11/03/2017

Tristão e Isolda (Conto), de Virgílio Várzea


Tristão e Isolda
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Por uma tarde sombria e áspera de inverno, um jovem cavaleiro, envolto num manto negro e montando um ginete alazão, descia, a galope, as pequenas colinas de Epine, na estrada de Chalon, em direção a Valmy. Todo curvo sobre o arnês, por causa da neve fustigando-lhe intensamente o rosto e alagando-lhe o grosso manto e o belo tricórnio de plumas, dir-se-ia corrido de uma derrota nos bosques ou avançando para alguma entrevista de amor, em terras feudais de Verdun. Trazia um aspecto severo. E a sua face, clara e pálida, onde a barba destacava, toda cerrada e em bico, de um castanho muito lindo, parecia abatida e cavada por uma dor profundíssima.

Era Tristão da Bretanha, bravo paladino de Armor, que errava havia longos meses pelos vinhedos do Reno e pousava de castelo em castelo, de abadia em abadia, buscando em vão esquecer a paixão que o consumia pela rainha de Quimper, a loura e formosa Isolda que, amando-o também loucamente, triste e doce como um lírio, definhava pouco a pouco, torturada pela saudade e ausência do Amado, num dos torreões do seu castelo roqueiro, junto ao mar de Cornwall.

Essa paixão se originara, entre ambos, por um sortilégio inaudito.

O rei March da Bretanha que era tio de Tristão e o fizera seu valido um dia, desejando casar, o enviara de Quimper, onde tinha a sua corte, ao Condado de Suábia, a pedir a mão de Isolda, filha de Frederico de Hohenstauffen, celebrada em toda a Europa pela sua formosura.

Investido de poderes, bem armado e bem montado, o moço cavaleiro partiu. Dois meses depois, já em terras de Além— Reno, transpostos os montes ocidentais da Suábia, era recebido em Ulm com grandes festas reais. Exposta a missão a que ia e concedida a mão da Princesa, marcou-se o dia para as bodas. E realizadas estas, sob pompas jamais vistas, nelas Tristão figurou como noivo, pelo rei March seu tio. Na própria noite nupcial, ele e a loura Isolda lindíssima, seguidos de faustosa comitiva, tomaram o caminho de Quimper, em cavalgada festiva.

Marchando juntos dia a dia, de alvorada a alvorada, através de florestas espessas e descampadas planícies, pousando em Solares e Castelos de todos os Feudos amigos, dir-se-iam verdadeiros noivos, tão unidos se mostravam e tais os festejos e galas com que eram acolhidos.

Nos longos e lentos repousos da nupcial comitiva, sob altas naves douradas ou em câmaras riquíssimas, e que o gentil Paladino entrou a atentar detidamente e com certa intimidade para as graças peregrinas de Isolda. Contemplando-a horas e horas, num embevecimento e vago sonho de amor, sentia-se preso aos seus olhos cariciosos, de um azul transparente de lago, à sua boca breve e rósea e à sua basta cabeleira fulva, caindo-lhe pelas espáduas em densa meada de ouro.

Esta adoração, entretanto, era indefinida e abstrata Essa paixão se originara, entre ambos, por um sortilégio inaudito — misto de respeito e meiguice, de graça e nobreza fidalga...

Mas, ao anoitecer de um certo dia, ao deixarem uma floresta que ia findar numa lande onde um rio fulgurava ao luar, sequiosos da galopada da tarde a um sol de açafrão flamante, pararam, momentos, junto às altas pedras esparsas de um dólmen druídico, evocativo de amorosas entrevistas e sacrifícios sagrados. E Isolda apeou sobre a relva, enquanto Tristão, pressuroso, ia buscar a uma bolsa de peles que trazia afivelada à sela, um doce licor do Reno que estancava toda a sede e dava repouso à alma.

Nessa mesma bolsa, porém, a rainha Olga de Suábia, mãe de Isolda, mandara colocar pelas aias, de envolta com as joias e mimos, um filtro mágico de amor que se fazia misteriosamente em Turíngia. Esse filtro virtuoso era como o néctar antigo e tinha a propriedade maravilhosa e sobrenatural de despertar paixões eternas e recíprocas entre Cavaleiros e Damas que dele conjuntamente provassem. A velha rainha de Ulm muito propositalmente o mandara ali botar — à maneira do que fizera com a rica sortilha de ouro colocada ao dedo da filha após o ato nupcial — para ser entregue ao rei March, a fim de que ele e Isolda o bebessem, ficando enlaçados numa só paixão, fielmente e para sempre.

