Um incêndio
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Que esta
perna trouxe eu dali ferida.
CAMÕES, Os
Lusíadas, c. V, est. XXXIII.
Não inventei o que vou contar, nem o inventou
o meu amigo Abel. Ele ouviu o fato com todas as circunstâncias, e um dia, em
conversa, fez resumidamente a narração que me ficou de memória, e aqui vai tal
qual. Não lhe acharás o pico, a alma própria que este Abel põe a tudo o que
exprime, seja uma ideia dele, seja, como no caso, uma história de outro.
Paciência; por mais que percas a respeito da forma, não perderás nada acerca da
substância. A razão é que me não esqueceu o que importa saber, dizer e
imprimir.
B...
era um oficial da marinha inglesa, trinta a trinta e dois anos, alto, ruivo, um
pouco cheio, nariz reto e pontudo, e os olhos dois pedaços de céu claro batidos
de sol. Convalescia de uma perna quebrada. Já então andava (não ainda na rua)
apoiado a uma muleta pequena. Andava na sala do hospital inglês, aqui no Rio,
onde Abel o viu e lhe foi apresentado, quando ali ia visitar um amigo enfermo,
também inglês e padre.
Padre, oficial de marinha e engenheiro (Abel
é engenheiro) conversavam frequentemente de várias coisas deste e do outro
mundo. Especialmente o oficial contava cenas de mar e de terra, lances de
guerra e aventuras de paz, costumes diversos, uma infinidade de reminiscências
que podiam ser dadas ao prelo e agradar. Foi o que lhe disse o padre um dia.
— Agradar não creio, respondeu ele
modestamente.
— Afirmo-lhe que sim.
— Afirma demais. E daí pode ser que, não
ficando inteiramente bom da perna, deixe a carreira das armas. Nesse caso,
escreverei memórias e viagens para alguma das nossas revistas. Irão sem estilo,
ou em estilo marítimo...
— Que importa uma perna? interrompeu Abel. A
Nélson faltava um braço.
— Não é a mesma coisa, redarguiu B... sorrindo.
Nelson, ainda sem braço, faria o que eu fiz no mês de abril, na cidade de
Montevidéu. Estou eu certo de o fazer agora? Digo-lhe que não.
— Apostou alguma corrida? Mas a batalha de
Trafalgar pode-se ganhar sem braço ou sem perna. Tudo é mandar, não acha?
A melancolia do gesto do oficial foi grande,
e por muito tempo ele não conseguiu falar. Os olhos chegaram a perder um tanto
a luz intensa que traziam, e ficaram pregados ao longe, em algum ponto que se
não podia ver nem adivinhar. Depois voltou B... a si, sorriu, como quando dera
a segunda resposta. Enfim, arrancou do peito a história que queria guardar, e
foi ouvida pelos dois, repetida a mim por um deles e agora impressa, como
anunciei a princípio.
Era um sábado de abril. B... chegara àquele
porto e descera a terra, deu alguns passeios, bebeu cerveja, fumou e, à tarde,
caminhou para o cais, onde o esperava o escaler de bordo. Ia a recordar lances
de Inglaterra e quadros da China. Ao dobrar uma esquina, viu certo movimento no
fim da outra rua, e, sempre curioso de aventuras, picou o passo a descobrir o
que era. Quando ali chegou já a multidão era maior, as vozes muitas e um rumor
de carroças que chegavam de toda parte. Indagou em mau castelhano, e soube que
era um incêndio.
Era um incêndio no segundo andar de uma casa;
não se sabia se o primeiro também ardia. Polícia, autoridades, bombas iam
começar o seu ofício, sem grande ordem, é verdade, nem seria possível. O
principal é que havia boa vontade. A gente curiosa e vizinha falava das moças —
que seria das moças? onde estariam as moças? Com efeito, o segundo andar da
casa era uma oficina de costura, regida por uma francesa, que ensinava e fazia
trabalhar a muitas raparigas da terra. Foi o que o oficial pôde entender no
meio do tumulto.
Deteve-se para assistir ao serviço, e também
recolher alguma cena ou costume com que divertisse os companheiros de bordo e,
mais tarde a família na Escócia. As palavras castelhanas iam-lhe bem ao ouvido,
menos bem que as inglesas, é verdade, mas há só uma língua inglesa. O fogo
crescia, comendo e apavorando, não que se visse tudo cá de fora, mas ao fundo
da casa, no alto, surgiam flamas cercadas de fumo, que se espalhavam como se
quisessem passar ao quarteirão inteiro.
