Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO
1
Deixa-te de partes, Eusébio; vamos embora;
isto não é bonito. Cirila...
— Já lhe disse o que tenho de dizer, tio
João, respondeu Eusébio. Não estou disposto a tornar à vida de outro tempo.
Deixem-me cá no meu canto. Cirila que fique...
— Mas, enfim, ela não te fez nada.
— Nem eu digo isso. Não me fez coisa nenhuma;
mas... para que repeti-lo? Não posso aturá-la.
— Virgem Santíssima! Uma moça tão sossegada!
Você não pode aturar uma moça, que é até boa demais?
—Pois, sim; eu é que sou mau; mas deixem-me.
Dizendo isto, Eusébio caminhou para a janela,
e ficou olhando para fora. Dentro, o tio João, sentado, fazia circular o chapéu-de-chile
no joelho, fitando o chão com um ar aborrecido e irritado. Tinha vindo na
véspera, e parece que com a certeza de voltar à fazenda levando o prófugo
Eusébio. Nada tentou durante a noite, nem antes do almoço. Almoçaram;
preparou-se para dar uma volta na cidade, e, antes de sair, meteu ombros ao
negócio. Vã tentativa! Eusébio disse que não, e repetiu que não, à tarde, e no
dia seguinte. O tio João chegou a ameaçá-lo com a presença de Cirila; mas a
ameaça não surtiu melhor efeito, porque Eusébio declarou positivamente que, se
tal sucedesse, então é que ele faria coisa pior. Não disse o que era, nem era
fácil achar coisa pior do que o abandono da mulher, a não ser o suicídio ou o
assassinato; mas vamos ver que nenhuma destas hipóteses era sequer imaginável.
Não obstante, o tio João teve medo do pior, pela energia do sobrinho, e
resignou-se a tornar à fazenda sem ele.
De noite, falaram mansamente da fazenda e de
outros negócios de Piraí; falaram também da guerra, e da batalha de Curuzu, em
que Eusébio entrara, e donde saíra sem ferimentos, adoecendo dias depois. De
manhã, despediram-se; Eusébio deu muitas lembranças para a mulher, mandou-lhe
mesmo alguns presentes, trazidos de propósito de Buenos Aires, e não se falou
mais na volta.
— Agora, até quando?
— Não sei; pretendo embarcar daqui a um mês
ou três semanas, e depois, não sei; só quando a guerra acabar.
CAPÍTULO
2
Há uma porção de coisas que estão patentes ou
se deduzem do capítulo anterior. Eusébio abandonou a mulher, foi para a guerra
do Paraguai, veio ao Rio de Janeiro, nos fins de 1866, doente, com licença.
Volta para a campanha. Não odeia a mulher, tanto que lhe manda lembranças e
presentes. O que se não pode deduzir tão claramente é que Eusébio é capitão de
voluntários; é capitão, tendo ido tenente; portanto, subiu de posto, e, na
conversa com o tio, prometeu voltar coronel.
Agora, por que motivo, sendo a mulher tão
boa, e, não a odiando ele, pois que lhe remete uns mimos, comprados para ela,
de propósito, não aqui, mas já em Buenos Aires, por que motivo, digo eu,
resiste o Capitão Eusébio à proposta de vir ver Cirila? That is the rub. Eis aí justamente o ponto intrincado. A imaginação
perde-se em um mar de conjeturas, sem achar nunca o porto da verdade, ou pelo
menos, a angra da verossimilhança. Não; há uma angra; parece-me que o leitor
sagaz, não atinando com outro motivo, recorre à incompatibilidade de gênio,
único modo de explicar este capitão, que manda presentes à consorte, e a
repele.
Sim e não. A questão reduz-se a uma troca de
datas. Troca de datas? Mas... Sim, senhor, troca de datas, uma cláusula
psicológica e sentimental, uma coisa que o leitor não entende, nem entenderá se
se não der ao trabalho de ler este escrito.
