Um Homem Superior
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Após uma noite de insônia, saiu Clemente
Soares da casa em que morava, à Rua da Misericórdia, e entrou a caminhar à toa
pelas ruas da cidade.
Eram quatro da manhã.
Os homens do gás começavam a apagar os
lampiões, e as ruas, ainda não bem alumiadas pela aurora, que apontava apenas,
apresentavam um aspecto lúgubre. Clemente caminhava lento e pensativo. De
quando em quando abalroava nele uma quitandeira que se dirigia para as praças
do mercado com o cesto ou o tabuleiro à cabeça, acompanhada de um preto que
levava outro cesto e a barraca. Clemente parecia despertar dos seus devaneios,
mas recaía logo neles até nova interrupção.
À proporção que o céu clareava, abriam-se as
portas dos botequins, para fazer concorrência aos vendedores de café ambulantes
que desde a meia-noite percorriam a cidade em todos os sentidos. Ao mesmo tempo
começavam a passar os trabalhadores dos arsenais atroando as ruas com os seus
grossos tamancos. Não poucos entravam nos botequins e aqueciam o estômago.
Os entregadores dos jornais concluíam a sua
tarefa com aquela precisão de memória que sempre invejei a esses funcionários
da imprensa. As tavernas abriam as suas portas e ornavam os portais com as
amostras do uso. Daí a pouco era completamente dia; já a cidade começava a
levantar-se toda; numerosas pessoas transitavam a rua; as lojas de todo gênero
abriam as suas portas... Era dia.
Clemente Soares não deu fé de toda esta
gradual mudança; continuou a andar à toa, até que, cansado, foi ter à Praia de
Santa Luzia, e aí ficou a olhar para o mar.
Em qualquer outra circunstância é muito
provável que Clemente Soares admirasse o quadro que se lhe apresentava ante os
olhos. Mas naquela ocasião o pobre rapaz olhava para dentro. Tudo à roda dele
lhe era indiferente; um grande pensamento o preocupava.
Que pensamento?
Não era novo; era um pensamento quase tão velho
como o mundo, um pensamento que só há de acabar quando acabarem os séculos.
Não era bonito; era um pensamento feio,
repelente, terrível, capaz de trazer à mais bela alma a mais completa demência,
e fazer de um gênio um idiota.
Não era obscuro; era um pensamento claro,
evidente, incontestável, diáfano, um pensamento simples, que dispensava toda e
qualquer demonstração.
Clemente Soares não tinha dinheiro.
Só o muito amor que tenho aos leitores me
dispensa de fazer aqui a longa dissertação que este assunto está pedindo.
Demais, para alguns deles seria inútil a dissertação. A maior parte dos homens
há de ter compreendido, ao menos uma vez na vida, o que é não ter dinheiro. A
moça que vê o namorado distraído, o amigo que vê o amigo passar por ele sem lhe
tirar o chapéu, antes de fazer qualquer juízo temerário, deve perguntar
consigo: estará ele sem dinheiro?
Clemente Soares, pois, estava nessa precária
situação. Não tinha dinheiro, nem esperanças de o ter, posto fosse um rapaz
engenhoso e cheio de recursos.
Não era contudo tão grande a falta que não
pudesse almoçar. Introduzindo na algibeira do colete o indicador e o polegar,
como quem tira uma pitada, arrancou de lá dois cartões da barca Ferry; e era
quanto bastava para um almoço no Carceller.
Desceu pela Rua da Misericórdia, entrou em
casa para pesquisar as gavetas a ver se encontrava um charuto esquecido; teve a
fortuna de encontrar dois cigarros, e foi almoçar. Duas horas depois estava em
casa almoçado e fumado. Tirou de uma velha estante um volume de Balzac e
dispôs-se a esperar o jantar.
E de onde viria o jantar?
O jantar não preocupava muito a Clemente
Soares. Costumava obter esse elemento da vida na casa comercial de um amigo,
aonde não ia almoçar, a fim de não parecer que não tinha com quê. Não se diria
o mesmo do jantar, porque o dito amigo lhe dissera uma vez que lhe faria grande
obséquio em ir lá jantar todos os dias. Do almoço não disse o mesmo; por isso
Clemente Soares não se atrevia a lá ir.
Clemente era orgulhoso.