O moço paladino, ignorando tudo aquilo, tomou o pequeno frasco do filtro e julgando que fosse o licor de que usava, encheu um pequenino cálice de ouro e deu-o a beber à Princesa. Bebeu depois por sua vez e, recolhendo com Isolda à sombra de um teto musgoso de dólmen, deitou-se com ela no chão veludoso e ainda todo alfombrado, da sagrada flor do gui no último sacrifício druídico e adormeceram ambos juntamente, tomados de suavíssimo sono. Ao primeiro fulgir da manhã despertaram e, ao verem-se tão docemente unidos na penumbra aconchegante da gruta, irresistivelmente sacudidos de violento impulso de amor, para eles até então desconhecido, enlaçaram-se e beijaram-se numa ternura de amantes...

O pomposo séquito, que passara a noite inteira a guardá-los na orla da imensa floresta próxima, apareceu logo, em galopada, mui alegre e mui luzido. Então puseram-se de novo a caminho...

E daí a semanas, por uma tarde carmesim e serena, chegaram à corte de Quimper. O rei March os esperava, cheio de ansiedade e de júbilo, no salão do seu palácio regorjitando de nobres, de clérigos e de bailios.

Foram então decretadas grandes festas no feudo de Cornwall e em todo o feudo de Quimper, em honra de Isolda, a rainha. E o rei sentia-se agora mais poderoso que nunca e, como nunca, glorioso e feliz ao lado da linda esposa querida.

Mas — oh! fatal influência do Fado! — a loura Isolda de Suábia, sob a ação permanente do filtro mágico da Turíngia, dera a sua alma a Tristão que, enlouquecido por ela, gemia agora de tristeza e de afeto na sua triste posição de valido e de sobrinho.

E, em palácio, raramente a formosíssima Rainha podia encontrar-se com o seu cavaleiro, porque o rei March, logo aos primeiros meses de noivado, com estranha severidade, tomado de zelos terríveis, a subtraíra cruelmente às recepções da corte, trazendo-a dia e noite encerrada em seus aposentos e só com as suas favoritas. Mas, uma ou outra vez, de longe em longe, mais brando no seu trato de senhor, permitia-lhe o fugidio e arrebatado gozo de uma ou outra excursão, ou caçada nos bosques e landes, mandando-a acompanhar por Tristão — de quem não desconfiava ainda o pobre e velho rei ciumento! — e por enorme cortejo de escudeiros e pajens que serviam de espiões.

Entretanto, numa dessas excursões ou caçadas, os dois torturados amantes, no ansioso e insofrido desejo de ficarem a sós um momento e se unirem livremente — aproveitando uma oportunidade feliz, desviaram-se da floresta e, ao ressoar vitorioso de um halali quando escudeiros e pajens apanhavam já o javali vencido, irromperam a toda a brida, pelo caminho do Reno, em direção a Nancy.

O séquito só muitas horas depois deu pela ausência de ambos: e, embalde, escudeiros e pajens bateram os mais ocultos recessos da mata. Não lograram descobri-los. E tristemente recolheram ao castelo, sob a noite que caía...

O rei March, furioso, imediatamente expediu escoltas a prenderem o Paladino. Mas em vão andaram elas a percorrer todo o Feudo e os que lhe eram vizinhos. Nenhum cavaleiro e nenhum monge ou peregrino lhes deram uma nova que fosse do feliz par fugitivo.

Por fim voltaram a Quimper as escoltas, tal como haviam partido. Então o rei, ainda mais furioso, resolveu sair em pessoa em busca da esposa e rainha, fazendo-se acompanhar de toda a sua corte, por peões e por uma grande força de guerra, como a pelejar inimigos. Pela estrada real do Oriente palmilhou os seus domínios e, de Mosteiro em Mosteiro, de Abadia em Abadia, chegou mesmo até Valmy, de onde tomou para o sul descendo ao longo do Reno, sob pinheirais e vinhas...

