Tzar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ele era o inacessível, supremo. A
sua vontade trazia trêmulos e angustiados noventa milhões de súditos. Os
pensamentos destes homens morriam inexpressos, temerosos da onipotência fatal
do gigante autocrata. Uma palavra, uma suspeita faziam voar em trens expressos para
a Sibéria os delinquentes, num degredo tumular.
Nas grandes
revistas de cem mil homens os estandartes da Nação, coroados pela águia de
ouro, com o insígnias fracas, abatiam-se à sua presença real, num Te-Deum de aclamação. Quando passava nas
ruas, augusto e refulgente, envolvido no estrépito, nos brilhos metálicos do
seu séquito ostentoso e guerreiro, deixava, por sobre as multidões aglomeradas,
o deslumbramento e o assombro que assinalam a passagem dum trovão.
Havia em
torno deste homem como que uma atmosfera de força brutal, junto à
sobrenaturalidade dum monstro fantástico, cuja proximidade dava morte. Mesmo no
seio do seu palácio, os seus validos, a sua família, tornavam-se gélidos
trêmulos à aproximação soberana, porque havia nele a ferocidade rija das
máquinas, das engrenagens e a crueldade sutil e alucinante do cholera-morbus. Achava-se ali, no meio
daquela imensa Nação, como um formidável animal pré-histórico. O monstro tinha
a intuição do seu valor e da sua força: e nunca os seus lábios sorriam para
ninguém, porque não considerava semelhante ninguém!
Nas
solenidades babilônicas da grande corte do Neva, cercado do grupo dourado dos
generais do Império, numa sala feérica de decorações e constelada pela beleza
exuberante e olímpica das altas damas palacianas, colocadas ali às centenas,
como os nobres dignitários da Nação, em presença dos embaixadores de todas as
potências do mundo, o grande monarca, postado no meio das suntuosidades daquela
quermesse oficial, no cachoeirar estridente das orquestrações guerreiras,
alheado de tudo, prodigioso, sobre-humano —
fugia para longe dessas glórias que detestava, e, de olhar amortecido, sem uma
palavra, sem um gesto, transportava-se para além, para o ménage querido, onde estava a sua Amada, a deliciosa criatura pela
qual se sentia menino, gostando de chorar no seu seio.
Imaginava-a
deitada sobre a alvura flácida das peles de ursos brancos do polo, num pequeno
divã, o corpo docemente premido no
seu roupão de veludo negro bordado de filigranas, o pescoço e os pulsos
envoltos na mornidão suavíssima dos arminhos da raposa azul, feliz, à espera
dele com sorrisos adoráveis e umas carícias que lhe faziam tão bem!...
Sentia um
enternecimento em pensar nela e aspirava por chegar ao ninho tépido e perfumado
onde era tratado como um bebê, repreendido cristalinamente pelas suas faltas e
castigado por aquela mão rósea e cetinosa, que sabia, muito justa, distribuir a
pena e a recompensa. Queria inefavelmente mergulhar o seu rosto nos flocos de
ouro daqueles cabelos eslavos, para fugir ao perigo da sua onipotência, num
remanso carinhoso e sagrado. Dominava-o um desejo irresistível de
humanizar-se, de perder-se nas suavidades do sentimento. E tanto gozava daquela
criatura divina, que experimentava já a invasão deliciosa das ardentes
meiguices de amor. Votava lhe tal adoração que se enternecia e sofria saudades
nas horas que não passava a seu lado. E mudamente, em seu cérebro, durante a
grande recepção, revolvia-se convulsamente esta exclamação torturante: “Ah! como as suas funções de monarca o privavam cruelmente
daqueles sagrados encantos!...”
Então, ainda
mais alheado de tudo, o seu espírito fugia, internando-se pelo lar, numa ânsia
de afeições.
O mundo que
o cercava, esse mundo ali prostrado a seus pés em contínuas oblações,
desaparecia então por momentos, como sob o nevoeiro dum sonho, e ele via-se já,
o grande Imperador, entre os gorjeios doces do ninho, cercado das crianças
louras, os filhos do seu amor, sentindo-lhes as mãozinhas carnudas baterem-lhe
o rosto, revolucionando-lhe a barba, sem brutalidade, sem cólera. Amava todas
essas ternuras, enlevado e comovido, aconchegando ao peito e beijando os
celestes querubins. Depois ia cair inebriado nos braços da sua Niwaia, que o
enlaçava na sua eterna paixão...
Em pouco a
solenidade terminaria e ele retomaria a sua feição humana, subindo, com o
coração palpitante, a escadaria dourada do seu castelo de amor...
Mas, de
repente, fez-se um palor no rosto do Tzar: seus olhos amorteceram,
extinguiram-se, e ele viu ao longe, no horizonte imenso das estepes nevadas,
uma multidão de homens vestidos de luto, que se aproximada com a rapidez de uma
Visão, e sentiu que uma bomba enorme de dinamite, abatendo-se a seus pés,
explodia, afogando-o em ondas de lava.
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