E não são incompatíveis a necessidade e o
orgulho! O desditoso mortal a quem a natureza e a fortuna deram estes dois
flagelos, pode dizer que é a mais triste de todas as criaturas.
CAPÍTULO
2
A casa de Clemente Soares não tinha o aspecto
miserável que a algibeira do rapaz fazia crer. Via-se que era casa onde já
houvera alguma coisa, embora pouca. Era casa de rapaz solteiro, adornada com
certo gosto, no tempo em que o dono gozava de sofrível ordenado.
Alguma coisa lhe faltava, mas não era do
necessário; senão do supérfluo. Clemente vendera, apenas, alguns livros, dois
ou três vasos, uma estatueta, uma charuteira e poucas coisas mais, que não
faziam grande falta. E quem o visse ali, estendido no sofá, metido em um
chambre, lendo um volume encadernado em Paris, diria que o bom rapaz era um
estudante rico, que havia falhado a aula e enchia com alguma distração as
horas, até receber uma carta da namorada.
Namorada! Havia efetivamente na vida de
Clemente Soares uma namorada, mas já pertencia aos exercícios findos. Era uma
menina galante como uma das Graças, mas que na opinião de Clemente ficou tão
feia como uma das Fúrias, desde que soube que o pai apenas teria umas cinco
apólices.
Clemente Soares não tinha coração tão
mesquinho que se deixasse vencer por cinco apólices. Demais, não a namorava
muito disposto ao casamento; foi uma espécie de aposta com outros rapazes.
Trocou algumas cartinhas com a moça e precipitou o desenlace da comédia fazendo
uma retirada airosa.
Carlotinha não era felizmente moça de grandes
enlevos. Deu dois murros no ar quando adquiriu certeza da retirada do rapaz, e
travou namoro com outro que lhe andava a rondar a porta.
Fora esse o único amor, ou coisa que o valha,
do nosso Clemente, que daí em diante não procurou outras aventuras.
E como o faria agora, que se achava
desempregado, sem vintém, cheio de ambições, vazio de meios?
Nem pensava nisso.
Era perto das três horas da tarde, quando
recebeu um bilhetinho do amigo em cuja casa costumava jantar.
Dizia assim:
“Clemente. Não deixes de vir hoje. Temos um
negócio. Teu Castrioto.”
A recomendação era inútil; Clemente não
deixaria de lá ir, mas a segunda parte do bilhete era rutilante de promessas.
Daí a pouco estava em casa de Castrioto,
honrado negociante de fazendas, que o recebeu com duas ou três graças de boa
intimidade e o levou para o fundo da loja onde lhe propôs um emprego.
— O Medeiros, disse ele, está sem
guarda-livros. Quer você ir para lá?
Isso era um raio de sol que alumiava a alma
do mísero Clemente; todavia, como na gratidão entra sempre um tanto de
diplomacia, recebeu Clemente a notícia e a oferta com ar de calculada
indiferença.
— Não duvido ir, disse ele, mas...
— Mas o quê?
— Você bem sabe que eu já estive em casas que...
— Já sei, interrompeu Castrioto, fala do
ordenado.
— Justo.
— Três contos e seiscentos, serve?
Clemente estremeceu dentro de si; mas achou
conveniente fazer uma pergunta:
— Com comida?
— E casa, se quiser, respondeu Castrioto.
— Serve. Obrigado.
E dizendo isto, apertou Clemente Soares as
mãos do amigo, desta vez com todas as mostras de entusiasmo, o que alegrou
muito a Castrioto, que o estimava deveras.
— Eu já tinha alguma coisa em vista, disse
Clemente depois de alguns instantes; mas era precário e inferior ao que você me
oferece.
— Pois vá lá amanhã, disse Castrioto; ou,
melhor, iremos logo depois do jantar.
Assim se fez.
Logo depois do jantar conduziu Castrioto o
amigo à casa do Medeiros, que recebeu com extremo prazer o novo guarda-livros.
E no dia seguinte entrou Clemente Soares no exercício das suas novas funções.
CAPÍTULO
3
Em dois simples capítulos vimos um rapaz
desarranjado e arranjado, pescando um cartão de barca no bolso do colete e
ganhando três contos e seiscentos mil-réis por ano.
Não se pode andar mais depressa.
Mas por que fui eu tão longe, quando podia
apresentar Clemente Soares já empregado, poupando à piedade dos leitores o
espetáculo de um rapaz sem almoço certo?
