Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando andávamos juntos no
colégio, Ezequiel era um franzino menino de quatorze ou quinze anos, triste,
retraído, a quem os folguedos colegiais não atraiam. Não era visto nunca
jogando "barra, carniça, quadrado, peteca", ou qualquer outro jogo
dentre aqueles velhos brinquedos de internato que hoje não se usam mais. O seu
grande prazer era a leitura e, dos livros, os que mais gostava, eram os de
Júlio Verne. Quando todos nós líamos José de Alencar, Macedo, Aluísio e,
sobretudo, o infame Alfredo Gallis, ele lia a Ilha Misteriosa, o Heitor
Servadac, as Cinco semanas em um
balão e, com mais afinco, as Vinte
mil léguas submarinas.
Dir-se-ia que a sua alma ansiava
por estar só com ela mesma, mergulhada, como o Capitão Nemo do romance
vernesco, no seio do mais misterioso dos elementos da nossa misteriosa Terra.
Nenhum colega o entendia, mas
todos o estimavam, porque era bom, tímido e generoso. E porque ninguém o
entendesse nem as suas leituras, ele vivia consigo mesmo; em quando não
estudava as lições de que dava boas contas, lia seu autor predileto.
Quem poderia pôr na cabeça
daquelas crianças fúteis pela idade e cheias de anseios de carne para a
puberdade exigente, o sonho que o célebre autor francês instila nos cérebros
dos meninos que se apaixonam por ele, e o bálsamo que os seus livros dão aos
delicados que prematuramente adivinham a injustiça e a brutalidade da vida?
O que faz o encanto da meninice
não é que essa idade seja melhor ou pior que as outras. O que a faz encantadora
e boa é que, durante esse período da existência, nossa capacidade de sonho é
maior e mais força temos em identificar os nossos sonhos com a nossa vida.
Penso, hoje, que o meu colega Ezequiel tinha sempre no bolso um canivete, no
pressuposto de, se viesse a cair em uma ilha deserta, possuir à mão aquele
instrumento indispensável para o imediato arranjo de sua vida; e aquele meu
outro colega Sanches andava sempre com uma nota de dez tostões, para, no caso
de arranjar a "sua" namorada, ter logo em seu alcance o dinheiro com
que lhe comprasse um ramilhete.
Era, porém, falar ao Ezequiel, em
Heitor Servadac, e logo ele se punha
entusiasmado e contava toda a novela do mestre de Nantes. Quando acabava,
tentava então outra; mas os colegas fugiam um a um, deixavam-no só com o seu
Júlio Verne, para irem fumar um cigarro às escondidas.
Então, ele procurava o mais
afastado dos bancos do recreio, e deixava-se ficar lá, só, imaginando, talvez,
futuras viagens que haviam de fazer, para as aventuras de Roberto Grant, de
Hatteras, de Passepartout, de Keraban, de Miguel Strogoff, de César Cascavel,
de Phileas Fogg e mesmo daquele curioso doutor Lindenbrock, que entra pela
cratera extinta de Sueffels, na desolada Islândia, e vem à superfície da terra,
num ascensor de lavas, que o Estrômboli vomita nas terras risonhas que o
Mediterrâneo afaga...
Saímos do internato quase ao
mesmo tempo e, durante algum, ainda nos vimos; mas, bem depressa, perdemo-nos
de vista. Passaram-se anos e eu já havia de todo esquecido, quando, no ano
passado, vim a encontrá-lo em circunstâncias bem singulares.
Foi em um domingo. Tomei um bonde
da Jardim, aí, na avenida, para visitar um amigo e, com ele, jantar em família.
Ia ler-me um poema; ele era engenheiro hidráulico.
Como todo o sujeito que é rico ou
se supõe ou quer passar como tal, o meu amigo morava para as bandas de
Botafogo.
Ia satisfeito, pois de há muito
não me perdia por aquelas bandas da cidade e me aborrecia com a monotonia dos
meus dias, vendo as mesmas paisagens e olhando sempre as mesmas fisionomias.
