Um
capitão de voluntários
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Indo a embarcar para a Europa, logo depois da proclamação da República, Simão de Castro fez inventário das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou-a a um amigo para imprimi-la quando ele estivesse barra fora. O amigo não cumpriu a recomendação por achar na história alguma coisa que podia ser penosa, e assim lho disse em carta. Simão respondeu que estava por tudo o que quisesse; não tendo vaidades literárias, pouco se lhe dava de vir ou não a público. Agora que os dois faleceram, e não há igual escrúpulo, dá-se o manuscrito ao prelo.
Éramos dois, elas duas. Os dois íamos ali por
visita, costume, desfastio, e finalmente por amizade. Fiquei amigo do dono da
casa, ele meu amigo. Às tardes, sobre o jantar, — jantava-se cedo em 1866, — ia
ali fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janela, onde se via um morro com
casas em cima. A janela oposta dava para o mar. Não digo a rua nem o bairro; a
cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Ocultarei o nome do meu amigo;
ponhamos uma letra, X... Ela, uma delas, chamava-se Maria.
Quando eu entrava, já ele estava na cadeira
de balanço. Os móveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X...
estendia-me a mão larga e forte; eu ia sentar-me ao pé da janela, olho na sala,
olho na rua. Maria, ou já estava ou vinha de dentro. Éramos nada um para o
outro; ligava-nos unicamente a afeição de X... Conversávamos; eu saía para casa
ou ia passear, eles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogávamos cartas, às
noites, e, para o fim do tempo, era ali que eu passava a maior parte destas.
Tudo em X... me dominava. A figura primeiro.
Ele robusto, eu franzino; a minha graça feminina, débil, desaparecia ao pé do
garbo varonil dele, dos seus ombros largos, cadeiras largas, jarrete forte e o pé
sólido que, andando, batia rijo no chão. Dai-me um bigode escasso e fino; vede
nele as suíças longas, espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos
habituais, pensando ou escutando, era passar os dedos por elas,
encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não só por serem
grandes e belos, mas porque riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a
idade; X... era homem de quarenta anos, eu não passava dos vinte e quatro.
Depois da idade, a vida; ele vivera muito, em outro meio, donde saíra a
encafuar-se naquela casa, com aquela senhora, eu não vivera nada nem com pessoa
alguma. Enfim, — e este rasgo é capital, — havia nele uma fibra castelhana, uma
gota do sangue que circula nas páginas de Calderon, uma atitude moral que posso
comparar, sem depressão nem riso, à do herói de Cervantes.
Como se tinham amado? Datava de longe. Maria
contava já vinte e sete anos, e parecia haver recebido alguma educação. Ouvi
que o primeiro encontro fora em um baile de máscaras, no antigo Teatro
Provisório. Ela trajava uma saia curta, e dançava ao som de um pandeiro. Tinha
os pés admiráveis, e foram eles ou o seu destino a causa do amor de X... Nunca
lhe perguntei a origem da aliança; sei só que ela tinha uma filha, que estava
no colégio e não vinha à casa; a mãe é que ia vê-la. Verdadeiramente as nossas
relações eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de aceitar a situação sem a
examinar.
Quando comecei a ir ali, não tinha ainda o
emprego no banco. Só dois ou três meses depois é que entrei para este, e não interrompi
as relações. Maria tocava piano; às vezes, ela e a amiga Raimunda conseguiam
arrastar X... ao teatro; eu ia com eles. No fim, tomávamos chá em sala
particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabávamos a noite indo de carro
a Botafogo.
A estas festas não ia Barreto, que só mais
tarde começou a frequentar a casa. Entretanto, era bom companheiro, alegre e
rumoroso. Uma noite, como saíssemos de lá, encaminhou a conversa para as duas
mulheres, e convidou-me a namorá-las.
— Tu escolhes uma, Simão, eu outra.
Estremeci e parei.
— Ou antes, eu já escolhi, continuou ele;
escolhi a Raimunda. Gosto muito da Raimunda. Tu, escolhe a outra.
— A Maria?
— Pois que outra há de ser?
O alvoroço que me deu este tentador foi tal
que não achei palavra de recusa, nem palavra nem gesto. Tudo me pareceu natural
e necessário. Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu três
anos, mas tinha a idade conveniente para ensinar-me a amar. Está dito, Maria.