Fi-lo para que o leitor, depois de presenciar
as finezas do negociante Castrioto, se admirasse, como lhe vai acontecer, de
que Clemente Soares ao cabo de dois meses esquecesse de tirar o chapéu ao
ex-anfitrião.
Por quê?
Pela razão simples de que o excelente
Castrioto teve a infelicidade de falir, e alguns amigos começaram a desconfiar
de que falira fraudulentamente.
Castrioto ficou assaz magoado quando lhe
aconteceu esta aventura; mas era homem filósofo e tinha quarenta anos feitos,
idade em que só um homem de singular simplicidade pode ter ilusões a respeito
da gratidão humana.
Clemente Soares tinha o seu emprego e o desempenhava
com extrema solicitude. Alcançou não ter hora certa para entrar no escritório
e, com esta, outras mais facilidades que lhe deu o dono da casa.
Já nesse tempo não havia aquele rigor antigo,
que não permitia aos empregados de uma casa comercial certos usos da vida
gamenha. Usava pois o nosso Clemente Soares tudo quanto a moda prescrevia. No
fim de um ano, Medeiros elevou-lhe o ordenado a quatro contos e seiscentos
mil-réis, com a esperança de interesse na casa.
Clemente Soares ganhou depressa a estima do
dono da casa. Era solícito, zeloso, e sabia levar os homens. Dotado de
inteligência aguda, e instruído, resolvia todas as dúvidas que estavam acima do
entendimento de Medeiros.
Não tardou, pois, que fosse considerado
pessoa necessária no estabelecimento, verdadeiro alvo de seus esforços. Ao
mesmo tempo tratou de se descartar de certos conhecimentos do tempo em que
tinha o almoço casual e a ceia incerta. Clemente Soares professava o princípio
de que a um pobre não se tira chapéu em nenhuma hipótese, salvo se se encontram
num beco deserto, e ainda assim sem grandes mostras de intimidade, a fim de não
dar confiança.
Desejoso de subir, não faltou Clemente Soares
ao primeiro convite que lhe fez Medeiros para um jantar que dava em casa a um
diplomata estrangeiro. O diplomata simpatizou com o guarda-livros, que daí a
oito dias lhe fez uma visita.
Com estas e outras traças foi o nosso
Clemente penetrando na sociedade que convinha ao seu gosto, e não tardou que
lhe chovessem em casa os convites de bailes e jantares. Cumpre dizer que já
nesse tempo o guarda-livros tinha um interesse na casa de Medeiros, que o
apresentava orgulhosamente como seu sócio.
Nesta situação só lhe faltava uma noiva
elegante e rica.
Não lhe faltava onde escolher; mas não era
isso tão fácil como o resto.
As noivas ou eram ricas demais ou pobres
demais para ele. Mas Clemente confiava na sua estrela, e esperava.
Saber esperar é tudo.
Uma tarde, passando pela Rua da Quitanda, viu
apear-se de um carro um velho e pouco depois uma linda rapariga, que ele
conheceu imediatamente.
Era Carlotinha.
A moça trajava como quem possuía, e o velho
tinha um ar que cheirava a riqueza a cem léguas de distância.
Era marido? padrinho? tio? protetor?
Clemente Soares não pôde resolver este ponto.
O que lhe pareceu foi que o velho era homem de serra acima.
Tudo isto pensou ele enquanto tinha os olhos
cravados em Carlotinha, que estava esplêndida de beleza.
Entrou o par numa loja conhecida de Clemente,
que lá também entrou para ver se a moça o reconhecia.
Carlota reconheceu o antigo namorado, mas
nenhuma fibra do rosto se lhe contraiu; comprou o que ia buscar, e entrou com o
velho no carro.
Clemente ainda teve ideia de chamar um
tílburi, mas desistiu da ideia, e seguiu direção oposta.
Durante toda a noite pensou na gentil menina
que ele havia deixado em outro tempo. Entrou a perguntar a si mesmo se aquele
velho seria marido dela, e se ela havia enriquecido com o casamento. Ou seria
um padrinho rico, que resolvera deixá-la por herdeira de tudo? Todas estas ideias
galoparam na cabeça de Clemente Soares, até que o sono se apoderou dele.
De manhã tudo estava esquecido.
CAPÍTULO
4
Dois dias depois, quem lhe havia de aparecer
no escritório?
O velho.
