Um e outro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Não havia motivo para que ela
procurasse aquela ligação, não havia razão para que a mantivesse. O Freitas a
enfarava um pouco, é verdade. Os seus hábitos quase conjugais; o modo de
tratá-la como sua mulher; os rodeios de que se servia para aludir à vida das
outras raparigas; as precauções que tomava para enganá-la; a sua linguagem
sempre escoimada de termos de calão ou duvidosos; enfim, aquele ar burguês da
vida que levava, aquela regularidade, aquele equilíbrio davam-lhe a impressão
de estar cumprindo penas.
Isto era bem verdade, mas não a
absolvia perante ela mesma de estar enganando o homem que lhe dava tudo, que
educava sua filha, que a mantinha como senhora, com o “chauffeur” do automóvel
em que passeava duas vezes ou mais por semana. Por que não procurava outro mais
decente? A sua razão desejava bem isso; mas o seu instinto a tinha levado para
ali.
A bem dizer, ela não gostava de
homem, mas de homens; as exigências de sua imaginação, mais do que as de sua
carne, eram para a poliandria. A vida a fizera assim e não havia de ser agora,
ao roçar os cinquenta, que havia de corrigir-se. Ao lembrar-se de sua idade,
olhou-se um pouco no espelho e viu que uma ruga teimosa começava a surgir no
canto de um dos olhos. Era preciso massagem... Examinou-se melhor. Estava de
corpinho. O colo era ainda opulento, unido; o pescoço repousava bem sobre ele e
ambos, colo e pescoço, se ajustavam sem saliências nem depressões.
Teve satisfação de ser sua carne;
teve orgulho mesmo. Há quanto tempo ela resistia aos estragos do tempo e ao
desejo dos homens? Não estava moça, mas se sentia ainda apetitosa. Quantos a
provaram? Ela não podia sequer avaliar o número aproximado. Passavam por sua
lembrança numerosas fisionomias. Muitas ela não fixara bem na memória e surgiam-lhe
na recordação como coisas vagas, sombras, pareciam espíritos. Lembrava-se às
vezes de um gesto, às vezes de uma frase deste ou daquele sem se lembrar dos
seus traços; recordava-se às vezes da roupa sem se recordar da pessoa. Era
curioso que de certos que a conhecessem uma única noite e se foram para sempre,
ela se lembrasse bem; e de outros que se demoraram, tivesse uma imagem apagada.
Os vestígios da sua primitiva
educação religiosa e os moldes da honestidade comum subiram à sua consciência.
Seria pecado aquela sua vida? Iria para o inferno? Viu um instante o seu
inferno de estampa popular: as labaredas muito rubras, as almas mergulhadas
nelas e os diabos, com uns garfos enormes, a obrigar os penitentes a sofrerem o
suplício.
Haveria isso mesmo ou a morte
seria...? A sombra da morte ofuscou-lhe o pensamento. Já não era tanto o
inferno que lhe vinha aos olhos; era a morte só, o aniquilamento do seu corpo,
da sua pessoa, o horror horrível da sepultura fria.
Isto lhe pareceu uma injustiça.
Que as vagabundas comuns morressem, vá! Que as criadas morressem vá! Ela,
porém, ela que tivera tantos amantes ricos; ela que causara rixas, suicídios e
assassinatos, morrer, era uma iniquidade sem nome! Não era uma mulher comum,
ela, a Lola, a Lola desejada por tantos homens; a Lola, amante do Freitas, que
gastava mais de um conto de réis por mês nas coisas triviais da casa, não podia
nem devia morrer. Houve então nela um assomo íntimo de revolta contra o destino
implacável.
Agarrou a blusa, ia vesti-la, mas
reparou que faltava um botão. Lembrou-se de pregá-lo, mas imediatamente lhe
veio a invencível repugnância que sempre tivera pelo trabalho manual. Quis
chamar a criada: mas seria demorar. Lançou mão de alfinetes.
Acabou de vestir-se, pôs o
chapéu, e olhou um pouco os móveis. Eram caros, eram bons. Restava-lhe esse
consolo: morreria, mas morreria no luxo, tendo nascido em uma cabana. Como eram
diferentes os dois momentos! Ao nascer, até aos vinte e tantos anos, mal tinha
onde descansar após as labutas domésticas. Quando casada, o marido vinha suado
dos trabalhos do campo e, mal lavados, deitavam-se. Como era diferente agora...
