Triste carta
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
A luz de
ouro da tarde entrara já a esmaiar no alto, pela porta do rancho, quando o
Lucas, depois de arrumada a roupa que estivera a cosicar, pegou de um pequeno maço
de cartas e desdobrou uma, cujo papel já muito amarrotado e encardido indicava
bem as vezes inumeráveis que andara a rolar nas suas mãos rijas e calosas de
marujo. Recebera-a havia um ano, em um dos portos de escala em que tocara o
patacho. Era de sua mãe e ocupava-se quase exclusivamente de coisas que faziam
o encanto da sua vida e a maior preocupação da sua alma.
Dentre as
raras missivas que tinha recebido naquela viagem, era essa, sem dúvida, a que
mais adorava, porque em suas linhas tortuosas e trêmulas sua mãe lhe falava
mais longamente da Laura, uma trigueira rapariga do campo que por uma linda
noite de maio, na festa da Cruz lhe cativara o coração com os seus negros olhos
fascinantes. E como era essa a última carta que lhe chegara de casa, lia-a
constantemente, nos vagares de bordo: e para isso enclausurava-se no rancho,
mesmo nos dias festivos em que os companheiros baixavam à terra, a folgar.
Desde que
deixara o Recife onde o navio tomara um frete para Havana, que não recebera
mais notícia da terra natal, não obstante ter escrito à sua mãe,
comunicando-lhe tudo isso, na antevéspera da viagem. Demorara três meses nas
Antilhas e sempre a mesma ausência de notícias, lá, como naquele porto da
Pátria, onde se achava agora fundeado o Patacho.
Começaram
então a surgir-lhe no espírito desconfianças, dúvidas, pressentimentos e
apreensões de toda a ordem sobre o que teria sucedido à sua mãe e à Laura,
sobretudo a esta, — desconfianças e apreensões que só naquelas leituras suaves
deixavam de excruciar-lhe tão intensamente o coração como quando, com o
pensamento desocupado e ocioso, se entregava de todo às tristíssimas conjeturas
dessa, para si e para todos que nela acaso se veem, bem penosa situação.
E assim,
naquele dia — um belo domingo de sol — deixara partir para a Alegria e as
mulheres os seus camaradas, enquanto ele, sozinho e soturno, no isolamento da
sua alma amantíssima e saudosa, prazia-se em contemplar e beijar, no fundo do
seu beliche, aquela carta adorada.
Virava e
revirava o papel cujas dobras, em certos pontos, entravam já a rasgar-se,
soletrando devagar as palavras, na ternura embaladora do seu profundo afeto.
Lia-o, relia-o sucessivamente, mal a última frase escoava, e só interrompia a
leitura quando o sentido ingênuo e simples da narração se lhe baralhava no
espírito, subitamente misturado e fundido às imagens recordativas das coisas
passadas, turbilhonando-lhe na alma assim tumultuosamente evocadas.
Suspirava
então, por momentos, respirando forte — e pousava risonhamente, como agradecido
ao Destino ou a Deus, os seus grandes olhos negros em uma nesga azulada do céu
da tarde, que se mostrava resplandecendo serenamente lá em cima, muito alto e
de um cetim delicioso, por entre os mastros e cabos. Depois, volvia outra vez à
obsessão inebriante daquela leitura cara...
Mas a luz
afrouxava pouco e pouco, e a sombra crescente ia enoitando nostalgicamente os
recantos afastados do pequeno ângulo de proa, onde já se sumiam na treva as
três ordens de beliches, que corriam aí, às amuradas, como um velho mostrador
de tasca.
O Lucas, com
um último suspiro melancólico, dobrou a carta, enrolando-a, com as outras, no
pequeno maço, que tornou a atar com um fio de vela; e ia recolocá-lo no
escaninho da caixa, quando um outro embrulhinho querido saltou-lhe à vista, em
uma recordação inefável.