Clemente Soares apressou-se a servi-lo com
toda a solicitude e zelo.
Era um fazendeiro, freguês da casa de
Medeiros e morador de serra acima. Chamava-se o Comendador Brito. Tinha
sessenta anos e uma dor reumática na perna esquerda. Possuía grandes cabedais e
excelente reputação.
Clemente Soares captou as boas graças do
Comendador Brito nas poucas vezes que ele lá foi. Fez-lhe mil obséquios de
pequena monta, cercou-o de todas as atenções, fascinou-o com discursos, a ponto
que o Comendador mais de uma vez lhe teceu grandes elogios em conversa com
Medeiros.
— É um excelente moço, respondia Medeiros,
muito discreto, inteligente, serviçal; é uma pérola...
— Tenho notado isso mesmo, dizia o Comendador.
Nas condições dele ainda não achei pessoa que mereça tanto.
Aconteceu um dia deixar o Comendador em cima
da escrivaninha de Clemente Soares a boceta do rapé, que era de ouro.
Clemente viu a boceta apenas o Comendador
voltou as costas, mas não quis incomodá-lo, e deixou-o ir adiante. Na véspera
acontecera o mesmo com o lenço, e Clemente teve o cuidado de lho ir levar à
escada. O Comendador Brito era tido e havido por um dos homens mais esquecidos
do seu tempo. Ele mesmo dizia que não esquecia o nariz na cama por tê-lo
pregado na cara.
À hora do jantar, disse Clemente Soares ao
patrão:
— O Comendador esqueceu cá a boceta.
— Sim? É preciso mandá-la. Ó José!...
— Mandar uma boceta de ouro por um preto, não
me parece seguro, objetou Clemente Soares.
— Mas o José é fidelíssimo...
— Quem sabe? a ocasião faz o ladrão.
— Não creia nisso, respondeu Medeiros
sorrindo; vou mandá-la já.
— Além disso, o Comendador é um homem
respeitável; não será bonito mandar assim a boceta por um preto...
— Vai um caixeiro.
— Não, senhor, vou eu mesmo...
— Pois quer?...
— Que tem isso? retorquiu Clemente Soares
rindo; não é coisa do outro mundo...
— Pois faça o que lhe parecer. Nesse caso
leve-lhe também aqueles papéis.
Clemente Soares informado da casa do
Comendador, meteu-se num tílburi e mandou tocar para lá.
O Comendador Brito vinha passar alguns meses
na Corte; tinha alugado uma bela casa, e deu à mulher (porque Carlotinha era
sua mulher) a direção no arranjo e escolha dos móveis, no que ela se houve com
extrema perícia.
Não nascera aquela moça entre brocados nem
fora educada entre as paredes de casa rica; tinha, porém, um instinto do belo e
um grande dom de observação, mediante o que conseguira habituar-se facilmente
ao mundo novo em que entrara.
Eram seis horas da tarde quando Clemente
Soares chegou à casa do Comendador, onde foi recebido com todos os sinais de
simpatia.
— Aposto que o Medeiros lhe deu todo este
incômodo, disse o Comendador Brito, para me mandar uns papéis...
— Trago, com efeito, esses papéis, respondeu
Clemente, mas não é esse o principal objeto da minha visita. Trago-lhe a caixa
de rapé, que vossa excelência esqueceu lá.
E dizendo isto tirou do bolso o aludido
objeto, que o Comendador recebeu com alvoroço e reconhecimento.
— Eu havia de jurar que tinha deixado na casa
de João Pedro da Veiga, onde fui comprar uns bilhetes para serra acima.
Agradeço-lhe muito a sua fineza; mas por que veio pessoalmente? por que tomou
este incômodo?
— Quando fosse incômodo, respondeu Clemente,
e está longe disso, ficaria bem pago com a honra de ser recebido por vossa
excelência.
O Comendador gostava de ouvir finezas como
todos os mortais que vivem debaixo do sol. E Clemente Soares sabia-as dizer de
modo especial. De maneira que já essa noite passou-a Clemente em casa do
Comendador, de onde saiu depois de prometer que voltaria lá mais vezes.
Trouxe boas impressões do Comendador; não assim
de Carlotinha que parecia extremamente severa com ele. Debalde o rapaz a
cercava de atenções e respeitos, afetando não a ter conhecido, quando aliás
podia alegar um beijo que lhe dera uma vez, a furto, entre duas janelas, no
tempo do namoro...