Qual! Não seria capaz de suportá-lo mais... Como é que pôde?
Seguiu-se a emigração... Como foi
que veio até ali, até aquela cumeada de que se orgulhava? Não apanhava bem o
encadeamento. Apanhava alguns termos da série; como porém se ligaram, como se
ajustaram para fazê-la subir de criada à amante opulenta do Freitas, não
compreendia bem. Houve oscilações, houve desvios. Uma vez mesmo quase se viu
embrulhada numa questão de furto; mas, após tantos anos, a ascensão,
parecia-lhe gloriosa e retilínea. Deu os últimos toques no chapéu, consertou o
cabelo na nuca, abriu o quarto e foi até à sala de jantar:
— Maria onde está a Mercedes?
Perguntou.
Mercedes era sua filha, filha de
sua união legal, que orçava pelos vinte e poucos anos. Nascera no Brasil, dois
anos após a sua chegada, um antes de abandonar o marido. A criada correu logo a
atender a patroa.
— Está no quintal conversando com
Aida, patroa.
Maria era a sua copeira e Aida a
lavadeira; no trem de sua casa, havia três criadas e ela, a antiga criada,
gostava de lembrar-se do número das que tinha agora, para avaliar o progresso
que fizeram na vida.
Não insistiu mais em perguntar
pela filha e recomendou:
— Vou sair. Fecha bem a porta da
rua... Toma cuidado com os ladrões. Abotoou as luvas, consertou a fisionomia e
pisou a calçada com um imponente ar de grande dama sob o seu caro chapéu de
plumas brancas.
A rua dava-lhe mais força de
fisionomia, mais consciência dela mesma. Como se sentia estar no seu reino, na
região em que era rainha e imperatriz. O olhar cobiçoso dos homens e o de
inveja das mulheres acabavam o sentimento de sua personalidade, exaltavam-no
até. Dirigiu-se para a rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido. Era manhã
e, embora andássemos pelo meado do ano, o sol era forte como se já verão fosse.
No caminho trocou cumprimentos com as raparigas pobres de uma casa de cômodos
da vizinhança.
— Bom dia, madama.
— Bom dia.
E debaixo dos olhares
maravilhados das pobres raparigas, ela continuou o seu caminho, arrepanhando a
sala, satisfeita que nem uma duquesa, atravessando os seus domínios.
O rendez-vous era para uma hora;
tinha tempo, portanto, de dar umas voltas à cidade. Precisava mesmo que o
Freitas lhe desse uma quantia maior. Já lhe falara a respeito pela manhã,
quando ele saiu e tinha como buscá-la ao escritório dele.
Tencionava comprar um mimo e
oferecê-lo ao chauffeur do “seu” Pope, o seu último amor, o ente sobre-humano
que ela via coado através da beleza daquele “carro” negro, arrogante,
insolente, cortando a multidão das ruas orgulhoso como um Deus.
Na imaginação, ambos, “chauffeur”
e “carro”, não os podia separar um do outro; e a sua imagem dos dois era uma
única de suprema beleza, tendo a seu dispor a força e a velocidade do vento.
Tomou o bonde. Não reparou nos
companheiros de viagem; em nenhum, ela sentiu uma alma; em nenhum, ela sentiu
um semelhante. Todo o seu pensamento era para o “chauffeur”, e o “carro”. O
automóvel, aquela magnífica máquina, que passava pelas ruas que nem um
triunfador, era bem a beleza do homem que o guiava; e, quando ela o tinha nos
braços, não era bem ele quem a abraçava, era a beleza daquela máquina que punha
nela ebriedade, sonho e a alegria singular da velocidade. Não havia como aos
sábados em que ela, recostada às almofadas amplas, percorria as ruas da cidade,
concentrava os olhares e todos invejavam mais o carro que ela, a força que se
continha nele e o arrojo que o chauffeur moderava. A vida de centenas de
miseráveis, de tristes e mendicantes sujeitos que andavam a pé, estava ao
dispor de uma simples e imperceptível volta no guidão; e o motorista, aquele
motorista que ela beijava, que ela acariciava, era como uma divindade que dispusesse
de humildes seres deste triste e desgraçado planeta.