Deitamo-nos às duas conquistas com ardor e tenacidade. Barreto não tinha que
vencer muito; a eleita dele não trazia amores, mas até pouco antes padecera de
uns que rompera contra a vontade, indo o amante casar com uma moça de Minas.
Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a almoçar, veio anunciar-me
que recebera uma carta dela, e mostrou-ma.
— Estão entendidos?
— Estamos. E vocês?
— Eu não.
— Então quando?
— Deixa ver; eu te digo.
Naquele dia fiquei meio vexado. Com efeito,
apesar da melhor vontade deste mundo, não me atrevia a dizer a Maria os meus
sentimentos. Não suponhas que era nenhuma paixão. Não tinha paixão, mas
curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda calor e vida, sentia-me tomado
de uma força nova e misteriosa; mas, por um lado, não amara nunca, e, por
outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo isto, não para explicar
escrúpulos, mas unicamente para fazer compreender o meu acanhamento. Viviam
juntos desde alguns anos, um para o outro. X... tinha confiança em mim,
confiança absoluta, comunicava-me os seus negócios, contava-me coisas da vida
passada. Apesar da desproporção da idade, éramos como estudantes do mesmo ano.
Como entrasse a pensar mais constantemente em
Maria, é provável que por algum gesto lhe houvesse descoberto o meu recente
estado; certo é que, um dia, ao apertar-lhe a mão, senti que os dedos dela se
demoravam mais entre os meus. Dois dias depois, indo ao correio, encontrei-a
selando uma carta para a Bahia. Ainda não disse que era baiana? Era baiana. Ela
é que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pôr o selo e despedimo-nos. À
porta ia a dizer alguma coisa, quando vi ante nós, parada, a figura de X...
— Vim trazer a carta para mamãe, apressou-se
ela em dizer.
Despediu-se de nós e foi para casa; ele e eu
tomamos outro rumo. X... aproveitou a ocasião para fazer muitos elogios de
Maria. Sem entrar em minudências acerca da origem das relações, assegurou-me
que fora uma grande paixão igual em ambos, e concluiu que tinha a vida feita.
— Já agora não me caso; vivo maritalmente com
ela, morrerei com ela. Tenho uma só pena; é ser obrigado a viver separado de
minha mãe. Minha mãe sabe, disse-me ele parando. E continuou andando: sabe, e
até já me fez uma alusão muito vaga e remota, mas que eu percebi. Consta-me que
não desaprova; sabe que Maria é séria e boa, e uma vez que eu seja feliz, não
exige mais nada. O casamento não me daria mais que isto...
Disse muitas outras coisas, que eu fui
ouvindo sem saber de mim; o coração batia-me rijo, e as pernas andavam frouxas.
Não atinava com resposta idônea; alguma palavra que soltava, saía-me engasgada.
Ao cabo de algum tempo, ele notou o meu estado e interpretou-o erradamente;
supôs que as suas confidências me aborreciam, e disse-mo rindo. Contestei
sério:
— Ao contrário, ouço com interesse, e
trata-se de pessoas de toda a consideração e respeito.
Penso agora que cedia inconscientemente a uma
necessidade de hipocrisia. A idade das paixões é confusa, e naquela situação
não posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, não é fora de
propósito que buscasse dissipar no ânimo de X... qualquer possível
desconfiança. A verdade é que ele me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de
criança envolveram-me todo, e quando nos despedimos, apertou-me a mão com
energia. Creio até que lhe ouvi dizer: “Obrigado!”
Não me separei dele aterrado, nem ferido de
remorsos prévios. A primeira impressão da confidência esvaiu-se, ficou só a
confidência, e senti crescer-me o alvoroço da curiosidade. X... falara-me de
Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma alusão às suas prendas físicas,
mas a minha idade dispensava qualquer referência direta. Agora, na rua, via de
cor a figura da moça, os seus gestos igualmente lânguidos e robustos, e cada
vez me sentia mais fora de mim. Em casa escrevi-lhe uma carta longa e difusa,
que rasguei meia hora depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui à casa de X...
Eram ave-marias. Ele estava na cadeira de
balanço, eu sentei-me no lugar do costume, olho na sala, olho no morro. Maria
apareceu tarde, depois das horas, e tão anojada que não tomou parte na
conversação. Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da
sala.
— Maria acordou hoje com a mania de colher
donativos para a guerra, disse-me ele. Já lhe fiz notar que nem todos quererão
parecer que... Você sabe... A posição dela... Felizmente, a ideia há de passar;
tem dessas fantasias...