Em primeiro lugar, fique sabendo que o nosso
Eusébio nasceu em 1842; está com vinte e quatro anos, depois da batalha de
Curuzu. Foi criado por um pai severo e uma mãe severíssima. A mãe faleceu em
1854; em 1862 o pai determinou casá-lo com a filha de um correligionário
político, isto é, conservador, ou, para falar a linguagem do tempo e do lugar,
saquarema. Essa moça é D. Cirila. Segundo todas as versões, até de adversários,
D. Cirila era a primeira beleza da província, fruta da roça, não da corte,
aonde já viera duas ou três vezes, — fruta agreste e sadia. “Parece uma santa!”
era o modo de exprimir a admiração dos que olhavam para ela; era assim que
definiam a serenidade da fisionomia e a mansidão dos olhos. Da alma podia
dizer-se a mesma coisa, uma criatura plácida, parecia cheia de paciência e
doçura.
Saiba agora, em segundo lugar, que o nosso
Eusébio não criticou a escolha do pai, aprovou-a, gostou da noiva logo que a
viu. Ela também; ao alvoroço da virgem acresceu a simpatia que Eusébio lhe
inspirou, mas uma e outra coisa, alvoroço e simpatia, não foram extraordinários,
não subiram de certa medida escassa, compatível com a natureza de Cirila.
Com efeito, Cirila era apática. Nascera para
as funções angélicas, servir ao Senhor, cantar nos coros divinos, com a sua voz
fraca e melodiosa, mas sem calor, nem arrebatamentos. Eusébio não lhe viu senão
os olhos, que eram, como digo, bonitos, e a boca fresca e bem rasgada; aceitou
a noiva, e casaram-se daí a um mês.
A opinião de toda a gente foi unânime. — Um
rapagão! diziam consigo as damas. E os rapazes: — Uma linda pequena! A opinião
foi que o casamento não podia ser mais acertado e, portanto, devia ser
felicíssimo. Pouco tempo depois de casados, morreu o pai de Eusébio; este
convidou o tio a tomar conta da fazenda, e deixou-se ali ficar ao pé da mulher.
São dois pombinhos, dizia o tio João aos amigos. E enganava-se. Era uma pomba e
um gavião.
Dentro de quatro meses, as duas naturezas tão
opostas achavam-se divorciadas. Eusébio tinha as paixões enérgicas, tanto mais
enérgicas quanto que a educação as comprimira. Para ele o amor devia ser
vulcânico, uma fusão de duas naturezas impetuosas; uma torrente em suma, figura
excelente, que me permite o contraste do lago quieto. O lago era Cirila. Cirila
era incapaz de paixões grandes, nem boas nem más; tinha a sensibilidade curta, e
afeição moderada, quase nenhuma, antes obediência do que impulso, mais
conformidade que arrojo. Não contradizia nada, mas também não exigia nada.
Provavelmente, não teria ciúmes. Eusébio disse consigo que a mulher era um
cadáver, e, lembrando-se do Eurico, emendou-lhe uma frase: — Ninguém vive atado
a um cadáver, disse ele.
Três meses depois, deixou ele a mulher e a
fazenda, tendo assinado todas as procurações necessárias. A razão dada foi a
guerra do Paraguai; e, com efeito, ele ofereceu os seus serviços ao governo;
mas não há inconveniente que uma razão nasça com outra, ao lado, ou dentro de
si mesma. A verdade é que, na ocasião em que ele resolvia ir para a campanha,
deliciava os habitantes do Piraí uma companhia de cavalinhos na qual uma certa
dama, rija, de olhos negros e quentes, fazia maravilhas no trapézio e na
corrida em pelo. Chamava-se Rosita; e era oriental. Eusébio assinou com essa
representante da república vizinha um tratado de perpétua aliança, que durou
dois meses. Foi depois do rompimento que Eusébio, tendo provado o vinho dos
fortes, determinou deixar a água simples de casa. Não queria fazer as coisas
com escândalo, e adotou o pretexto marcial. Cirila ouviu a notícia com
tristeza, mas sem tumulto. Estava fazendo crivo; parou, fitou-o, parece que com
os olhos um tanto úmidos, mas sem nenhum soluço e até nenhuma lágrima.
Levantou-se e foi cuidar da bagagem. Creio que é tempo de acabar este capítulo.
CAPÍTULO
3
Como não é intenção do escrito contar a
guerra, nem o papel que lá fez o Capitão Eusébio, corramos depressa ao fim, no
mês de outubro de 1870, em que o batalhão de Eusébio voltou ao Rio de Janeiro,
vindo ele major, e trazendo ao peito duas medalhas e dois oficialatos: um
bravo. A gente que nas ruas e das janelas via passar os galhardos vencedores
era muita, luzida e diversa. Não admira, se no meio de tal confusão o nosso
Eusébio não viu a mulher. Era ela, entretanto, que estava debruçada da janela
de uma casa da Rua Primeiro de Março, com algumas parentas e amigas, e o
infalível tio João.