B... viu episódios interessantes, que
esqueceu logo, tal foi o grito de angústia e terror saído da boca de um homem
que estava ao pé dele. Nunca mais lhe esqueceu tal grito; ainda agora parecia
escutá-lo. Não teve tempo nem língua em que perguntasse ao desconhecido o que
era. Nem foi preciso; este recuara, com a cabeça voltada para cima, os olhos na
janela da casa e a mão trêmula, apontando... Outros seguiram a direção; o
oficial de marinha fez o mesmo. Ali, no meio do fumo que rompia por uma das
janelas, destacava-se do clarão, ao fundo, a figura de uma mulher. Não se podia
distinguir bem, pela hora e pela distância, se o clarão vinha de outro
compartimento que ardia, ou se era já o fogo que invadia a sala da frente.
A mulher parecia hesitar entre a morte pelo
fogo e a morte pela queda. Qualquer delas seria horrível. Ora o fumo encobria
toda figura, ora esta reaparecia, como que inerte, dominando todas as demais
partes da catástrofe.
Os corações cá de baixo batiam com ânsia, mas
os pés, atados ao chão pelo terror, não ousavam ir levá-los acima. Tal situação
durou muito ou pouco, o oficial não pôde saber se dois segundos, se dois
minutos. Verdadeiramente não soube nada. Quando deu acordo de si ouviu um
clamor novo, que os jornais do dia seguinte disseram ser de protesto e de
aplauso, a um tempo, ao vê-lo correr na direção da casa. A alma generosa do
oficial não se conteve, rompeu a multidão e enfiou pelo corredor. Um soldado
atravessou-se-lhe na frente, ele deitou o soldado ao chão e galgou os degraus
da escada.
Já então sentia calor de fogo, e o fumo que
descia era um grande obstáculo. Tinha que rompê-lo, respirá-lo, fechar os
olhos. Não se lembrava como pôde fazer isso; lembrava-se que, a despeito das
dificuldades, chegou ao segundo andar, voltou à esquerda, na direção de uma
porta, empurrou-a, estava aberta; entrou na sala. Tudo aí era fumo, que ia
saindo pelas janelas, e o fogo, vindo do gabinete contíguo, começava a devorar
as cortinas da sala. Lá embaixo, fora continuava o clamor. B... empurrou
cadeiras, uma pequena mesa, até chegar à janela. O fumo rasgou-se de modo que
ele pôde ver o busto da mulher... Vencera o perigo; cumpria vencer a morte.
— A mulher, — disse ele ao terminar a
aventura, e provavelmente sem as reticências que Abel metia neste ponto da
narração, — a mulher era um manequim, o manequim de costureira, posto ali de
costume ou no começo do incêndio, como quer que fosse, era um manequim.
A morte agora, não tendo mulher que levasse,
parecia espreitá-lo a ele, salvador generoso. O oficial duvidou ainda um
instante da verdade; o terror podia ter tirado à pessoa humana todos os
movimentos, e o manequim seria acaso mulher. Foi-se chegando; não, não era
mulher, era manequim; aqui estão as costas encarnadas e nuas, aqui estão os
ombros sem braços, aqui está o pau em que toda a máquina assenta. Cumpria agora
fugir à morte. B... voltou-se rápido; tudo era já fumo, a própria sala ardia.
Então ele, com tal esforço que nunca soube o que fez, achou-se fora da sala, no
patamar. Desceu os degraus a quatro e quatro.
No primeiro andar deu já com homens de trabalho
empunhando tubos de extinção. Um deles quis prendê-lo, supondo ser ladrão que
se aproveitasse do desastre para vir buscar valores, e chegou a pegá-lo pela
gola; depressa reconheceu a farda e foi andando. Não tendo que fazer ali,
embora o perigo fosse menor, o oficial cuidou de descer. Verdade é que há muita
vez algum que se não espera. Transpondo a porta da sala para o corredor, quando
a multidão ansiosa estava a esperá-lo, na rua, uma tábua, um ferro, o que quer
que era caiu do alto e quebrou-lhe a perna...
— Quê?... interrompeu Abel.
— Justamente, confirmou o oficial. Não sei de
onde veio nem quis sabê-lo. Os jornais contaram a coisa, mas não li essa parte
das notícias. Sei que logo depois vieram buscar-me dois soldados, por ordem do
comandante de polícia.
Tratou-se a bordo e em viagem. Não continuou
por falta de comodidades que só em terra podia ter. Desembarcando aqui, no Rio
de Janeiro, foi para o hospital onde Abel o conheceu. O vaso de guerra esperava
por ele. Contava partir em breves dias. Não perdia tempo; emprestavam-lhe o Times, e livros de história e de
religião. Enfim, saiu para a Europa. Abel não se despediu dele. Mais tarde
soube que, depois de alguma demora em Inglaterra, foi mandado a Calcutá, onde
descansou da perna quebrada, e do desejo de salvar ninguém.
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