— E por que não?
— Ora, porque não! E depois, a guerra do
Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas, palavra, não me
entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei
indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que
tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos.
— Eu não. Prefiro os argentinos.
— Também gosto deles, mas, no interesse da
nossa gente, era melhor ficar com o López.
— Não; olhe, eu estive quase a alistar-me
como voluntário da pátria.
— Eu, nem que me fizessem coronel, não me
alistava.
Ele disse não sei que mais. Eu, como tinha a
orelha afiada, à escuta dos pés de Maria, não respondi logo, nem claro, nem
seguido; fui engrolando alguma palavra e sempre à escuta. Mas o diabo da moça
não vinha; imaginei que estariam arrufados. Enfim, propus cartas, podíamos
jogar uma partida de voltarete.
— Podemos, disse ele.
Passamos ao gabinete. X... pôs as cartas na
mesa e foi chamar a amiga. Dali ouvi algumas frases sussurradas, mas só esta me
chegaram claras:
— Vem! é só meia hora.
— Que maçada! Estou doente.
Maria apareceu no gabinete, bocejando.
Disse-me que era só meia hora; tinha dormido mal, doía-lhe a cabeça e contava
deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e começamos a partida. Eu arrependia-me
de haver rasgado a carta; lembrava-me alguns trechos dela, que diriam bem o meu
estado, com o calor necessário a persuadi-la. Se a tenho conservado,
entregava-lhe agora; ela ia muita vez ao patamar da escada despedir-se de mim e
fechar a cancela. Nessa ocasião podia dar-lha; era uma solução da minha crise.
Ao cabo de alguns minutos, X... levantou-se
para ir buscar tabaco de uma caixa de folha-de-flandres, posta sobre a
secretária. Maria fez então um gesto que não sei como diga nem pinte. Ergueu as
cartas à altura dos olhos para os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava à
esquerda, e arregalou-os tanto e com tal fogo e atração, que não sei como não
entrei por eles. Tudo foi rápido. Quando ele voltou fazendo um cigarro, Maria
tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as como se
calculasse. Eu devia estar trêmulo; não obstante, calculava também, com a
diferença de não poder falar. Ela disse então com placidez uma das palavras do
jogo, passo ou licença.
Jogamos cerca de uma hora. Maria, para o fim,
cochilava literalmente, e foi o próprio X... que lhe disse que era melhor ir
descansar. Despedi-me e passei ao corredor, onde tinha o chapéu e a bengala.
Maria, à porta da sala, esperava que eu saísse e acompanhou-me até à cancela,
para fechá-la. Antes que eu descesse, lançou-me um dos braços ao pescoço,
chegou-me a si, colou-me os lábios nos lábios, onde eles me depositaram um
beijo grande, rápido e surdo. Na mão senti alguma coisa.
— Boa noite, disse Maria fechando a cancela.
Não sei como não caí. Desci atordoado, com o
beijo na boca, os olhos nos dela, e a mão apertando instintivamente um objeto.
Cuidei de me pôr longe. Na primeira rua, corri a um lampião, para ver o que
trazia. Era um cartão de loja de fazendas, um anúncio, com isto escrito nas
costas, a lápis: “Espere-me amanhã, na ponte das barcas de Niterói, a uma hora
da tarde”.
O meu alvoroço foi tamanho que durante os
primeiros minutos não soube absolutamente o que fiz. Em verdade, as emoções
eram demasiado grandes e numerosas, e tão de perto seguidas que eu mal podia
saber de mim. Andei até ao Largo de São Francisco de Paula. Tornei a ler o
cartão; arrepiei caminho, novamente parei, e uma patrulha que estava perto
talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a respeito da comoção, tinha
fome e fui cear ao Hotel dos Príncipes. Não dormi antes da madrugada; às seis
horas estava em pé. A manhã foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos antes
de uma hora cheguei à ponte; já lá achei Maria, envolvida numa capa, e com um
véu azul no rosto. Ia sair uma barca, entramos nela.
O mar acolheu-nos bem. A hora era de poucos
passageiros. Havia movimento de lanchas, de aves, e o céu luminoso parecia
cantar a nossa primeira entrevista. O que dissemos foi tão de atropelo e
confusão que não me ficou mais de meia dúzia de palavras, e delas nenhuma foi o
nome de X... ou qualquer referência a ele. Sentíamos ambos que traíamos, eu o
meu amigo, ela o seu amigo e protetor. Mas, ainda que o não sentíssemos, não é
provável que falássemos dele, tão pouco era o tempo para o nosso infinito.