Apanhou-o
logo, carinhosamente. E como a claridade ausentava-se, fugindo pela abertura do
rancho, veio postar-se aos primeiros degraus da estreita escada de pinho que
levava ao convés. Aí, sob a luz vesperal abrindo já pelo céu o seu pálio de
lilás, beijou três vezes o pacotinho precioso e entrou a desatá-lo. Eram as
pétalas murchas de umas flores que lhe dera a Laura, ao trocarem o adeus de
despedida, numa manhã de partida em que as famílias da sua freguesia natal, na
faina das pescarias de junho, coalhavam alegremente as praias. Dessa manhã
radiosa ficara-lhe perenemente na alma o deslumbramento de uma grande
felicidade.
Nesse dia,
mal chegara a bordo, correra a colocar à cabeceira do beliche essa lembrança adorada.
E só uma semana depois, no mar alto, quando as flores se fanaram de todo, em
meio aos vaivéns e emanações salitrosas das vagas, é que ele, amorosamente e
com os olhos marejados de lágrimas, as foi guardar na pequenina carteira de
lona, onde trazia piedosamente, como uma efígie sagrada, um retrato de sua mãe.
Sempre que tocava nessas pétalas secas, já quase despedaçadas de tanto lhe
rolarem nas mãos e de tanto serem beijadas, sentia como um êxtase de ternura
algemá-lo aquele recanto da proa, onde erguera o seu sacrário.
E por isso
ali se detinha agora a rever docemente as relíquias do seu amor, ajoelhado
diante da larga caixa de pinho, em cuja tampa erguida e dentro de um florão
rude de arte, uma galera corria sobre uma esteira de espuma, com as gáveas
enfunadas.
Estava ainda
embevecido na contemplação dessas lembranças amadas, quando uma voz ecoou lá em
cima, para os lados da popa.
— Ó de
bordo! Alô! que bote vai à garra...
O grito
passou, sobre a porta do rancho, as últimas sílabas despedaçadas na rajada do
vento.
O Lucas
atirou logo a carteira para o escaninho, fechou a caixa de pancada e galgou a
escada. No convés, para não dar uma volta muito grande, saltou o molinete em
direção ao portaló. Aí, com as mãos num brandal e em pontas de pés, porque a
borda era alta, procurava descobrir o bote, quando outro grito estalou, rente à
escada, meio aflito e choroso:
— Ó da proa!
Olha uma bossa depressa!... Uma bossa pela popa senão vamos água abaixo...
O Lucas,
reconhecendo aquela voz, correu então para o alto, e, agarrando o chicote de um
cabo que ali estava de rojo, jogou-o à água gritando:
— Aguentem,
rapazes, que lá vai o virador!...
O virador
sibilou por momentos, indo cair sobre o mar, em inúmeras duchas sinuosas, como
um réptil monstruoso: e o escaler apareceu, descaindo na corrente, junto ao
espelho da popa.
Era o bote
de bordo, que fora pôr em terra o piloto, e que, já de volta, ao atracar ao
patacho, ficara preso da vazante, por esse tempo de uma tal velocidade, naquele
porto, que levava muitas vezes barra fora as pequenas embarcações. Depois só
quem conhecia o local podia atracar com segurança. Mas os remadores do bote
eram “marinheiros de primeira viagem”, o Luís e o Leão ― dois rapazes de treze
anos, inexperientes e que não conheciam o mar senão nas suas costas do sul,
onde, de menino, cruzavam constantemente as ondas em pequenas canoas e lanchas.
Os dois, ao
fazerem a atracação, em vez de encostarem à proa do patacho, deixaram o escaler
cair demasiado à ré, e de tal modo que, entregues ao poder da correnteza,
apesar de apertarem as remadas, não lograram alcançar o costado, metidos no
recôncavo do leme, onde as águas remansavam. Anoitecia, porém, e eles, cansados
já e sem forças, receando o turbilhão que fatalmente os arrastaria barra fora,
entraram a gritar pelo Lucas, que estava ao momento no rancho.
Ao verem o
cabo, os dois pequenos apegaram-se rijamente a ele e, dada uma volta com o
chicote ao arganéu de proa, alaram o bote para vante. Quando chegaram à altura
do costado onde se arqueavam os turcos, o Lucas, safando as talhas para içar o
escaler, disse-lhes gracejando:
— Ó seus
lorpas, para outra vez mais sentido! Olhem que isto aqui não é tresmalhão!...
