(Os Contos de Belazarte)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belazarte me contou:
Caso triste foi o que sucedeu lá
em casa mesmo... Eu sempre falo que a gente deve ser enérgico, nunca desanimar,
que se entregar é covardia, porém quando a coisa desanda mesmo não tem vontade,
não tem paciência que faça desgraça parar.
Um tempo andei mais endinheirado,
com emprego bom e inda por cima arranjando sempre uns biscates por aí, que me
deixavam viver à larga. Dinheiro faz cócega em bolso de brasileiro, enquanto
não se gasta não há meios de sossegar, pois imaginei ter um criado só pra mim.
Achava gostoso esses pedaços de cinema: o dono vai saindo, vem o criado com
chapéu e bengala na mão, “Prudêncio, hoje não boio em casa, querendo sair,
pode. ‘Té logo”. “’Té logo, seu Belazarte.”
Veio um criado mas eu não
simpatizava com ele não. Sei lá se percebeu? uma noite pediu a conta e dei
graças. Levei uns pares de dias assim, até que indo ver uns terrenos longe,
estava no mesmo banco do bonde um tiziu extraordinário de simpático. Que olhos
sossegados! você não imagina. Adoçavam tudo que nem verso de Rilke. Desci
matutando, vi os terrenos, peguei o bonde que voltava. Instinto é uma
curiosidade: quando o condutor veio cobrar a passagem e percebi que era o mesmo
da ida, tive a certeza que o negrinho havia de estar no carro. Olhei para trás,
pois não é que estava mesmo! Encontrei os olhos dele, dito e feito: senti uma
doçura por dentro uma calma lenta, pensei: está aí, disso é que você carece pra
criado. Mudei de banco e meio juruviá puxei conversa:
— Me diga uma coisa, você não
sabe por acaso de algum moço que queira ser meu criado? Mas quero brasileiro e
preto.
Riu manso, apalpando a vista com
a pálpebra. Me olhou, respondendo com voz silenciosa, essa mesma de gente que
não pensa nem viveu passado:
— Tem eu, sim senhor. O senhor
querendo...
— Eu, eu quero sim, por que não
havia de querer? Quanto você pede? Etc. E ele entrou pro meu serviço.
Quando indaguei o nome dele,
falou que chamava Ellis.
Ellis era preto, já disse... Mas
uma boniteza de pretura como nunca eu tinha visto assim. Como linhas até que
não era essas coisas, meio nhato, porém aquela cor elevava o meu criado a
tipo-de-beleza da raça tizia. Com dezenove anos sem nem um poucadico de barba,
a epiderme de Ellis era um esplendor. Não brilhava mas não brilhava nada mesmo!
Nem que ele estivesse trabalhando pesado, suor corria, ficava o risco da gota
feito rastinho de lesma e só. Bastava que lavasse a cara, pronto: voltava o
preto opaco outra vez. Era doce, aveludado o preto de Ellis... A gente se punha
matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde, mão que andou
todo o dia apertando passe-bem de muito branco emproado e filho-da-mãe. Ellis
trazia o cabelo sempre bem roçado, arredondando o coco. Pixaim fininho, tão
fofo que era ver piri de beira-rio. Beiço, não se percebia, negro também. Só
mesmo o olhar amarelado, cor de ólio de babosa, é que descansava no meio
daquela igualdade perfeita. E verdade que os dentes eram brancos, mas isso
raramente se enxergava, porque Ellis tinha um sorriso apenas entreaberto.
Estava muito igualado com o movimento da miséria pra andar mostrando gengiva a
cada passo. A gente tinha impressão de
que nada o espantava mais, e que Ellis via tudo preto, do mesmo preto exato da
epiderme.
Como criado, manda a justiça
contar que ele não foi inteiramente o que a gente está acostumado a chamar de
criado bom. Não é que fosse ruim não, porém tinha seus carnegões, moleza chegou
ali, parou. Limpava bem as coisas mas levava uma vida pra limpar esta janela. E
depois deu de sair muito, não tinha noite que ficasse em casa. Mas no sentido
de criado moral, Ellis foi sublime. De inteira confiança, discreto, e sobretudo
amigo. Quando eu asperejava com ele, escutava tudo num desaponto que só vendo.