Mas não era Clemente Soares homem que
envergonhasse ninguém, muito menos uma moça que ainda podia fazê-lo feliz. Por
isso não saiu dos limites do respeito, convencido de que a pertinácia vence
tudo.
CAPÍTULO
5
E venceu.
Ao cabo de um mês já a esposa do Comendador
não se mostrava arisca e o tratava com vivos sinais de estima. Clemente supôs
que estava perdoado. Redobrou de atenções, tornou-se um verdadeiro escudeiro da
moça. O Comendador morria por ele. Era o ai-jesus da casa.
Carlotinha estava mais bela que nunca;
antigamente não podia realçar as graças pessoais com os inventos da indústria
elegante; mas agora, que lhe sobravam meios, a boa moça tratava quase
exclusivamente de pôr em relevo o seu airoso porte, tez morena, olhos negros,
testa elevada, boca de Vênus, mãos de fada, e o mais que a imaginativa dos
namorados e dos poetas costuma dizer em casos tais.
Estaria Clemente apaixonado por ela?
Não.
Clemente antevia que os dias do Comendador
não eram longos, e se havia de ir tentar alguma empresa, mais duvidosa e
arriscada, não era melhor continuar aquela já começada alguns anos antes?
Ignorava ele por que concurso de
circunstâncias Carlotinha tinha escolhido aquele marido, cujo único mérito,
para ele, era ter uma grande riqueza. Mas concluía de si para si que ela seria
essencialmente vaidosa, e para captar-lhe as boas graças, fez e disse tudo o
que pode seduzir a vaidade de uma mulher.
Um dia ousou fazer uma alusão ao passado.
— Lembra-se, disse ele, da Rua das
Mangueiras?
Carlotinha franziu a testa e saiu da sala.
Clemente ficou fulminado; meia hora depois
estava reposto na sua habitual indolência e mais disposto que nunca a
perscrutar o coração da moça. Julgou, porém, que era prudente deixar passar
algum tempo e procurar outros meios.
Passeava uma tarde com ela no jardim,
enquanto o Comendador discutia com Medeiros debaixo de uma mangueira sobre
alguns assuntos de comércio.
— Que me disse outro dia o senhor a respeito
da Rua das Mangueiras? Perguntou repentinamente Carlotinha.
Clemente estremeceu.
Houve um silêncio.
— Não falemos nisso, disse ele sacudindo a
cabeça. Deixemos o passado que morreu.
Não respondeu a moça e os dois continuaram a
passear silenciosamente até que se acharam assaz distantes do Comendador.
Clemente rompeu o silêncio:
— Por que me esqueceu tão depressa? disse
ele.
Carlotinha levantou a cabeça com um movimento
de surpresa; depois sorriu-se com ironia e disse:
— Por que o esqueci?
— Sim.
— Não foi o senhor quem me esqueceu?
— Oh! não! Eu recuei diante de uma impossibilidade.
Era infeliz nesse tempo; não tinha os meios necessários para desposá-la; e
preferi o desespero... Sim, o desespero! Nunca a senhora há de ter ideia do que
sofri nos primeiros meses da nossa separação. Sabe Deus que lágrimas de sangue
chorei no silêncio... Mas era necessário. E bem vê que foi obra do destino,
porque a senhora é hoje feliz.
A moça deixou-se cair em um banco.
— Feliz! disse ela.
— Não é?
Carlotinha abanou a cabeça.
— Por que se casou então com...
Estacou.
— Acabe, disse a moça.
— Oh! não! perdoe-me!
Foram interrompidos por Medeiros, que vinha
de braço com o Comendador, e disse em voz alta:
— Sinto dizer, minha senhora, que preciso do
meu guarda-livros.
— E eu estou às suas ordens, respondeu
Clemente rindo, mas um pouco despeitado.
No dia seguinte já Carlotinha não pôde ver o
rapaz sem corar um pouco, excelente sintoma para quem prepara uma viúva.
Quando lhe pareceu conveniente, expediu
Clemente Soares uma carta flamejante à moça, que lhe não respondeu, mas que
também não se zangou.
Neste meio-tempo ocorreu que o Comendador
terminara alguns negócios que o trouxeram à corte, e teve de partir para a
fazenda.
Foi um golpe nos projetos do rapaz.