Maria apareceu-me então como nunca a vi nem suspeitara falando de mim e de si,
com a ternura possível naquele lugar público, mas toda a possível, não menos.
As nossas mãos colavam-se, os nossos olhos comiam-se, e os corações batiam
provavelmente ao mesmo compasso rápido e rápido. Pelo menos foi a sensação com
que me separei dela, após a viagem redonda a Niterói e São Domingos. Convidei-a
a desembarcar em ambos os pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos
metêssemos numa caleça fechada: “Que ideia faria de mim?” perguntou-me com
gesto de pudor que a transfigurou. E despedimo-nos com prazo dado, jurando-lhe
que eu não deixaria de ir vê-los, à noite, como de costume.
Como eu não tomei da pena para narrar a minha
felicidade, deixo a parte deliciosa da aventura, com as suas entrevistas,
cartas e palavras, e mais os sonhos e esperanças, as infinitas saudades e os
renascentes desejos. Tais aventuras são como os almanaques, que, com todas as
suas mudanças, hão de trazer os mesmos dias e meses, com os seus eternos nomes
e santos. O nosso almanaque apenas durou um trimestre, sem quartos minguantes
nem ocasos de sol. Maria era um modelo de graças finas, toda vida, toda
movimento. Era baiana, como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na
campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro encontro com X...
no Teatro Provisório, dançando ao som de um pandeiro, disse-me que era verdade,
fora ali vestida à castelhana e de máscara; e, como eu lhe pedisse a mesma
coisa, menos a máscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem
recusa um perigo:
— Você poderia ficar doido.
— Mas X... não ficou doido.
— Ainda hoje não está no seu juízo, replicou
Maria rindo. Imagina que eu fazia isto só...
E em pé, num maneio rápido, deu uma volta ao
corpo, que me fez ferver o sangue.
O trimestre acabou depressa, como os
trimestres daquela casta. Maria faltou um dia à entrevista. Era tão pontual que
fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez, quinze minutos; depois vinte,
depois trinta, depois quarenta... Não digo as vezes que andei de um lado para
outro, na sala, no corredor, à espreita e à escuta, até que de todo passou a
possibilidade de vir. Poupo a notícia do meu desespero, o tempo que rolei no
chão, falando, gritando ou chorando. Quando cansei, escrevi-lhe uma longa
carta; esperei que me escrevesse também, explicando a falta. Não mandei a
carta, e à noite fui à casa deles.
Maria pôde explicar-me a falta pelo receio de
ser vista e acompanhada por alguém que a perseguia desde algum tempo. Com
efeito, haviam-me já falado em não sei que vizinho que a cortejava com
instância; uma vez disse-me que ele a seguira até à porta da minha casa.
Acreditei na razão, e propus-lhe outro lugar de encontro, mas não lhe pareceu
conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas entrevistas, até
fazer calar as suspeitas. Não sairia de casa. Não compreendi então que a
principal verdade era ter cessado nela o ardor dos primeiros dias. Maria era
outra, principalmente outra. E não podes imaginar o que vinha a ser essa bela
criatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que
ninguém.
Quando me entrou a convicção de que tudo
estava acabado, resolvi não voltar lá, mas nem por isso perdia a esperança; era
para mim questão de esforço. A imaginação, que torna presentes os dias
passados, fazia-me crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras
semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei; não podia viver sem ela.
X... recebeu-me com o seu grande riso
infante, os olhos puros, a mão forte e sincera; perguntou a razão da minha
ausência. Aleguei uma febrezinha, e, para explicar o enfadamento que eu não
podia vencer, disse que ainda me doía a cabeça. Maria compreendeu tudo; nem por
isso se mostrou meiga ou compassiva, e, à minha saída, não foi até ao corredor,
como de costume.
Tudo isto dobrou a minha angústia. A ideia de
morrer entrou a passar-me pela cabeça; e, por uma simetria romântica, pensei em
meter-me na barca de Niterói, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio
da baía, atirar-me ao mar. Não iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado
casualmente o meu amigo Barreto, não vacilei em lhe dizer tudo; precisava de
alguém para falar comigo mesmo. No fim pedi-lhe segredo; devia pedir-lhe
especialmente que não contasse nada a Raimunda. Nessa mesma noite ela soube
tudo. Raimunda era um espírito aventureiro, amigo de entrepresas e novidades.
