Última lembrança
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ia partir.
De pé, à
popa, junto à amurada, num recanto isolado do tombadilho do steamer, o seu vestido de viagem atacado
até o queixo, triste e soluçante, ela me disse, tirando da sua bolsa preta de
couro da Rússia um pequenino envelope branco:
— Olha, toma
esta lembrança... É uma porção de mim mesma que aí te fica, e que te
acompanhará durante toda esta ausência... Nunca a abandones, pois, traze-a
contigo sempre, sempre...
E tinha a
voz presa, velada, sacudida pelos soluços, enquanto as lágrimas jorravam-lhe
dos belos olhos glaucos, agora raiados de sangue, duas a duas,
rolando-lhe pelas faces rosadas e caindo, ainda quentes, sobre as minhas mãos
trêmulas que enlaçavam demoradamente as suas.
Guardei,
comovido, a encantadora lembrança, que era uma pequena madeixa da sua amada
cabeleira de ouro, que em noites venturosas tanta vez se desmanchara e rolara,
em ondas, sobre as brunidas espáduas de alabastro, ao assalto dos meus dedos
febris.
E
nervosamente, em silêncio, beijei-lhe as mãos, que tremiam, estreitando-a
longamente contra o meu coração...
Já o vapor
soltava um longo silvo metálico, dando o sinal da partida.
Então,
trocado o adeus derradeiro, afastei-me tristemente para o portaló, vendo-a
amparar-se de repente, muito pálida e pendida de dor a radiosa cabeça
sonhadora, sobre a balaustrada branca.
O steamer arrancou.
E eu, ainda sobre o cais,
sozinho, alheado de tudo, seguia, de olhar fixo, obstinadamente, esse casco
negro que a levava para outros destinos; e acenava sempre um adeus em direção
ao seu vulto gracioso, destacando-se ainda à popa alta do vapor, que deslizava
já numa esteira de espumas, cuja alvura ondulosa parecia-me a torrente virginal
dos acenos do seu lenço tremulante, que procurava chegar até mim...
Permaneci
assim por instantes, chumbado ao solo, numa nostalgia imensa.
Lentamente,
porém, a poeira negra do crepúsculo alastrou-se no ar, apagando além o recorte
azulado das montanhas, envolvendo-me na treva espessa, quando o brilho
sanguíneo e vivo de uma queimada ao longe arrancou-me desse abatimento,
abrindo-se, como uma chaga inflamada, no seio da noite densa.
Veio-me
então uma superstição, uma fé mística e profunda, e, seguindo com o olhar a
fogueira longínqua e saudosa, beijei doidamente, como numa consagração
propiciatória, aquela adorada lembrança que ia ficar para sempre iluminando e
guardando, como uma lâmpada sagrada, o santuário vazio do meu coração!...
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