Poderia ele continuar a entreter aquela
esperança que a sua boa estrela lhe deparara?
Assentou de dar batalha campal. A moça, que
parecia sentir inclinação para ele, não opôs grande resistência e confessou que
sentia renascer-lhe a simpatia de outro tempo, acrescentando que se não
esqueceria dele.
Clemente Soares era um dos mais perfeitos
comediantes que têm escapado ao teatro. Simulou algumas lágrimas, expectorou
alguns soluços e despediu-se de Carlotinha como se tivesse por ela a maior
paixão deste mundo.
Quanto ao Comendador, que era o mais sincero
dos três, sentiu separar-se de um cavalheiro tão distinto como Clemente Soares,
ofereceu-lhe os seus serviços, e pediu com instância que não deixasse de o ir
visitar à fazenda.
Clemente agradeceu e prometeu.
CAPÍTULO
6
Quis a desgraça de Medeiros que os negócios
lhe corressem mal; duas ou três catástrofes comerciais o puseram às portas da
morte. Clemente Soares fez quanto pôde para salvar a casa de que dependia o seu
futuro, mas nenhum esforço era possível contra um desastre marcado pelo
destino, que é o nome que se dá à tolice dos homens ou ao concurso das
circunstâncias.
Achou-se sem emprego nem dinheiro.
Castrioto compreendeu a situação precária do
rapaz pelo cumprimento que este lhe fez nesse tempo, justamente porque
Castrioto, tendo sido julgada casual a sua falência, alcançara proteção e meios
para continuar o negócio.
No pior da sua posição, recebeu Clemente uma
carta em que o Comendador o convidava a ir passar algum tempo na fazenda.
Sabedor da catástrofe de Medeiros, queria o
Comendador naturalmente dar a mão ao rapaz. Este não esperou que repetisse o
convite. Escreveu logo dizendo que daí a um mês se poria em marcha.
Efetivamente um mês depois saía Clemente
Soares em caminho do município de ***, onde era a fazenda do Comendador Brito.
O Comendador esperava-o ansioso. E não menos
ansiosa estava a moça, não sei se porque já lhe tivesse amor, se porque ele
fosse uma distração no meio da monótona vida rural.
Recebido como amigo, tratou Clemente Soares
de pagar a hospitalidade, fazendo-se conviva alegre e divertido.
Ninguém o poderia melhor do que ele.
Dotado de grande perspicácia, compreendeu em
poucos dias como entendia o Comendador a vida do campo, e tratou de o lisonjear
por todos os modos.
Infelizmente, dez dias depois da sua chegada
à fazenda, adoeceu gravemente o Comendador Brito, por maneira que o médico
poucas esperanças deu à família.
Era ver o zelo com que Clemente Soares servia
de enfermeiro do doente, procurando por todos os meios suavizar-lhe os males.
Passava noites em claro, ia aos povoados quando era necessário fazer alguma
coisa mais importante, consolava o doente já com palavras de esperanças, já com
animada conversa, cujo fim era distraí-lo de pensamentos lúgubres.
— Ah! dizia o pobre velho, que pena que eu o
não conhecesse há mais tempo! Bem vejo que é um verdadeiro amigo.
— Não me elogie, Comendador, dizia Clemente
Soares, não me elogie, que é tirar o mérito, se o há, destes deveres agradáveis
ao meu coração.
O procedimento de Clemente influiu no ânimo
de Carlotinha, que nesse desafio de solicitude soube mostrar-se esposa dedicada
e reconhecida. Ao mesmo tempo fez com que em seu coração se desenvolvesse o
gérmen de afeto que Clemente de novo lhe lançara.
Carlotinha era uma moça frívola; mas a doença
do marido, a perspectiva da viuvez, o desvelo do rapaz, tudo fez nela uma
profunda revolução.
E mais que tudo, a delicadeza de Clemente
Soares, que, durante esse tempo de tão graves preocupações para ela, nenhuma
palavra de amor lhe dirigiu.
Era impossível que o Comendador escapasse à
morte.
Na véspera desse fatal dia, chamou os dois a
si, e disse com voz fraca e comovida:
— Tu, Carlota, pela afeição e respeito que me
tiveste durante a nossa vida de casados; tu, Clemente, pela verdadeira
dedicação de amigo que me tens provado, sois ambos as duas únicas criaturas de
quem levo saudades deste mundo, e a quem devo gratidão nesta e na outra vida...