Seis meses assim errou, por vale, monte e planície, sem ter nem mais uma nova do Paladino e da esposa. Desiludido e cansado, voltava já à Bretanha, quando, uma manhã de nevoeiro, num dos bosques de Nancy, os encontrou afinal, deitados juntos na relva, à sombra de um velho carvalho coberto da flor do gui. Agitado e num furor, ocorreu-lhe logo fulminá-los, ali mesmo, com a sua adaga de guerra; mas tão serenos e descuidosos os viu, assim adormecidos lado a lado, sob os ramos protetores da velha árvore sagrada e tendo apenas de permeio as armas do Paladino — que ficou a olhá-los com respeito, num grande recolhimento, como ante as Imagens de um templo. Fazendo afastar os que o seguiam e mandando despertar o cavalheiro e a rainha, foi esperá-los à saída da mata, como se nada houvesse ocorrido. Daí a instantes, Tristão e Isolda, cavalgando os seus fogosos corcéis, apresentavam-se ao rei, de cabeça baixa e chorando, como esperando o castigo...

Mas o rei perdoou-lhes a falta, e todo o séquito pôs-se de novo a caminho, menos Tristão da Bretanha que, para se punir a si mesmo da desonra infligida ao tio, deixou-se ficar para trás, resolvendo correr terras para esquecer aquele amor e expiar o seu crime.

Por isso ali ia agora, a galope sob a neve, pelas terras de Verdun...

Durante anos viveu em torneios e liças, sem contudo lograr esquecer a Dama eleita da sua alma, cuja imagem via sempre em seu espírito. Mas um dia passou à Turíngia, onde se lhe deparou uma castelã loura e branca, qual a rainha de Quimper. E, coincidência feliz! tinha o mesmo nome dela: era Isolda de Bretanne. Vê-la e fazê-la render-se aos seus encantos e mimos foi obra de um só instante. Então, ajustadas as núpcias, que se realizaram com pompa numa abadia saxônia, Tristão foi habitar com a esposa para o seu velho solar do golfo de Morbian.

Já nessa época o rei March trocara os seus domínios de Quimper pelos do outro lado da Mancha: e vivia em Cornwall, no seu castelo roqueiro batido do Mar bravio...

Mas nem mesmo ao seu solar, com Isolda de Bretanne que o amava como louca, o paladino de Armor pôde esquecer, um instante, a bela rainha de Quimper. E, em pouco, consumido de saudade e de dor, adoeceu gravemente. Temendo perecer de repente, sem tornar a ver, ao menos uma vez ainda, a doce Isolda de Ulm, mandou chamar o seu amigo Gaël, um bravo marujo bretão, e contando-lhe o seu amor e doença, enviou-o a Cornwall para que lha trouxesse, em segredo, a bordo do seu navio.

Munido de tal missão o marujo levou âncoras, devendo, na sua volta, apenas avistasse a Bretanha, arvorar aos altos mastros velas ou bandeiras brancas. Era este o sinal inequívoco de que trazia a seu bordo a loura rainha de Quimper. Caso contrário, porém, largaria velas negras por sobre o Mar infinito...

E como a moléstia o prostrasse e não pudesse mais erguer-se, Tristão da Bretanha ordenou que o carregassem no leito para o varandim do solar, de onde se dominava o mar alto para os lados da Britânia. A esposa carinhosa, cheia de mágoas e zelos, isolava-se a chorar, fechada na sua câmara...

Três semanas decorreram em terrível ansiedade para o pobre Paladino. Mas, numa manhã muito límpida, o casco esguio de um batel desenhou-se no horizonte. Era o barco de Gaël.

Ao varandim, nesse instante, sem forças já e a morrer, Tristão perguntava ao escudeiro favorito se avistava no batel velas ou bandeiras brancas. O homem ia responder-lhe, quando Isolda de Bretanne irrompeu, subitamente junto ao leito do enfermo e, certa de que era a rival que ali vinha, dissimulando a sua inquietação e furor, disse-lhe com afetada meiguice:

— Infelizmente não, meu querido! Aquele barco que ali vem traz arvoradas nos mastros velas e bandeiras negras...

Ao ouvir semelhantes palavras, Tristão fez um movimento e logo após expirou.

Mas, em pouco, o barco chegava à praia e Isolda de Cornwall, rainha de Quimper, saltava precipitadamente, correndo para o varandim do solar onde Tristão expirara. Ajoelhando à cabeceira do leito, inclinou-se sobre o cadáver ainda quente do amante e pôs-se a beijá-lo na face, soluçando em grande pranto. Depois, muita lívida e a tremer, tirou do seio um frasquinho de violento veneno e, levando-o de pronto à boca, esvaziou-o de um trago. Daí a momentos, beijando de novo o cadáver de Tristão, caía morta a seu lado, unindo-se-lhe agora, na morte, de uma vez e para sempre!

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