— Olha, Cirila, olha, lá vem ele, dizia o bom
roceiro.
Cirila baixou os olhos ao marido. Não o achou
mudado, senão para melhor: pareceu-lhe mais robusto, mais gordo; além disso,
tinha o ar marcial, que acentuava a figura. Não o tendo visto desde cinco anos,
era natural que a comoção fosse forte, e algumas amigas, receosas, olhavam para
ela. Mas Cirila não desmaiou, não se alvoroçou. O rosto ficou sereno como era.
Fitou Eusébio, é verdade, mas não muito tempo, e, em todo caso, como se ele
tivesse saído daqui na semana anterior. O batalhão passou; o tio João saiu para
ir esperar o sobrinho no quartel.
— Ora, vem cá, meu rapaz!
— Oh! tio João!
— Voltas cheio de glória! exclamou o tio João
depois de o abraçar apertadamente.
— Parece-lhe?
— Pois então! Lemos tudo o que saiu nas
folhas; você brilhou... Há de contar-nos isso depois. Cirila está na corte...
— Ah!
— Estamos em casa do Soares Martins.
Não se pode dizer que ele recebeu a notícia
com desgosto: mas também não se pode afirmar que com prazer; indiferente, é
verdade, indiferente e frio. A entrevista não foi mais alvoroçada; ambos
apertaram as mãos com um ar de pessoas que se estimam sem intimidade. Três dias
depois, Cirila voltava para a roça, e o Major Eusébio deixava-se ficar na
corte.
Já o fato de ficar é muito; mas, não se
limitou a isso. Eusébio estava namorado de uma dama de Buenos Aires, que
prometera vir ter com ele ao Rio de Janeiro. Não acreditando que ela cumprisse
a palavra, preparou-se para tornar ao Rio da Prata, quando ela aqui aportou,
quinze dias depois. Chamava-se Dolores, e era realmente bela, um belo tipo de
argentina. Eusébio amava-a loucamente, ela não o amava de outro modo; ambos
formavam um par de doidos.
Eusébio alugou casa na Tijuca, onde foram
viver os dois, como um casal de águias. Os moradores do lugar contavam que eles
eram um modelo de costumes e outro modelo de afeição. Com efeito, não davam
escândalo e amavam-se com o ardor, a tenacidade e o exclusivismo das grandes
paixões. Passeavam juntos, conversavam de si e do céu; ele deixava de ir à
cidade três, cinco, seis dias, e quando ia era para se demorar o tempo
estritamente necessário. Perto da hora de voltar, via-se a bela Dolores
esperá-lo ansiosa à janela, ou ao portão. Um dia a demora foi além dos limites
do costume; eram cinco horas da tarde, e nada; deram seis, sete, nem sombra de
Eusébio. Ela não podia ter-se; ia de um ponto para outro, interrogava os
criados, mandava um deles ver se aparecia o patrão. Não chorava, tinha os olhos
secos, ardentes. Enfim, perto de oito horas, apareceu Eusébio. Vinha
esbaforido; tinha ido à casa do Ministro da Guerra, onde o oficial do gabinete
lhe disse que sua excelência desejava falar-lhe, nesse mesmo dia. Voltou lá às
quatro horas; não o achou, esperou-o até às cinco, até às seis; só às seis e
meia é que o ministro voltou da Câmara, onde a discussão lhe tomara o tempo.
Ao jantar, contou Eusébio que o motivo da
entrevista com o Ministro da Guerra fora um emprego que ele pedira, e que o
ministro, não podendo dar-lho, trocara por outro. Eusébio aceitou; era para o
Norte, na província do Pará...
— No Pará?! interrompeu Dolores.
— Sim. Que tem?
Dolores refletiu um instante; depois disse
que ele fazia muito bem aceitando, mas que ela não iria; receava os calores da
província, tinha lá perdido uma amiga; provavelmente, voltava a Buenos Aires. O
pobre major não pôde acabar de comer; instou com ela, mostrou-lhe que o clima
era excelente, e que as amigas podiam morrer em qualquer parte. Mas a argentina
abanou a cabeça. Sinceramente, não queria.