Sei que eu desbaratava, ia desbaratando, ia ficando sem assunto pra desbaratar,
meio com dó daquele tão humilde que, a gente percebia, não tinha feito nada por
mal. Acabava sendo eu mesmo a discutir comigo:
— Sei bem que de tanto lavar copo
vem um dia em que um escapole da mão...
Está bom, veja se não quebra
mais, ouviu?
— Sei, seu Belazarte.
E ficava esperando, jururu que
fazia dó. Eu é que encafifava. Com aquele olho-de-pomba me seguindo, arrulhando
pelo meu corpo numa bulha penarosa de carinho batido, eu nem sabia o que fazer.
Pegava numa gravata, reparando que tinha pegado nela só pra gesticular, largava
da gravata, arranja cabelo, arranja não-sei-o-quê, acabava sempre descobrindo
poeira na roupa, uma mancha, qualquer coisa assim:
— Ellis, me limpe isto.
Ele vinha chegando meio encolhido
e limpava. Então olho-de-babosa pousava em minha justiça, tremendo:
— Está bom assim, seu Belazarte?
— Está. Pode ir.
Ia. Porém ficava rondando. Mesmo
que fosse lá no andar térreo trabalhar, me levava no pensamento, ia imaginando
um jeito de me agradar. E não tinha mais parada nos agradinhos discretos
enquanto eu não ria pra ele. Então gengiva aparecia. Quando chegava de noite já
sabe, vinha pedindo pra ir no cinema, eu tinha pena, deixava. E quantas vezes
ainda não acabei dando dinheiro pro cinema!
Nesse andar é lógico que eu mesmo
estava fazendo arte de ficar sem criado. Foi o que sucedeu. Ellis tomou conta
de mim duma vez. Piorar, piorou não, mas já estava difícil de dizer quem era o
criado de nós dois. Sim, porque, afinal das contas quem que é o criado? quem
serve ou quem não pode mais passar sem o serviço, digo mais, sem a companhia do
outro?
— Ellis, você já sabe ler?...
Uhm... acho que vou ensinar francês pra você, porque se um dia eu for pra
Europa, não vou sem você.
— Se seu Belazarte for, eu vou
também.
Sempre com o mesmo respeito. Às
vezes eu chegava em casa sorumbático, moído com a trabalheira do dia, Ellis não
falava nada, nem vinha com amolação, porém não arredava pé de mim, descobrindo
o que eu queria pra fazer. Foi uma dessas vezes que escutei ele falando no
portão pra um companheiro:
— Hoje não, seu Belazarte carece
de mim.
Até achei graça. E principiei
verificando que aquilo não tinha jeito mais, Ellis não trabalhava. Estava
tomando um lugar muito grande em minha vida. Pois então vamos fazer alguma
coisa pelo futuro dele, decidi. Entramos os dois numa explicação que me abateu,
por causa dos sentimentos desencontrados que me percorreram. Ellis me confessou
que pensava mesmo em ser chofer, mas não tinha dinheiro pra tirar a carta. Tive
ciúmes, palavra. Secretamente eu achava que ele devia só pensar em ser meu
criado. Mas venci o sentimento besta e falei que isso era o de menos, porque eu
emprestava os cobres. Só que não pude vencer a fraqueza e, com pretexto de
esclarecer, ajuntei:
— Você pense bem, decida e volte
me falar. Chofer é bom, dá bem, só que é ofício perigoso e já tem muito chofer
por aí.
Muitas vezes a gente imagina que faz um giro e faz mas é um jirau.
Enfim, tudo isso é com você. Já falei que ajudo, ajudo.
Foi então que ele me confessou
que precisava ganhar mais porque estava com vontade de casar.
— Ellis, mas que idade você tem,
Ellis!