Em tal instante, ela se sentia
vingada do desdém com que a cobriam, e orgulhosa de sua vida.
Entre ambos, “carro” e
“chauffeur”, ela estabelecia um laço necessário, não só entre as imagens respectivas
como entre os objetos. O “carro” era como os membros do outro e os dois
complementavam-se numa representação interna, maravilhosa de elegância, de
beleza, de vida, de insolência, de orgulho e de força.
O bonde continuava a andar. Vinha
jogando pelas ruas em fora, tilintando, parando aqui e ali. Passavam carroças,
passavam carros, passavam automóveis. O dele não passaria certamente. Era de
garage e saía unicamente para certos e determinados fregueses que só passeavam
à tarde ou escolhiam-no para a volta das duas, alta noite. O bonde chegou à
praça da Glória. Aquele trecho da cidade tem um ar de fotografia, como que
houve nele uma preocupação de vista, de efeito em perspectiva; e agradava-lhe.
O bonde corria agora ao lado do mar. A baía estava calma, os horizontes eram
límpidos e os barcos a vapor quebravam a harmonia da paisagem.
A marinha pede sempre o barco a
vela; ele como que nasceu do mar, é sua criação; o barco a vapor é um grosseiro
engenho demasiado humano, sem relação com ela. A sua brutalidade é violenta. A
Lola, porém, não se demorou em olhar o mar, nem o horizonte; a natureza lhe era
completamente indiferente e não fez nenhuma reflexão sobre o trecho que a via
passar. Considerou dessa vez os vizinhos. Todos lhe pareciam detestáveis. Tinha
um ar de pouco dinheiro e regularidade sexual abominável. Que gente!
O bonde passou pela frente do
Passeio Público e o seu pensamento ficou-se num instante no chapéu que
tencionava comprar. Ficar-lhe-ia bem? Seria mais belo que o da Lúcia, amante do
Adão “Turco”? Saltava de uma probabilidade para outra, quando lhe veio desviar
da preocupação a passagem de um automóvel. Pareceu ser ele, o chauffeur. Qual!
Num “táxi”! Não era possível. Afugentou o pensamento e o bonde continuou.
Enfrentou o “Theatro Municipal”. Olhou-lhe as colunas, os dourados, achou-o
bonito, bonito como uma mulher cheia de atavios. Na Avenida, ajustou o passo,
consertou a fisionomia, arrepanhou a saia com a mão esquerda e partiu ruas em
fora com um ar de grande dama sob o enorme chapéu de plumas brancas.
Nas ocasiões em que precisava
falar ao Freitas no escritório, ela tinha por hábito ficar num restaurante
próximo e mandar chamá-lo por caixeiro. Assim ele lhe recomendava e assim ela
fazia, convencida como estava de que as razões com que o Freitas lhe
justificara esse procedimento eram sólidas e procedentes. Não ficava bem ao
alto comércio de comissões e consignações que as damas fossem procurar os
representantes dele nos respectivos escritórios; e, se bem que o Freitas fosse
um simples caixa da Casa Antunes, Costa e Cia., uma visita como a dela poderia
tirar de tão poderosa firma a fama de solidez e abalar-lhe o crédito na
clientela.
A espanhola ficou, portanto,
próxima e, enquanto esperava o amante, pediu uma limonada e olhou a rua.
Naquela hora, a rua 1º de Março tinha o seu pesado trânsito habitual de grandes
carroções pejados de mercadorias. O movimento quase se cingia a homens; e se,
de quando em quando, passava uma mulher, vinha num bando de estrangeiros,
recentemente desembarcados.
Se passava um destes, Lola tinha
um imperceptível sorriso de mofa. Que gente! Que magras! Onde é que foram
descobrir aquela magreza de mulher? Tinha como certo que, na Inglaterra, não
havia mulheres bonitas nem homens elegantes.