No dia seguinte, Eusébio desceu outra vez
para pedir dispensa ao ministro, e rogar-lhe que o desculpasse, porque um
motivo súbito, um incidente... Regressou à Tijuca, dispensado e triste; mas os
olhos de Dolores curaram-lhe a tristeza em menos de um minuto.
— Já lá vai o Pará, disse ele alegremente.
— Sim?
Dolores agradeceu-lhe o sacrifício com um
afago; abraçaram-se amorosos, como no primeiro dia. Eusébio estava contente com
ter cedido; não advertiu que, se ele insistisse, Dolores embarcaria também. Ela
não fez mais do que exercer a influência que tinha, para se não remover da
capital; mas, assim como Eusébio sacrificou por ela o emprego, assim Dolores
sacrificaria por ele o repouso. O que ambos queriam principalmente era não se
separarem nunca.
Dois meses depois, veio a quadra dos ciúmes.
Eusébio desconfiou de Dolores, Dolores desconfiou de Eusébio, e as tempestades
desencadearam-se sobre a casa como o pampeiro do Sul. Diziam um ao outro coisas
duras, algumas ignóbeis; Dolores arremetia contra ele, Eusébio contra ela;
espancavam-se e amavam-se. A opinião do lugar chegava ao extremo de dizer que
eles se amavam melhor depois de espancados.
— São sistemas! murmurava um comerciante
inglês.
Assim se passou metade do ano de 1871. No
princípio de agosto, recebeu Eusébio uma carta do tio João, que lhe dava
notícia de que a mulher estava doente de cama, e queria falar-lhe. Eusébio
mostrou a carta a Dolores. Não havia remédio senão ir; prometeu voltar logo...
Dolores pareceu consentir, ou deveras consentiu na ocasião; mas duas horas
depois, foi ter com ele, e ponderou-lhe que não se tratava de moléstia grave,
se não o tio o diria na carta; provavelmente, era para tratar dos negócios da
fazenda.
— Se não é tudo mentira, acrescentou ela.
Eusébio não tinha advertido na possibilidade
de um invento, com o fim de o arrancar aos braços da bela Dolores, concordou
que podia ser isso, e resolveu escrever. Escreveu com efeito, dizendo que por
negócios urgentes não podia ir logo; mas que desejava saber tudo o que havia,
não só a respeito da moléstia de Cirila, como dos negócios da fazenda. A carta
era um modelo de hipocrisia. Foram com ela uns presentes para a mulher.
Não veio resposta. O tio João, indignado, não
lhe respondeu nada. Cirila estava deveras doente, e a doença não era grave, nem
foi longa; nada soube da carta, na ocasião; mas, quando ela se restabeleceu o
tio disse-lhe tudo, ao dar-lhe os presentes que Eusébio lhe mandara.
— Não contes mais com teu marido, concluiu
ele; é um pelintra, um sem-vergonha...
— Oh! tio João! repreendeu Cirila.
— Você ainda toma as dores por ele?
— Isto não é tomar as dores...
— Você é uma tola! bradou o tio João.
Cirila não disse que não; também não disse
que sim; não disse nada. Olhou para o ar, e foi dar umas ordens da cozinha.
Para ser exato e minucioso, é preciso dizer que, durante o trajeto, Cirila
pensou no marido; na cozinha, porém, só pensou na cozinheira. As ordens que deu
saíram-lhe da boca, sem alteração de voz; e, lendo daí a pouco a carta do
marido ao tio, fê-lo com saudade, é possível, mas sem indignação nem desespero.
Há quem afirme que uma certa lágrima lhe caiu dos olhos no papel; mas se
deveras caiu, não foi mais de uma; em todo caso, não chegou a apagar nenhuma
letra, porque caiu na margem, e Eusébio escrevia com margens grandes todas as
suas cartas...
CAPÍTULO
4
Dolores acabou. O que é que não acaba? Acabou
Dolores poucos meses depois da carta de Eusébio à mulher, não morrendo, mas
fugindo para Buenos Aires com um patrício. Eusébio padeceu muito, e resolveu
matar os dois, — ou, pelo menos, arrebatar a amante ao rival. Um incidente
obstou a esse desastre.