— Dezanove, sim senhor.
— Puxa! e você já quer casar!
Deu aquele sorriso entreaberto,
sossegado:
— Gente pobre carece casar cedo,
seu Belazarte, senão vira que nem cachorro sem dono.
Não entendi logo a comparação.
Ellis esclareceu:
— Pois é: cachorro sem dono não
vive comendo lixo dos outros?... Meio que me despeitava também, isso do Ellis
gostar de mais outra pessoa que do patrão, porém já sei me livrar com
facilidade destes egoísmos. Perguntei quem era a moça.
— É tizia que nem eu mesmo, seu
Belazarte. Se chama Dora. Encabulou, tocando na namorada. Falei mais uma vez
pra ele pensar bem no que ia fazer e me comunicasse.
Dias depois ele veio:
— Seu Belazarte... andei
matutando no que o senhor me falou, semana atrás...
— Resolveu?
— Pois então a gente pode fazer
uma coisa: espero o dia-dos-anos do senhor e depois saio.
Tive um despeito machucando.
Decerto fui duro:
— Está bom, Ellis.
Não se mexeu. Depois de algum
tempo, muito baixinho:
— Seu Belazarte...
— O que é.
— Mas... seu Belazarte... eu
quero sair por bem da casa do senhor... até a Dora me falou que... me falou que
decerto o senhor aceitava ser nosso padrinho...
Custou ele falar de tanta
comoção. Olhei pra ele. O ólio de babosa destilava duas lágrimas negras no
pretume liso. Me comovi também.
— Sai por bem, é lógico! Não
tenho queixa nenhuma de você.
— Quando o senhor quiser alguma
coisa, me chame que eu venho fazer. O senhor foi muito bom para mim...
— Não fui bom, Ellis, fui como
devia porque você também foi direito.
Botei a mão no ombro dele pra
sossegar o comovido soluçante, estava engasgado, o pobre!... Sem se esperar,
rápido, virou a cara de lado, encolheu o ombro, beijou minha mão, partiu
fechando a porta.
Já me sentava outra vez, pensando
naquele beijo que fazia a minha mão tão recompensada por toda a humanidade, a
porta abriu de leve. E ele, não se mostrando:
— Seu Belazarte, o senhor não
falou que aceitava...
Até me ri.
— Aceito, Ellis! Quando que você
casa?
— Se arranjar licença logo, caso
no 8 de dezembro, sim senhor, dia da Virgem Maria.
Não me logrou, porém logrou a
Virgem Maria. Saiu de casa dias depois do meu aniversário, e nem bem dona
República fez anos, casou com a Dora, num dia claro que parecia querer durar a
vida inteira. Cheguei do casamento com uma felicidade artística dentro de mim.
Você não imagina que coisa mais bonita Ellis e Dora juntos! Mulatinha lisa,
lisa, cor de ouro, isto é, cor de ólio de babosa, cor dos olhos de Ellis! E nos
olhos então todo esse pretume impossível que o medo põe na cor do mato à noite.
Você decerto que já reparou: a gente vê uns olhos de menina boa e jura:
“Palavra que nunca vi olho tão preto”, vai ver? quando muito olho é cor de fumo
de Mapingui. É o receio da gente que bota escureza temível nos olhos desses
nossos pecados... Que gostosa a Dora!
Era uma pretarana de cabelo
acolchoado e corpo de potranquinha independente. Tinha um jeito de não-querer,
muito fiteiro, um dengue meio fatigado oscilando na brisa, tinha uma fineza de
S espichado, que fazia ela parecer maior do que era, uma graça flexível... Nem
sei bem o que é que o corpo dela tinha, só sei que espantava tanto o desejo da
gente, que desejo ficava de boca aberta, extasiado, sem gesto, deixando
respeitosamente ela passar por entre toda a cristandade... Dora linda!
Ellis desapareceu uns meses e me
esqueci dele. A vida é tão bondosa que nunca senti falta de ninguém.