E, volveu
para o salto, a rir-se muito com os seus dentes brancos.
Içado o
bote, enquanto o Luís dava volta às talhas, o Leão tirou dentre os embrulhos
que trouxera de terra um estreito envelope azulado e foi levá-lo ao Lucas, que,
de pé sobre a borda, começava a ferrar o toldo. Como o Leão lhe estendesse a
carta, largou por instante o trabalho e, o rosto radiante de júbilo, abrindo o
sobrescrito, que reconheceu ser de sua mãe, entrou a soletrar nervosamente,
para si, em silêncio as primeiras palavras.
Mas os
rapazes, ao outro bordo, abafavam já o toldo, que bojava na retranca com o seu
ruge-ruge de lona.
O Lucas
então meteu a carta no bolso, para a ler depois, com vagar, no recanto
remansoso do rancho.
E apressava
o serviço, lidando destramente com o pano, numa disposição que lhe acendia no
peito toda a alegria dos seus vinte e três anos...
Daí a pouco,
dada a última vista de olhos ao convés e à câmara, desceu a escada de proa,
solfejando à meia voz a primeira quadra do Adeus
do Marujo, fitando alegremente as estrelas que vinham já entretecendo no
Azul um crivo escuro flamante.
Embaixo,
mandou que os rapazes se arrumassem e abrindo o pequeno depósito de objetos de
bordo que ficava contra a antepara de ré, tirou dele o farol do rancho. Mal o
acendeu, colocou-o num travessão ao centro, dirigindo-se para o beliche, a
cantar ainda vagamente uma estrofe da canção:
“Ala braços! caça a escota
Aproveita a viração!
Acompanha-me, Saudade,
Já que vou sem coração!”
E
inclinando-se, arrastou a caixa até ao pé de carneiro, onde ardia o farolim:
tirou a carta do bolso e, arrojando para longe o cigarro, recomeçou a leitura
que deixara apenas encetada.
De repente
estacou, levantando a cabeça — a face lívida, os olhos desvairados. Fixou a luz
por instantes, as pupilas duras, os cílios sem movimento. Parecia acometido de
uma loucura súbita, com a carta fechada nas mãos. Tremia todo, numa ânsia. E
lágrimas silenciosas fluíam-lhe das pálpebras, tristemente...
Ficou assim
muito tempo. Depois sacudiu os ombros vagamente, como na aceitação resignada de
uma grande dor, de um golpe sobre-humano. No entanto, talvez ainda incerto da
verdade, baixou de novo a cabeça e tornou a ler a carta. A soletração saía-lhe
agora numa gaguejada e soluçada convulsão... Mas não pôde prosseguir e,
erguendo-se de um salto, como um leão ferido, o papel amarrotado entre os
dedos, atirou-se para a tolda gritando:
— Jesus!
Jesus! Que aflição!...
Era a carta
que lhe trouxera a notícia esmagadora do casamento da Laura com um capitão de
navio, havia quatro meses. Sua mãe lhe narrava aí, com essa lógica genial e
lacônica que as mulheres têm, sempre, quando inspiradas pelo sentimento, a
história mortificadora daquela traição.
O Lucas, a
princípio atordoado, mal pudera acreditar na veracidade daquelas linhas
trêmulas; mas, lendo-as e relendo-as ainda, compreendeu por fim toda a sua
desgraça. E, alma ingênua e primitiva, como um louco e sem poder conter-se sob
os destroços do seu amor, repentinamente desfeito, saltou para a tolda, levado
numa rajada de desalento e de angústia.
A treva já
havia cerrado de todo. A brisa fresca da noite como que o acalmou por
instantes. Encaminhou-se então para um recanto do castelo e, debruçado da
borda, numa saudade inexprimível da Amada, agora perdida para sempre, rompeu a
chorar outra vez, diante do imenso Oceano e sob a grandiosa abóbada do Firmamento,
àquela hora, e como nunca, resplandecente de estrelas!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...