Não se lhe dava, talvez, de mim nem da outra, mas viu naquilo um lance, uma
ocupação, e cuidou em reconciliar-nos; foi o que eu soube depois, e é o que dá
lugar a este papel.
Falou-lhe uma e mais vezes. Maria quis negar
a princípio, acabou confessando tudo, dizendo-se arrependida da cabeçada que
dera. Usaria provavelmente de circunlóquios e sinônimos, frases vagas e
truncadas, alguma vez empregaria só gestos. O texto que aí fica é o da própria
Raimunda, que me mandou chamar à casa dela e me referiu todos os seus esforços,
contente de si mesma.
— Mas não perca as esperanças, concluiu; eu
disse-lhe que o senhor era capaz de matar-se.
— E sou.
— Pois não se mate por ora; espere.
No dia seguinte vi nos jornais uma lista de
cidadãos que, na véspera, tinham ido ao quartel-general apresentar-se como
voluntários da pátria, e nela o nome de X... com o posto de capitão. Não
acreditei logo; mas eram os mesmos, na mesma ordem, e uma das folhas fazia
referências à família de X... ao pai, que fora oficial de marinha, e à figura
esbelta e varonil do novo capitão; era ele mesmo.
A minha primeira impressão foi de prazer;
íamos ficar sós. Ela não iria de vivandeira para o Sul. Depois, lembrou-me o
que ele me disse acerca da guerra, e achei estranho o seu alistamento de
voluntário, ainda que o amor dos atos generosos e a nota cavalheiresca do
espírito de X... pudessem explicá-lo. Nem de coronel iria, disse-me, e agora
aceitava o posto de capitão. Enfim, Maria; como é que ele, que tanto lhe
queria, ia separar-se dela repentinamente, sem paixão forte que o levasse à
guerra?
Havia três semanas que eu não ia à casa
deles. A notícia do alistamento justificava a minha visita imediata e
dispensava-me de explicações. Almocei e fui. Compus um rosto ajustado à
situação e entrei. X... veio à sala, depois de alguns minutos de espera. A cara
desdizia das palavras; estas queriam ser alegres e leves, aquela era fechada e
torva, além de pálida. Estendeu-me a mão, dizendo:
— Então, vem ver o capitão de voluntários?
— Venho ouvir o desmentido.
— Que desmentido? É pura verdade. Não sei
como isto foi, creio que as últimas notícias... Você por que não vem comigo?
— Mas então é verdade?
— É.
Após alguns instantes de silêncio, meio
sincero, por não saber realmente que dissesse, meio calculado, para persuadi-lo
da minha consternação, murmurei que era melhor não ir, e falei-lhe na mãe. X...
respondeu-me que a mãe aprovava; era viúva de militar. Fazia esforços para
sorrir, mas a cara continuava a ser de pedra. Os olhos buscavam desviar-se, e
geralmente não fitavam bem nem longo. Não conversamos muito; ele ergueu-se,
alegando que ia liquidar um negócio, e pediu-me que voltasse a vê-lo. À porta,
disse-me com algum esforço:
— Venha jantar um dia destes, antes da minha
partida.
— Sim.
— Olhe, venha jantar amanhã.
— Amanhã?
— Ou hoje, se quiser.
— Amanhã.
Quis deixar lembranças a Maria; era natural e
necessário, mas faltou-me o ânimo. Embaixo arrependi-me de o não ter feito.
Recapitulei a conversação, achei-me atado e incerto; ele pareceu-me, além de
frio, sobranceiro. Vagamente, senti alguma coisa mais. O seu aperto de mão
tanto à entrada, como à saída, não me dera a sensação do costume.
Na noite desse dia, Barreto veio ter comigo,
atordoado com a notícia da manhã, e perguntando-me o que sabia; disse-lhe que nada.
Contei-lhe a minha visita da manhã, a nossa conversação, sem as minhas
suspeitas.
— Pode ser engano, disse ele, depois de um
instante.
— Engano?
— Raimunda contou-me hoje que falara a Maria,
que esta negara tudo a princípio, depois confessara, e recusara reatar as
relações com você.
— Já sei.