Reapareceu. Foi engraçado até. Me levantei tarde, desci pra beber meu mate,
Ellis no hol, encerando.
— Bom-dia, seu Belazarte.
— Ué! que que você está fazendo
aqui!
— Dona Mariquinha me chamou pra
limpar a casa.
— Mas você não está trabalhando
então!
— Trabalho, sim senhor, mas a
vida anda mesmo dura, seu Belazarte, a gente carece de ir pegando o que acha.
A fúria de casar borrara os
sonhos do chofer. Vivia de pedreiro. Mamãe encontrou com ele e se lembrou de
dar esse dinheiro semanal pro mendigo quase. Um Ellis esmolambado, todo sujo de
cal. Dora andava com muito enjoo, coisa do filho vindo. Não trabalhava mais.
Ellis com pouco serviço. Estava magro e bem mais feio. De repente uma semana
não apareceu. Que é, que não é, afinal veio uma conhecida contar que Ellis
tinha adoecido de resfriado, estava tossindo muito, aparecendo uns caroços do
lado da cara. Quando vi ele até assustei, era um caroção medonho, parecendo
abscesso. Foi no dentista, não sei... dentista andou engambelando Ellis um sem-fim
de tempo, começou aparecendo novo caroço do outro lado da cara. Mamãe imaginou
que era anemia. Mandamos Ellis no médico de casa, com recomendação. Resultado:
estava fraquíssimo do peito e se não tomasse cuidado, bom!
Calvário começou. Ele não sabia
bem o que havia de fazer, eu também não podia estar recolhendo dois em casa.
Inda mais doentes! Vacas magras também estavam pastando no meu campo nesse
tempo... Foi uma tristeza. Ellis andou de cá pra lá, fazendo tudo e não fazendo
nada. Mandou buscar a mãe, que vivia numa chacrinha emprestada em Botucatu,
foram morar todos juntos na lonjura da Casa Verde, diz que pra criar galinha e
por causa do ar bom. Não arranjaram nada com as galinhas nem com os ares.
Vieram pra cidade outra vez. Foram morar perto de casa, num porão, depois eu vi
o porão, que coisa! Todos morando no buraco de tatu, Ellis, Dora, a mãe dele e
mais dois gafanhotinhos concebidos de passagem.
Ellis voltara pra pedreiro,
encerava nossa casa e outras que arranjamos, andou consertando esgotos, depois
na Companhia de Gás... Não tinha parada, emagrecendo, não se descobriu remédio
que acabasse inteiramente com os caroços.
Meio rindo, meio sério, nem eram
bem sete da manhã, um dia apareceu contando que era pai. Vinha participar e:
— Seu Belazarte, vinha também
saber se o senhor queria ser padrinho do tiziu, o senhor já está servindo de
meu tudo mesmo.
Falei que sim, meio sem gostar
nem desgostar, estava já me acostumando. Dei vinte mil-réis. Mamãe, que era a
madrinha, andou indo lá no porão deles, arranjando roupas de lã pro
desgraçadinho novo.
Nem semana depois, chego em casa
e mamãe me conta que Dora tinha adoecido. Pedi pra ela ir lá outra vez, ela
foi. Mandamos médico. Dora piorou do dia pra noite, e morreu quem a gente menos
imaginava que morresse. Número um.
Agora sim, e a criança? É verdade
que a mãe do Ellis tinha inda filho de peito, desmamou o safadinho que já
estava errando língua portuguesa, e o leite dela foi mudando de porão.
O dia do batizado, sofri um
desses desgostos, fatigantes pra mim que vivo reparando nas coisas. Primeiro
quis que o menino se chamasse Benedito, nome abençoado de todos os escravos
sinceros, porém a mãe do Ellis resmungou que a gente não devia desrespeitar
vontade de morto, que Dora queria que o filho chamasse Armando ou Luís Carlos.
Então pus autoridade na questão e cedendo um pouco também, acabamos carimbando
o desgraçadinho com o título de Luís.
