Um cão de lata ao rabo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era uma vez um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; ideia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.
— Meus rapazes, disse ele. Chegou a ocasião
de brilhar e mostrar que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou
quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os
trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.
— Mas o assunto? perguntaram os rapazes
batendo palmas de alegria.
— Podia dar-lhes um assunto histórico; mas
seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto
simples, aparentemente vulgar, mas profundamente filosófico.
— Diga, diga.
— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO.
Quero vê-los brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de ideia.
Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.
O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz
parte. Sete escritos foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas
três, sobretudo, mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais
eram — neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo, — naquele a pureza
da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica,
— tudo novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os classificamos pela ordem do
mérito e do estilo. Assim, temos:
1º Estilo antitético e asmático.
2º Estilo ab ovo.
3º Estilo largo e clássico.
Para que o leitor fluminense julgue por si
mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora
inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.
CAPÍTULO: ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO
O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o
cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta.
Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de
anjo no dorso de uma locomotiva.
Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é
rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é
também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino:
duas ideias e uma só raiz.
A etimologia é a chave do passado, como a
filosofia é a chave do futuro.
O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas
pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o
vento, como a ideia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o
incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é
comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando
uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os
andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrimachristi, e
embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma.
Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o
caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.
O cão ia. A lata saltava como os guizos do
arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão
parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer:
— Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do
bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão
equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.
Então, ao longe, muito longe, troou alguma
coisa funesta e misteriosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas
do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o
ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu
tumulto, a terra calou a sua orquestra. O furacão vinha retorcendo as árvores,
essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava
tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si
mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri,
que é o condor das rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o
máximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A
poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita;
poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.
O cão, ao sentir o furacão, estacou. O
pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo,
não com medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime.
Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranquilidade do leão ou à
fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse
inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A
um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro
entraram a devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão
trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria extática,
absorta, atônita.
Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a
lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um
no outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças,
todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao
azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo
isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha
risível, o Homem.
As horas voavam como folhas num temporal. O
duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das
grandes cóleras. Tinha a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria
as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por
afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para
sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas
implacáveis trazia a morte na ponta.
De repente, ouviu-se um estouro, um gemido,
um grito de triunfo. A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo
apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera
o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na
do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.
CAPÍTULO 2: ESTILO AB OVO
Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos
primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber
a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.
O cão nasceu no sexto dia. Com efeito,
achamos no Gênesis, cap. I, v. 24 e
25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias
as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora
trato.
Não se pode dizer com acerto a data do
barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez
cortinas de linho retorcido”, donde se pode inferir que já se torcia o linho, e
por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo
livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3,
fala o profeta em caldeiras; mas logo
adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.
Seja como for, temos a existência do cão,
provada pelo Gênesis, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não
havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso
que dela fazemos.
Agora: — donde vem o uso de atar uma lata ao
rabo do cão? Sobre este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como
a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram.
Quando Davi (Reis, cap. V, v. 16)
entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu,
ficou fazendo má ideia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo
que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos
Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e
dos Heveus.
Nem admira que esses povos desconhecessem o
uso de que se trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o
município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão,
há fundamento para crer que é contemporâneo do município, porquanto nada menos
é que a primeira das liberdades municipais.
O município é o verdadeiro alicerce da
sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão
de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas, se bem
tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de
atar a lata ao rabo desse digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava
o município e as liberdades correlatas.
Na Ilíada
não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo direi dos
Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de
Confúcio. Num hino à Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel
atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do
homem, é absolutamente impossível ligar esse texto ao uso moderno.
Que os meninos antigos brincavam, e de modo
vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles,
Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes objetos
com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou
bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do
cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera
entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o
fator de haver Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no
livro de Plutarco?
Assim explorada a origem do uso, entrarei no
exame do assunto que... (Não houvera
tempo para concluir).
CAPÍTULO 3: ESTILO LARGO E CLÁSSICO
Larga messe de louros se oferece às
inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas
temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e
porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e
quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a
trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.
Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao
apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo
que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da
antiguidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.
Tinham alguns infantes, por brinco e gala,
atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas
tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata,
e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e
desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.
Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos
às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem
quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas
e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até
entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao
pé de cuja base um mancebo apascoava o seu gado.
Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse
mais compassivo que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil
era ele, de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa donzela.
Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de
Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho.
Apropinquando-se o cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O
mancebo varreu logo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata
do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.
O cão, aliás vultoso, parecia haver
desmedrado fortemente, depois que a malícia dos meninos o pusera em tão
apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou para
si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.
Folgareis certamente com o caso que deixo
narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao
quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto
quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura coberto de trevas, a
imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados
labirintos.
Entranhado anelo me enche de antecipado
gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do
nosso digno mestre, e que desafiarão a foice da morte colhendo vasta seara de
louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.
Tais são os três escritos; dando-os ao prelo,
fico tranquilo com a minha consciência; revelei três escritores.
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