritou ao moço incorrigível: — “Vai-te embora! Foge da minha vista!... Bom
padre, nunca serás seguramente; serás talvez um bom pintor.” — A ordem era
terminante. Foi fácil ao mocinho entrouxar os seus poucos haveres, pôs a
trouxinha às costas, e fez uma mesura ao padre mestre.
***
Ei-lo na rua, escorraçado, em bem angustiosas
condições. Que fazer? Tremeu de voltar ao lar doméstico, onde o pai, mui
certamente, o puniria da sua teimosia. Lembrou-se então que a quatro léguas de
distância havia uma outra aldeia, com um templo cheio de bonzos, e para lá se
encaminhou, disposto a pedir abrigo e proteção aos padres. Era notório que o
tal templo desde alguns meses se achava abandonado, por nele ter entrado um demônio,
um espírito malfazejo, como tantos que abundavam então pelo Japão; muitos
guerreiros animosos se tinham decidido a ir lá dentro, mas nem um só voltou;
porém estas notícias, que iam já apavorando aldeias e cidades em redor, nunca
haviam chegado aos ouvidos do pequeno.
Era já noite escura quando alcançou a aldeia; o povo
dormia nas choupanas; ao fundo da rua principal, e sobre um dorso de colina, de
entre a rama das matas erguia-se o templo majestoso, e uma luz interior
bruxuleava, luz de esperança para a mísera criança. Luz de esperança parecia:
mas o povo bem a tinha por feiticeira do diabo, que assim manhosamente ia
atraindo algum caminheiro solitário em busca de pousada. Bate ao portal uma
primeira vez, bate segunda vez, bate terceira, sem que ninguém acuda ao
chamamento. Por fim percebe que basta empurrá-lo para abri-lo; e então, por um
leve impulso dos seus braços, achou livre o ingresso, e assim entrou, largando
dos pés nus as suas sandálias poeirentas.
Nos aposentos interiores ardia uma lâmpada com efeito;
mas nem um bonzo só, de tantos que ali deviam estar, aparecia. Julgou que
tinham ido dar o seu passeio e que em breve voltariam, e resolveu esperá-los. O
tempo ia passando, e os seus olhos curiosos de garoto entretinham-se em
devassar o aspeto do sítio onde se achava. Notou com espanto que abundava o
lixo, e pelo teto as aranhas iam tecendo sem cerimônia as suas longas teias;
era estranho que, sendo em regra os templos, mimos de limpeza e de cuidados,
aquele se encontrasse em tal desleixo, como se fosse coisa abandonada. É que,
provavelmente, aos santos bonzos faltava o auxílio dum acólito, a quem, como de
praxe, cabe o dever de todas as manhãs lavar, varrer e sacudir o pó, arte
exercida no Japão com especial desvelo; e concluiu logicamente que bom
acolhimento lhe fariam, no próprio interesse da comunidade.
Agora o rapazito, prosseguindo no exame, fixa o olhar
num móvel que o cativa, que é um grande biombo que tem em sua frente, com as
duas faces brancas; passara-lhe na mente o irresistível desejo de encher
aquelas faces de gatos, de cem gatos, de mil gatos, lindos, felpudos,
assanhados, com as bigodeiras hirtas e os olhos chamejantes; e uma súbita
alegria iluminava-lhe o rosto sonhador... Pensado e resolvido. Cerca encontrou
a clássica escrivaninha japonesa, — a caixa com os pincéis, com a gota de água
num depósito metálico, com o pedaço de tinta negra e com a lousa onde esta se
prepara. — Mãos à obra. O pincel voava em curvas humorísticas; a mãozinha
inspirada corria, pulava de alto a baixo, ponto aqui, rabisco ali, traduzindo a
impressão própria com habilidades prodigiosas. Assim foram aparecendo, sobre
aquela tela improvisada, ranchos e ranchos de gatos adoráveis; e tantos gatos
desenhou, e tantas horas correram, sem que os bonzos voltassem do passeio, que
o pobre garotito sentiu-se de repente cheio de sono e de fadiga; num cubículo
contíguo se recolheu e se fechou; estendeu-se sobre a esteira, e em breve
adormeceu.
***
Lá pela noite velha, um barulho inaudito, como se uma
terrível luta se travasse entre misteriosos combatentes, despertou a criança. Os gritos, os gemidos, o ruído dos
corpos que caíam, vinham de perto, do aposento vizinho onde estivera; tremiam
as paredes, o chão, a casa toda; a peleja durou até à madrugada. Como ele
sofria de pavor! Caído sobre a esteira, imóvel, parecia coisa morta, sustendo o
próprio fôlego, para que a sua presença não fosse pressentida...
Já com a manhã clara e Sol bem alto, ergueu-se então,
e animou-se a espreitar um pouco para fora, por uma fenda da parede. Foi
medonho o que viu. No chão grandes poças de sangue se alastravam; e mesmo ao
meio da casa, jazia morta, esfacelada, uma enorme ratazana, — maior do que uma
vaca!... Mas quem matara o monstro, se ninguém parecia ter entrado? Reparou por
acaso no biombo, onde horas antes pintara tantos gatos; lá os viu, mas com os
focinhos lambuzados de sangue e as patinhas igualmente; eram eles que tinham
dado cabo do demônio...
***
O mocinho tornou-se, com o correr do tempo, um grande
artista. Ainda hoje se admiram muitos gatos pintados pelo seu pincel inimitável.
***
O cronista de quem extraí esta legenda, nada conclui,
como moralidade, da história que narrou. Concluirei eu o que bem me parecer, se
mo permitem. Em primeiro lugar, pouco propenso a crer em coisas do diabo,
embora mesmo no Japão, concluo que, se a rata do convento era tão grande, é que
a despensa se achava provida com um enorme arsenal de gulodices; o que, a
despeito de tanto que se diz dos frades de outras terras, dos frades
portugueses por exemplo, faz honra à sobriedade de hábitos dos maganos, pois
não consta que jamais os presuntos e a marmelada de reserva nutrissem uma rata
lambareira até atingir igual tamanho. Concluo ao mesmo tempo, humilhado,
confundido, que os pintores do meu país estão bem longe do traço criador dos
pintores do Dai-Nippon. Por último (e talvez esta final conclusão seja a mais
útil), vejo que às vezes as nossas qualidades, de que os outros se riem e
escarnecem, são as que mais nos valem neste mundo.
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