Eusébio vinha do escritório da companhia de
paquetes, onde fora tratar da passagem, quando sucedeu um desastre na Rua do
Rosário perto do Beco das Cancelas: — um carro foi de encontro a uma carroça, e
quebrou-a. Eusébio, apesar das preocupações de outra espécie, não pôde conter o
movimento que tinha sempre em tais ocasiões para ir saber o que era, a extensão
do desastre, a culpa do cocheiro, para chamar a polícia, etc. Correu ao lugar;
achou dentro do carro uma senhora, moça e bonita. Ajudou-a a sair, levou-a para
uma casa, e não a deixou sem lhe prestar outros pequenos serviços; finalmente,
deu-se como testemunha nas indagações policiais. Este último obséquio foi já um
pouco interesseiro; a senhora deixara-lhe n’alma uma deliciosa impressão. Soube
que era viúva, fez-se encontradiço, e amaram-se. Quando ele confessou que era
casado, D. Jesuína, que este era o nome dela, não pôde reter um dilúvio de lágrimas...
Mas amavam-se, e amaram-se. A paixão durou um ano e mais, e não acabou por
culpa dela, mas dele, cuja violência não raras vezes trazia atrás de si o
fastio. D. Jesuína chorou muito, arrependeu-se; mas o fastio de Eusébio era
completo.
Esquecidas as duas, aliás as três damas,
porque é preciso contar a do circo, parecia que Eusébio ia voltar à fazenda e
restituir-se à família. Não pensou em tal coisa. A corte seduzia-o; a vida
solta entrara-lhe no sangue. Correspondia-se com a mulher e com o tio, mandava-lhes
presentinhos e lembranças, chegara mesmo a anunciar que iria para casa daí a
uma semana ou duas, pelo São João, pela Glória, mas ia-se deixando ficar.
Enfim, um dia, ao mês de dezembro, chegou a preparar-se deveras, embora lhe
custasse muito, mas um namoro novo o dissuadiu, e ele ficou outra vez.
Eusébio frequentava assiduamente os teatros,
era doido por francesas e italianas, fazia verdadeiros desatinos, mas como era
também feliz, os desatinos ficavam largamente compensados. As paixões eram enérgicas
e infrenes; ele não podia resistir-lhes, não chegava mesmo a tentá-lo.
Cirila foi-se acostumando a viver separada.
Afinal convenceu-se de que entre um e outro o destino ou a natureza cavara um
abismo, e deixou-se estar na fazenda, com o tio João. O tio João concordava com
a sobrinha.
— Tem razão, dizia ele; vocês não nasceram um
para o outro. São dois gênios contrários. Veja o que são às vezes os
casamentos. Mas eu também tenho culpa, porque aprovei tudo.
— Ninguém podia adivinhar, tio João.
— Isso é verdade. E você ainda tem
esperanças?
— De quê?
— De que ele volte?
— Nenhuma.
E, de fato, não esperava nada. Mas
escrevia-lhe sempre, — brandamente afetuosa, sem lágrimas, nem queixumes, nem
pedido para voltar; não havia sequer saudades, dessas saudades de fórmula,
nada. E era isto justamente o que quadrava ao espírito de Eusébio; eram essas
cartas sem instância, que o não perseguiam nem exortavam, nem acusavam, como as
do tio João; e era por isso que ele mantinha constante e regular a correspondência
com a mulher.
Um dia, — passados cinco anos, — Cirila veio
à corte, com o tio; esteve aqui cinco ou seis dias e voltou para a roça, sem
procurar o marido. Este soube do caso, disseram-lhe que ela estava em certo
hotel, correu para lá, mas era tarde. Cirila partira no trem da manhã. Eusébio
escreveu-lhe no dia seguinte, chamando-lhe ingrata e esquecida; Cirila
desculpou-se em dizer que tivera necessidade urgente de voltar, e não se falou
mais nisso.
Durante esse tempo a vida de Eusébio
continuara no mesmo diapasão. Os seus amores multiplicavam-se, e eram sempre
mulheres tão impetuosas e ardentes, como ele. Uma delas, leoa ciumenta, duas ou
três vezes lutara com outras, e até o feriu uma vez, deitando-lhe à cara uma
tesoura. Chamava-se Sofia, e era rio-grandense. Tão depressa viu o sangue
rebentar do queixo de Eusébio (a tesoura apanhara de leve essa parte do rosto)
Sofia caiu sem sentidos. Eusébio esqueceu-se de si mesmo, para correr a ela.