Havia muita lembrança de Dora
naquilo tudo, há só dois dias que ela adormecera. Fizemos logo o batizado porque
o menino estava muito aniquiladinho.
Engraçado o Ellis... Até hoje não
me arrisco a entender bem qual era o sentimento dele pela Dora. Quando veio me
comunicar a morte da pobre, até parecia que eu gostava mais dela, com este meu
jeito de ficar logo num pasmo danado, sucedendo coisa triste.
— Dora morreu, seu Belazarte.
— Morreu, Ellis!
Nem posto explicar com quanto
sentimento gritei. Ellis também não estava sossegado não, mas parecia mais
incapacidade de sofrer que tristeza verdadeira. O amarelão dos olhos ficara
rodeado dum branco vazio. Dora ia fazer falta física pra ele, como é que havia
de ser agora com os desejos? Isso é que está me parecendo foi o sofrimento
perguntado do Ellis. E pra decidir duma vez a indecisão, ele vinha pra mim cuja
amizade compensava. E seria mesmo por amizade? Aqui nem a gente pode saber
mais, de tanto que os interesses se misturavam no gesto, e determinavam a fuga
de Ellis pra junto de mim. Eu era amigo dele, não tinha dúvida, porém numa
ocasião como aquela não é muito de amigo que a gente precisa não, é mais de
pessoa que saiba as coisas. Eu sabia as coisas, e havia de arranjar um jeito de
acomodar a interrogação.
...e quem diz que na amizade
também não existe esse interesse de ajutório?... Existe, só que mais bonito que
no amor, porque interesse está longe do corpo, é mistério da vida silenciosa
espiritual.
Depois, amor... É inútil os
pernósticos estarem inventando coisas atrapalhadas pra encherem o amor de
trezentas auroras-boreais ou caem no domínio da amizade, que também pode
existir entre bigode e seios, ou então principiam sutilizando os gestos físicos
do amor, caem na bandalheira. Observando, feito eu, amor de sem-educação, a
gente percebe mesmo que nele não tem metafísica: uma escolha proveniente do
sentimento que a babosa recebe dum corpo estranho, e em seguida furrum-fum-fum.
A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas tudo o que
existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudada nele. Amor
quando enxerga defeito no objeto amado, cega: “Não faz mal!” Mas o amigo sente:
“Eu perdoo você.” Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si
mesmo, coisa humana profundamente, que faz a gente viver duplicado, se
repartindo num casal de espíritos amantes que vão, feito passarinhos de voo
baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele...
Dora era corpo só. E uma bondade
inconsciente. Eu não tinha corpo mas era protetor. E principalmente era o que
sabia as coisas. Desta vez amor não se uniu com amizade: o amor foi pra Dora, a
amizade pra mim. Natural que o Ellis procedesse dessa forma, sendo um frouxo.
Batizado fatigante. Não paga a
pena a gente imaginar que todos somos iguais, besteira! Mamãe, por causa da
muita religião, imagina que somos. Inventou de convidar Ellis, mãe e tutti
quanti pra comer um doce em nossa casa, vieram. Foi um ridículo oprimente pra
nós os superiores, e deprimente pra eles os desinfelizes. Estavam esquerdos,
cheios de mãos, não sabendo pegar na xicra. E eu então! Qualquer gesto que a
gente faz, pegar no pão, na bolacha, pronto: já é diferente por classe da
maneira, igualzinha muitas vezes, com que o pobre pega nessas coisas. Parece
lição. A gente fica temendo rebaixar o outro e também já não sabe pegar na
xicra mais. Custei pra inventar umas frases engraçadas, depois reparei que não
tinham graça nenhuma por causa da Dora se dependurando nelas, não deixando a
graça rir. De repente fui-me embora.
Não levou nem semana, o
desgraçadinho pegou mirrando mais, mirrando e esticou. Número dois.
Ellis nem pôde tratar do enterro.