Fugiria, assim, por algumas horas, à fadiga visual de contemplar as montanhas
desnudadas que marginam à Central, da estação inicial até Cascadum. Morava eu
nos subúrbios. Fui visitar, portanto, o meu amigo, naquele Botafogo catita,
Meca das ambições dos nortistas, dos sulistas e dos... cariocas.
Sentei-me nos primeiros bancos; e
já havia passado o Lírico e entrávamos na rua Treze de Maio, quando, no banco
de trás do meu, se levantou uma altercação com o condutor, uma dessas vulgares
altercações comuns nos nossos bondes.
— Ora, veja lá com quem fala!
dizia um.
— Faça o favor de pagar sua
passagem, retorquia o recebedor.
— Tome cuidado, acudiu o outro.
Olhe que não trata com nenhum cafajeste! Veja lá!
— Pague a passagem, senão o carro
não segue.
E como eu me virasse por esse
tempo a ver melhor tão patusco caso, dei com a fisionomia do disputador que me
pareceu vagamente minha conhecida. Não tive de fazer esforços de memória. Como
uma ducha, ele me interpelou desta forma:
— Vejas tu só, Mascarenhas, como
são as coisas! Eu, um artista, uma celebridade, cujos serviços a este país são
inestimáveis, vejo-me agora maltratado por esse brutamontes que exige de mim,
desaforadamente, a paga de uma quantia ínfima, como se eu fosse da laia dos que
pagam.
Aquela voz, de súbito, pois ainda
não sabia bem quem me falava, reconheci o homem: era o Ezequiel Beiriz.
Paguei-lhe a passagem, pois, não sendo celebridade, nem artista, podia
perfeitamente e sem desdouro pagar quantias ínfimas; o veículo seguiu
pacatamente o seu caminho, levando o meu espanto e a minha admiração pela
transformação que se havia dado no temperamento do meu antigo colega de colégio.
Pois era aquele parlapatão, o tímido Ezequiel?
Pois aquele presunçoso, que não
era da laia dos que pagam, era o cismático Ezequiel do colégio, sempre a sonhar
viagens maravilhosas, a Júlio Verne? Que teria havido nele? Ele me pareceu
inteiramente são, no momento e para sempre.
Travamos conversa e mesmo a
procurei, para decifrar tão interessante enigma.
— Que diabo, Beiriz! Onde tens
andado? Creio que há bem quinze anos que não nos vemos — não é? Onde andaste?
— Ora! Por esse mundo de Cristo.
A última vez que nos encontramos... Quando foi mesmo?
— Quando eu ia embarcar para o
interior do estado do Rio, visitar a família.
— É verdade! Tens boa memória...
Despedimo-nos no largo do Paço... Ias para Muruí — não é isso?
— Exatamente.
— Eu, logo em seguida, parti para
o Recife a estudar direito.
— Estiveste lá este tempo todo?
— Não. Voltei para aqui, logo de
dois anos passados lá.
— Porquê?
— Aborrecia-me aquela
"chorumela" de direito... Aquela vida solta de estudantes de
província não me agradava... São vaidosos... A sociedade lhes dá muita
importância, daí...
— Mas que tinhas com isso? Fazias
vida à parte...
— Qual! Não era bem isso o que eu
sentia... Estava era aborrecidíssimo com a natureza daqueles estudos... Queria
outros...
— E tentaste?
— Tentar! Eu não tento; eu os
faço... Voltei para o Rio a fim de estudar pintura.
— Como não tentas,
naturalmente...
— Não acabei. Enfadou-me logo
tudo aquilo da Escola de Belas— Artes.
— Por quê?
— Ora! Deram-me uns bonecos de
gesso para copiar... Já viste que tolice? Copiar bonecos e pedaços de
bonecos... Eu queria a coisa viva, a vida palpitante...
— É preciso ir às fontes, começar
pelo começo, disse eu sentenciosamente.
— Qual! Isto é para toda gente...
Eu vou de um salto; se erro, sou como o tigre diante do caçador — estou morto!
— De forma que...
— Foi o que me aconteceu com a
pintura. Por causa dos tais bonecos, errei o salto e a abandonei. Fiz-me
repórter, jornalista, dramaturgo, o diabo! Mas, em nenhuma dessas profissões
dei-me bem... Todas elas me desgostavam... Nunca estava contente com o que
fazia... Pensei, de mim para mim, que nenhuma delas era a da minha vocação e a
do meu amor; e, como sou honesto intelectualmente, não tive nenhuma dor de
coração em largá-las e ficar à toa, vivendo ao deus-dará.