Voltando a si, ela pediu-lhe perdão, rojou-se-lhe aos pés, e foi curá-lo com
uma dedicação de mãe. As cenas de ciúmes reproduziram-se assim, violentas, por
parte de ambos.
Rita foi outra paixão de igual gênero, com
iguais episódios, e não foi a última. Outras vieram, com outros nomes. Uma
dessas deu lugar a um ato de delicadeza, realmente inesperado da parte de um
homem como aquele. Era uma linda mineira, de nome Rosária, que ele encontrou no
Passeio Público, um sábado, à noite.
— Cirila! exclamou ele.
Com efeito, Rosária era a cara de Cirila, a
mesma figura, os mesmos ombros; a diferença única era que a mulher dele tinha
naturalmente os modos acanhados e modestos, ao passo que Rosária adquirira
outras maneiras soltas. Eusébio não tardou em reconhecer isso mesmo. A paixão
que esta mulher lhe inspirou foi grande; mas não menor foi o esforço que ele
empregou para esquecê-la. A semelhança com a mulher constituía para ele um
abismo. Nem queria ao pé de si esse fiel traslado, que seria ao mesmo tempo um
remorso, nem também desejava fitar aqueles costumes livres, que lhe conspurcavam
a imagem da mulher. Era assim que ele pensava, quando a via; ausente, voltava a
paixão. Que era preciso para vencê-la, senão outra? Uma Clarinha consolou de
Rosária, uma Luísa de Clarinha, uma Romana de Luísa, etc., etc.
Não iam passando só as aventuras, mas os anos
também, os anos que não perdoam nada. O coração de Eusébio tinha-se fartado de
amor; a vida oferecera-lhe a taça cheia, e ele embriagara-se depressa. Estava
cansado, e tinham passado oito anos. Pensou em voltar para casa, mas como? A
vergonha dominou-o. Escreveu uma carta à mulher, pedindo-lhe perdão de tudo,
mas rasgou-a logo, e ficou. O fastio veio sentar-se ao pé dele; a solidão
acabrunhou-o. Cada carta de Cirila trazia-lhe o aroma da roça, a saudade de
casa, a vida quieta ao lado da esposa constante e meiga, e ele tinha ímpetos de
meter-se na estrada de ferro; mas a vergonha...
No mês de outubro de 1879, recebeu uma carta
do tio João. Era a primeira depois de algum tempo; receou alguma notícia má,
abriu-a, e preparou-se logo para seguir. Com efeito, Cirila estava doente,
muito doente. No dia seguinte partiu. Ao ver, à distância, a fazenda, a casa, a
capelinha, estremeceu e sentiu alguma coisa melhor, menos desatinado do que os
anos perdidos. Entrou em casa trôpego. Cirila estava dormindo quando ele
chegou, e, apesar dos pedidos do tio João, Eusébio foi ao quarto, pé ante pé, e
contemplou-a. Saiu logo, escondendo os olhos; o tio João apertou-o nos braços,
e contou-lhe tudo. Cirila adoecera de uma febre perniciosa, e o médico disse que
o estado era gravíssimo, e a morte muito provável; felizmente, naquele dia de
manhã, a febre cedera.
Cirila restabeleceu-se em poucos dias.
Eusébio, durante os primeiros, consentiu
em não
ver a mulher, para lhe não produzir nenhum abalo; mas já sabemos que Cirila
tinha os abalos insignificantes. Estendeu-lhe a mão, quando ele lhe apareceu,
como se ele tivesse saído dali na semana anterior; tal qual se despedira antes,
quando ele foi para a guerra.
— Agora é de vez? perguntou o tio João ao
sobrinho.
— Juro que é de vez.
E cumpriu. Não se pense que ficou
constrangido, ou com o ar enfadado de um grande estroina que acabou. Nada;
ficou amigo da mulher, meigo, brando, dado ao amor quieto, sem explosões, sem
excessos qual o de Cirila. Quem os via podia crer que eram as duas almas mais
homogêneas do universo; pareciam ter nascido um para o outro.
O tio João, homem rude e filósofo, ao vê-los
agora tão unidos, confirmou dentro de si mesmo a observação que fizera uma vez,
mas modificando-a, por este modo: — Não eram as naturezas que eram opostas, as
datas é que se não ajustavam; o marido de Cirila é este Eusébio dos quarenta,
não o outro. Enquanto quisermos combinar as datas contrárias, perdemos o tempo;
mas o tempo andou e combinou tudo.
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