Não é que estivesse penando muito, mas o caroço tinha dado de crescer no lado
esquerdo agora. Na véspera tivera uma vertigem, ninguém sabe por que, junto do
filho morrendo. Foi pra cama com febrão de quarenta-e-um no corpo tremido.
Era a tuberculose galopante que,
sem nenhum respeito pelas regras da cidade, estava fazendo cento-e-vinte por
hora na raia daquele peito apertado. Quando Ellis soube, virou meu filho duma
vez. Mandava contar tudo pra mim. Mas não sei por que delicadeza sublime, por
que invenção de amizade, descobriu que não me dou bem com a tísica. O certo é
que nunca me mandou pedir pra ir vê-lo. Fui. Fui, também uma vez só, de
passagem, falando que estava na hora de ir pro trabalho. Mas não deixei faltar
nada pra ele. Nada do que eu podia dar, está claro, leite de vacas magras.
Durou três meses, nem isso, onze
semanas em que me parece foi feliz. Sim, porque virara criança, e talvez pela
primeira vez na vida, inventava essas pequenas faceirices com que a gente
negaceia o amor daqueles por quem se sabe amado. Mantimento, remédios, roupa,
tudo minha mãe é que providenciava pra ele, conforme desejo meu. Pois de supetão
vinha um pedido engraçado, que Ellis queria comer sopa da minha casa, que se eu
não podia mandar pra ele uma meia igualzinha àquela que usara no batizado do
desgraçadinho, com lista amarela, outra roxa até em cima... Uma feita mandou
pedir de emprestado a almofada que eu tinha no meu estúdio e que, ele mandou
dizer, até já estava bem velha. E lógico que almofada foi, porém dadinha duma
vez.
Da minha parte era tudo agora
gestos mecânicos de protetor, meu Deus! como a vida esperada se mecaniza... Não
sei... Ellis creio que não, mas eu já fazia muito que estava acostumado a
sentir Ellis morto. E aquela espera da morte já pra mim era bem uma morte
longa, um andar na gandaia dentro da morte, que não me dava mais que uma
saudade cômoda do passado. Era amigo dele, juro, mas Ellis estava morto, e com
a morte não se tem direito de contar na vida viva. Ele, isso eu soube depois,
ele sim, estava vivendo essa morte já chegada, numa contemplação sublime do
passado, única realidade pra ele. Dora tinha sido uma função. A vida prática
não fora senão comer, dormir, trabalhar. No que se agarraria aquele morto em
férias? Em mim, é lógico. Isso eu soube depois...
Levava o dia falando no amigo,
pensando no amigo. E todas aquelas faceirices de pedidos e vontadinhas de
criança, não passavam de jeitos de se recordar mais objetivamente de mim. De se
aproximar de mim, que não ia vê-lo.
Cheguei em casa pra almoçar, a
mãe do Ellis viera dizer que ele estava me chamando, não gostei nada. Se agora
ele principiava pedindo mais isso, eu que tenho um bruto horror de tísica...
Enfim mandei a criada lá, que depois do almoço ia.
Quando cheguei na porta, os uivos
da mãe dele me deram a notícia inesperada. Sim, inesperada, porque já estava
acostumado a ficar esperando e perdera a noção de que o esperado havia mesmo de
vir. Entrei. Estavam uma italianona vermelha de tanto choro por tabela e dois
tizius fumando.
— Morreu!
— Ahm, su Beladzarte, tanto que o
povero está chamando o sinhore!
— Mas já morreu, é!
— Que esperandza! desde
manhãzinha está cham...
— Onde ele está?
Um dos tizius.
— Está lá dentro, sim senhor.
Jogou o cigarro e foi mostrando
caminho. Segui atrás. Pulei por cima dos uivos saindo duma furna que nunca viu
dia, e lá numa sala mais larga, com entrada em arco sem porta dando pro quintal
interior, num canto invisível, chorava uma vela, era ali. Ellis vasquejava com
as borlas dos caroços dependurados pros lados, medonho de magro. Estava
morrendo desde manhã, sempre chamando por mim.
— Mas por que não me avisaram!