Um soluço de Clemente Soares cortou a palavra
ao moribundo.
— Não chores, meu amigo, disse o Comendador
com voz terna, a morte na minha idade, não é só inevitável, é também
necessária.
Carlota estava banhada em lágrimas.
— Ora, pois, continuou o Comendador, se me
querem fazer o último favor, ouçam-me.
Passou um relâmpago pelos olhos de Clemente
Soares. O rapaz inclinou-se sobre a cama. O Comendador tinha os olhos fechados.
Houve um longo silêncio, no fim do qual o
Comendador abriu os olhos e continuou:
— Consultei novamente a minha consciência e
Deus, e ambos aprovam o que vou fazer. São ambos moços e merecem-se. Se se
amarem, juram casar-se?
— Oh! não fale assim, disse Clemente.
— Por que não? Eu já tenho os pés na
sepultura; não me fica mal dizer isto. Quero deixar felizes as pessoas a quem
mais devo...
Foram as suas últimas palavras. No dia
seguinte, às oito horas da manhã, deu a alma a Deus.
Algumas pessoas da vizinhança ainda
assistiram aos últimos instantes do fazendeiro. Fez-se o enterro no dia
seguinte, e pela tarde pediu o nosso Clemente Soares um cavalo, despediu-se da
jovem viúva, e tomou caminho da corte.
Não veio, porém, até à Corte. Deixou-se estar
nas imediações da fazenda, e no fim de oito dias apareceu lá em busca de não
sei que objeto que lhe havia esquecido.
Carlotinha, quando soube que o rapaz estava
na fazenda, teve um momento de regozijo, de que logo se arrependeu em respeito
à memória do marido.
Curta foi a conversa dos dois. Mas foi quanto
bastou para fazer a felicidade de Clemente.
— Vá, disse ela, que eu bem compreendo a
grandeza de sua alma nesta separação. Mas prometa que voltará daqui a seis
meses...
Juro.
CAPÍTULO
7
Pedira o Comendador aquilo que os dois
desejavam ardentemente.
Seis meses depois eram casados o jovem
Clemente Soares e a gentil viúva; não houve nenhuma escritura de separação de
bens, pela simples razão de que o noivo foi o primeiro que propôs a ideia.
Verdade é que se a propôs, é porque tinha a certeza de que não seria aceita.
Não era Clemente homem que se encafuasse numa
fazenda e se contentasse com a paz doméstica.
Dois meses depois de casado, vendeu a fazenda
e os escravos, e veio estabelecer vivenda na corte, onde hoje foi conhecida a
sua aventura.
Nenhuma casa lhe fechou as portas. Um dos
primeiros que o visitou foi o negociante Medeiros, ainda em tristes
circunstâncias, e por tal modo que chegou a lhe pedir algum dinheiro
emprestado.
Clemente Soares fez a felicidade da mulher
durante um ano ou pouco mais. Mas não passou daí. Dentro de pouco tempo,
Carlotinha estava arrependida do casamento; era tarde.
Soube a moça de algumas aventuras amorosas do
marido, e censurou-lhe esses atos de infidelidade; mas Clemente Soares motejou
do caso, e Carlotinha recorreu às lágrimas.
Clemente levantou os ombros.
Começou uma série de desgostos para a moça,
que ao fim de três anos de casada estava magra e doente, e ao fim de quatro
expirou.
Fez-lhe Clemente um pomposo enterro a que
assistiram até alguns ministros de Estado. Vestiu-se de preto durante um ano, e
quando acabou o luto foi viajar para se distrair da perda, dizia ele.
Quando voltou, encontrou os mesmos afetos e
considerações. Algumas pessoas diziam ter queixas dele, a quem chamavam
ingrato. Mas Clemente Soares não se importava do que a gente dizia.
Aqui acaba a história.
Como! E a moralidade? A minha história é
isto. Não é uma história, é um esboço, menos que um esboço, é um traço. Não me
proponho a castigar ninguém, salvo Carlotinha, que se achou bem punida de ter
amado outro homem em vida do marido.
Quanto a Clemente Soares nenhuma punição
teve, e eu não hei de inventar no papel aquilo que se não dá na vida. Clemente
Soares viveu festejado e estimado por todos, até que morreu de apoplexia, no
meio de muitas lágrimas, que não eram mais sinceras do que ele foi durante sua
vida.
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