Num dado momento, alguém passou
que lhe fez crispar a fisionomia. Era a Rita. Onde ia àquela hora? Não lhe foi
dado ver bem o vestuário dela, mas viu o chapéu cuja pleureuse lhe pareceu mais cara que a do seu. Como é que arranjara
aquilo? Como é que havia homens que dessem tal luxo a uma mulher daquelas? Uma
mulata...
O seu desgosto sossegou com essa
verificação e ficou possuída de um contentamento de vitória. A sociedade regular
dera-lhe a arma infalível...
Freitas chegou afinal e, como
convinha à sua posição e à majestade do alto comércio, veio em colete e sem
chapéu. Os dois se encontraram muito casualmente, sem nenhum movimento,
palavra, gesto, ou olhar de ternura.
— Não trouxeste Mercedes?
Perguntou ele.
— Não... fazia muito sol...
O amante sentou-se e ela o
examinou um momento. Não era bonito, muito menos simpático. Desde muito
verificara isso, agora, porém, descobrira o máximo defeito de sua fisionomia.
Estava no olhar, no olhar sempre o mesmo fixo, esbugalhado, sem mutações e
variações de luz. Ele pediu cerveja, ela perguntou:
— Arranjaste?
Tratava-se de dinheiro e o seu
orgulho de homem do comércio que sempre se julga rico ou às portas da riqueza,
ficou um pouco ferido com a pergunta da amante:
— Não havia dificuldade... Era só
vir ao escritório... Mais que fosse...
Lola suspeitava que não lhe fosse
tão fácil assim, mas nada disse. Explorava habilmente aquela sua ostentação de
dinheiro, farejava “qualquer coisa” e já tomara as suas precauções.
Veio a cerveja e ambos, na mesa
do restaurante, fizeram um numeroso esforço para conversar. O amante fazia-lhe
perguntas: “Vais à modista? Sais hoje à tarde?” — Ela respondia: “sim, não”.
Passou de novo a Rita. Lola aproveitou
o momento e disse:
— Lá vai aquela “negra”.
— Quem?
— A Rita.
— A Ritinha?... Está agora com o
“Louro” croupier, do “Emporium”. E em
seguida acrescentou:
— Está muito bem.
— Pudera! Há homens muito porcos.
— Pois olha: acho-a bem bonita.
— Não precisavas dizer-me. E como
os outros... ainda há quem se sacrifique por vocês.
Era seu hábito sempre procurar na
conversa caminho para mostrar-se arrufada e dar a entender ao amante que ela se
sacrificava vivendo com ele. Freitas não acreditava muito nesse sacrifício, mas
não queria romper com ela, porque a sua ligação causava nas rodas de
confeitarias, de pensões chics e jogo
muito sucesso. Muito célebre e conhecida, com quase vinte anos de “vida ativa”,
o seu collage com a Lola que se não
fora tão bela, fora sempre tentadora e provocante, punha a sua pessoa em foco e
garantia-lhe um certo prestígio sobre as outras mulheres.
Vendo-a arrufada, o amante
fingiu-se arrependido do que dissera, e vieram a despedir-se com palavras
ternas.
Ela saiu contente com o dinheiro
na carteira. Havia dito ao Freitas que se destinava a uma filha que estava na
Espanha; mas a verdade era que mais da metade seria empregada na compra de um
presente para o seu motorista amado. Subiu a Rua do Ouvidor, parando pelas
montras das casas de joias. Que havia de ser? Um anel? Já lhe havia dado. Uma
corrente? Também já lhe dera uma. Parou numa vitrine e viu uma cigarreira.
Simpatizou com o objeto. Parecia caro e era ofuscante: ouro e pedrarias — uma
coisa de mal gosto evidente. Achou-a maravilhosa, entrou e comprou-a sem
discutir.
Encaminhou-se para o bonde cheia
de satisfação. Aqueles presentes como que o prendiam mais a ela, como que o
ligavam eternamente à sua carne e o faziam entrar no seu sangue.
A sua paixão pelo chauffeur durava havia 6 meses e
encontravam-se pelas bandas da Candelária, em uma casa discreta e limpa, bem
frequentada, cheia de precauções para que os frequentadores não se vissem.