Eram não sei quantas vezes que
agarravam a vela nas mãos dele já em cruz, pra sempre fantasiadas de morte. De
repente soluço parava. O moribundo engolia em seco e pegava me chamando outra
vez. Afinal parara de chamar fazia mais de hora. Parece que a coisa estava
chegando. Falei baixo, sem querer, me acomodando com o silêncio da morte:
— Ellis... ôh Ellis!
Nada. Só o respiro serrando na
madeira seca da garganta. Os outros me olhavam, esperando o bem que eu ia fazer
pro coitado. Até parecia que o importante ali era eu. Insisti, lutando com a
amizade da morte, mais uniforme que a minha. Com mentira e tudo, até me parece
que eu insistia mais pra vencer a predominância da morte, e aqueles assistentes
não me verem perder numa luta. Botei a mão na testa morna de Ellis, havia de me
sentir.
— Ellis! sou eu, Ellis!...
Sossegue que já cheguei, ouviu! Estou juntinho de você, ouviu!... Ellis!
O soluço parou.
— Pronto! Ansim que está
fatchendo desde de manhán, ô povero!,.. Tira áa vela, Maria!
— Deixe a vela, ôh Ellis!
Ellis abriu as pálpebras,
principiou abrindo, parecia que não parava mais de as abrir. Ficaram escancaradas,
mas ólio de babosa não vê que escorrendo mais! pupilas fixas, retas, frechando
o teto preto. Pus minha cara onde elas me focalizassem.
— Estou aqui, Ellis! Não tenha
medo! você está me enxergando, hein!
— Está sim, seu Belazarte. Viu!
desde manhã que está de olho fechado. Ele queria muito be... bem o senhor!
também... também o senhor tem sido muito bom pro coitado... de meu filho,
ai!... aaai! meu filho está morrendo, ahn! ahn! ahn!...
— Ellis! você está precisando de
alguma coisa, hein! Eu faço!
A gelatina me recebia sem
brilhar. As pálpebras foram cerrando um bocado.
Instintivamente apressei a fala,
pra que os olhos inda recebessem meu carinho:
— Eu faço tudo pra você! não
quero que te falte nada, ouviu bem! Os olhos se esconderam de todo com muita
calma.
— Meu filho morreu! ai, ai!...
Aaai!...
Tive um momento de desespero
porque Ellis não dava sinal de me sentir. Insisti mais, ajoelhando junto da
cama.
— Ora, o que é isso, Ellis!... — ahan... só falava no senhor,
ahn... ontem mesmo disse pra mim, ahan, que, ahn, melhorando cavava um poço...
fundo, aáin... pra enterrar todos os mi... micróbios pra despois, pedir pra
morar, ahn... no porão da casa do senhor... aai!
— Levem ela! não vale a pena ele
estar escutando esse choro!
Transportaram os uivos. Estaria
escutando ainda? Insisti numa esperança exacerbada pela anedota da negra, sem
querer, perverso, voz pura, doce de carícia:
— Ellis! você não me responde
mesmo! Abriu um pouco os olhos outra vez. Me via!
...foi tão humilde que nem teve o
egoísmo de sustentar contra mim a indiferença da morte. O olhar dele teve uma
palpitação franca pra mim. Ellis me obedecia ainda com esse olhar. Fosse por
amizade, fosse por servilismo, obedeceu. Isso me fez confundir
extraordinariamente com os manejos da vida, a morte dele.
Desapareceu mistério, fatalidade,
tudo o que havia de grandioso nela. Foi uma morte familiar. Foi uma morte
nossa, entre amigos, direitinho aquele dia em que resolvemos, meu aniversário
passado, ele ir buscar o casamento e a choferagem de ganhar mais.
Cerrava os olhos calmo. Pesei a
mão no corpo dele pra que me sentisse bem. Ao menos assim, Ellis ficava seguro
de que tinha ao pé dele o amigo que sabia as coisas. Então não o deixaria
sofrer. Porque sabia as coisas...
Número três.
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