— Isto durante muito tempo?
— Algum. Conto-te o resto. Já me
dispunha a experimentar o funcionalismo, quando, certo dia, descendo as escadas
de uma secretaria, onde fui levar um pistolão, encontrei um parente afastado
que as subia. Deu-me ele a notícia da morte do meu tio rico que me pagava
colégio e, durante alguns anos, me dera pensão; mas ultimamente a tinha
suspendido, devido, dizia ele, a eu não esquentar lugar, isto é, andar de
escola em escola, de profissão em profissão.
— Era solteiro, esse seu tio?
— Era, e, como já não tivesse
mais pai (ele era irmão de meu pai), ficava sendo o seu único herdeiro, pois
morreu sem testamento. Devido a isso e mais ulteriores ajustes com a Justiça,
fiquei possuidor de cerca de duas centenas e meia de contos.
— Um nababo! Hein?
— De algum modo. Mas escuta,
filho! Possuidor dessa fortuna, larguei-me para a Europa a viajar. Antes — é
preciso que saibas — fundei aqui uma revista literária e artística — Vilbara — em que apresentei as minhas
ideias budistas sobre a arte, apesar do que nela publiquei as coisas mais
escatológicas possíveis, poemetos ao suicídio, poemas em prosa à Vênus
Genitrzx, junto com sonetos, cantos, glosas de coisas de livros de missa de
meninas do colégio de Sion.
— Tudo isto de tua pena?
— Não. A minha teoria era uma e a
da revista outra, mas publicava as coisas mais antagônicas a ela, porque eram
dos amigos.
— Durou muito a tua revista?
— Seis números e custaram-me
muito, pois até tricromias publiquei e hás de adivinhar que foram de quadros
contrários ao meu ideal búdico. Imagina tu que até estampei uma reprodução dos Horácios, do idiota do David!
— Foi para encher, certamente?
— Qual! A minha orientação nunca
dominou a publicação... Bem! Vamos adiante. Embarquei quase como fugido deste
país em que a estética transcendente da renúncia, do aniquilamento do desejo
era tão singularmente traduzida em versos fesceninos e escatológicos e em
quadros apologéticos da força da guerra. Fui-me embora!
— Para onde?
— Pretendia ficar em Lisboa, mas,
em caminho, sobreveio uma tempestade; e deu-me vontade, durante ela, de ir ao
piano. Esperava que saísse o "bitu"; mas, qual não foi o meu espanto,
quando de sob os meus dedos, surgiu e ecoou o tremendo fenômeno meteorológico,
toda a sua música terrível... Ah! Como me senti satisfeito! Tinha encontrado a
minha vocação... Eu era músico! Poderia transportar, registrar no papel e
reproduzi-los artisticamente, com os instrumentos adequados, todos os sons, até
ali intraduzíveis pela arte, da Natureza. O bramido das grandes cachoeiras, o
marulho soluçante das vagas, o ganido dos grandes ventos, o roncar divino do
trovão estalido do raio — todos esses ruídos, todos esses sons não seriam
perdidos para a Arte; e, através do meu cérebro, seriam postos em música,
idealizados transcendentalmente, a fim de mais fortemente, mais intimamente
prender o homem à Natureza, sempre boa e sempre fecunda, vária e ondeante;
mas...
— Tu sabias música?
— Não. Mas, continuei a viagem
até Hamburgo, em cujo conservatório me matriculei. Não me dei bem nele, passei
para o de Dresden, onde também não me dei bem. Procurei o de Munique, que não
me agradou. Frequentei o de Paris, o de Milão...
— De modo que deves estar muito
profundo em música?
Calou-se meu amigo um pouco e
logo respondeu:
— Não. Nada sei, porque não
encontrei um conservatório que prestasse. Logo que o encontre, fica certo que
serei um músico extraordinário. Adeus, vou saltar. Adeus! Estimei ver-te.
Saltou e tomou por uma rua
transversal que não me pareceu ser a da sua residência.
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