Faltava pouco para o encontro e
ela aborrecia-se esperando o bonde conveniente. Havia mais impaciência nela que
atraso no horário. O veículo chegou em boa hora e Lola tomou-o cheia de ardor e
desejo. Havia uma semana que ela não se encontrava com o motorista. A última
vez em que se avistaram, nada de mais íntimo lhe pudera dizer. Freitas, ao
contrário do costume, passeava com ela; e só lhe fora dado vê-lo soberbo, todo
de branco casquete, sentado à almofada, com o busto ereto, a guiar
maravilhosamente o carro lustroso, brilhante, cuja niquelagem areada faiscava
como prata nova.
Marcava-lhe aquele rendez-vous
com muita saudade e vontade de vê-lo e agradecer-lhe a imaterial satisfação que
a máquina lhe dava. Dentro daquele bonde vulgar, um instante, ela teve
novamente diante dos olhos o automóvel orgulhoso, sentiu a sua trepidação, indício
de sua força, e o viu deslizar, silencioso, severo, resoluto e insolente, pelas
ruas em fora, dominado pela mão destra do chauffeur
que ela amava.
Logo ao chegar, perguntou à dona
da casa se o Dr. José estava. Soube que chegara mais cedo e já fora para o
quarto. Não se demorou muito conversando com a patota e correu aos aposentos.
De fato, José lá estava. Fosse
calor, fosse vontade de ganhar tempo, o certo é que já havia tirado de cima de
si o principal vestuário. Assim que a viu entrar, sem se erguer da cama, disse:
— Pensei que não viesses.
— O bonde custou muito a chegar,
meu amor.
Descansou a bolsa, tirou o chapéu
com ambas as mãos e foi direita à cama. Sentou-se na borda, cravou o olhar no
rosto grosseiro e vulgar do motorista; e após um instante de contemplação,
debruçou-se e beijou-o com volúpia, demoradamente.
O chauffeur não retribuiu a carícia, ele as julgava desnecessárias
naquele instante. Nele, o amor não tinha prefácios, nem epílogos; o assunto
ataca-se logo. Ela não o conhecia assim: resíduos da profissão e o sincero
desejo daquele homem faziam-na carinhosa.
Sem beijá-lo, sentada, à borda da
cama, esteve um momento a olhar enternecida a má e forte candidatura do chauffeur. José começava a
impacientar-se com aquelas filigranas. Não compreendia tais rodeios que lhe
pareciam ridículos.
— Despe-te!
Aquela impaciência agradava-lhe e
ela quis saboreá-la mais. Levantou-se sem pressa, começou a desabotoar-se
devagar, parou e disse com meiguice.
— Trago-te uma coisa.
— Que é? — Fez ele logo.
— Adivinha?
— Dize lá de uma vez.
Lola procurou a bolsa, abriu-a
devagar e de lá retirou a cigarreira. Foi até o leito e entregou-a ao chauffeur. Os olhos do homem incendiaram-se
de cupidez: e os da mulher, ao vê-lo satisfeito, ficaram úmidos de
contentamento.
Continuou a despir-se e, enquanto
isto, ele não deixava de apalpar, de abrir, e fechar a cigarreira que recebera.
Descalçava os sapatos quando José lhe perguntou com a sua voz dura e imperiosa.
— Tens passeado muito no Pope?
— Deves saber que não. Não o
tenho mandado buscar e tu sabes que só saio no teu.
— Não estou mais nele.
— Como?
— Saí da casa... ando agora num
táxi.
Quando o chauffeur lhe disse isso, Lola quase desmaiou; a sensação que teve foi
de receber uma pancada na cabeça.
Pois então, aquele Deus, aquele
dominador, aquele supremo indivíduo descera a guiar um táxi, sujo,
chacoalhante, mal pintado, desses que parecem feitos da folha de Flandres.
Então ele? Então...
E aquela abundante beleza do
automóvel de luxo que tão alto ela via nele, em um instante, em um segundo, de
todo se esvaiu. Havia internamente, entre as duas imagens, um nexo que lhe
parecia indissolúvel e o brusco perturbou-lhe completamente a representação
mental e emocional daquele homem.
Não era mais o mesmo, não era o
semideus, ele que estava ali presente; era outro ou antes que ele era
degragado, mutilado, horrendamente mutilado.
Deitou-se a seu lado com muita
repugnância e pela última vez.
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