— Sim, mas parece que da terceira vez foram
pressentidas e ouvidas por ele, que estava na saleta ao pé. Maria correu a
contar a Raimunda que ele mudara inteiramente; esta dispôs-se a sondá-lo, eu
opus-me, até que li a notícia nos jornais. Vi-o na rua, andando: não tinha
aquele gesto sereno de costume, mas o passo era forte.
Fiquei aturdido com a notícia, que confirmava
a minha impressão. Nem por isso deixei de ir lá jantar no dia seguinte. Barreto
quis ir também; percebi que era com o fim único de estar comigo, e recusei.
X... não dissera nada a Maria; achei-os na
sala, e não me lembro de outra situação na vida em que me sentisse mais
estranho a mim mesmo. Apertei-lhes a mão, sem olhar para ela. Creio que ela
também desviou os olhos. Ele é que, com certeza, não nos observou; riscava um
fósforo e acendia um cigarro. Ao jantar falou o mais naturalmente que pôde,
ainda que frio. O rosto exprimia maior esforço que na véspera. Para explicar a
possível alteração, disse-me que embarcaria no fim da semana, e que, à
proporção que a hora ia chegando, sentia dificuldade em sair.
— Mas é só até fora da barra; lá fora torno a
ser o que sou, e, na campanha, serei o que devo ser.
Usava dessas palavras rígidas, alguma vez enfáticas.
Notei que Maria trazia os olhos pisados; soube depois que chorara muito e
tivera grande luta com ele, na véspera, para que não embarcasse. Só conhecera a
resolução pelos jornais, prova de alguma coisa mais particular que o
patriotismo. Não falou à mesa, e a dor podia explicar o silêncio, sem nenhuma
outra causa de constrangimento pessoal. Ao contrário, X... procurava falar
muito, contava os batalhões, os oficiais novos, as probabilidades de vitória, e
referia anedotas e boatos, sem curar de ligação. Às vezes, queria rir; para o
fim, disse que naturalmente voltaria general, mas ficou tão carrancudo depois
deste gracejo, que não tentou outro. O jantar acabou frio; fumamos, ele ainda
quis falar da guerra, mas o assunto estava exausto. Antes de sair, convidei-o a
ir jantar comigo.
— Não posso; todos os meus dias estão
tomados.
— Venha almoçar.
— Também não posso. Faço uma coisa; na volta
do Paraguai, o terceiro dia é seu.
Creio ainda hoje que o fim desta última frase
era indicar que os dois primeiros dias seriam da mãe e de Maria; assim,
qualquer suspeita que eu tivesse dos motivos secretos da resolução, devia
dissipar-se. Nem bastou isso; disse-me que escolhesse uma prenda em lembrança,
um livro, por exemplo. Preferi o seu último retrato, fotografado a pedido da
mãe, com a farda de capitão de voluntários. Por dissimulação, quis que
assinasse; ele prontamente escreveu:
“Ao seu leal amigo Simão de Castro oferece o
capitão de voluntários da pátria X...” O mármore do rosto era mais duro, o
olhar mais torvo; passou os dedos pelo bigode, com um gesto convulso, e
despedimo-nos.
No sábado embarcou. Deixou a Maria os
recursos necessários para viver aqui, na Bahia, ou no Rio Grande do Sul; ela
preferiu o Rio Grande, e partiu para lá, três semanas depois, a esperar que ele
voltasse da guerra. Não a pude ver antes; fechara-me a porta, como já me havia
fechado o rosto e o coração.
Antes de um ano, soube-se que ele morrera em
combate, no qual se houve com mais denodo que perícia. Ouvi contar que primeiro
perdera um braço, e que provavelmente a vergonha de ficar aleijado o fez
atirar-se contra as armas inimigas, como quem queria acabar de vez. Esta versão
podia ser exata, porque ele tinha desvanecimentos das belas formas; mas a causa
foi complexa. Também me contaram que Maria, voltando do Rio Grande, morreu em
Curitiba; outros dizem que foi acabar em Montevidéu. A filha não passou dos
quinze anos.
Eu cá fiquei entre os meus remorsos e
saudades; depois, só remorsos; agora admiração apenas, uma admiração
particular, que não é grande senão por me fazer sentir pequeno. Sim, eu não era
capaz de praticar o que ele praticou. Nem efetivamente conheci ninguém que se
parecesse com X... E por que teimar nesta letra? Chamemo-lo pelo nome que lhe
deram na pia, Emílio, o meigo, o forte, o simples Emílio.
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