Trio em Lá Menor
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1: ADAGIO CANTABILE
Maria Regina acompanhou a avó até o quarto,
despediu-se e recolheu-se ao seu. A mucama que a servia, apesar da familiaridade
que existia entre elas, não pôde arrancar-lhe uma palavra, e saiu, meia hora
depois, dizendo que Nhanhã estava muito séria. Logo que ficou só, Maria Regina
sentou-se ao pé da cama, com as pernas estendidas, os pés cruzados, pensando.
A verdade pede que diga que esta moça pensava
amorosamente em dois homens ao mesmo tempo, um de vinte e sete anos, Maciel —
outro de cinquenta, Miranda. Convenho que é abominável, mas não posso alterar a
feição das coisas, não posso negar que se os dois homens estão namorados dela,
ela não o está menos de ambos. Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as
suas amigas de colégio, uma desmiolada. Ninguém lhe nega coração excelente e
claro espírito; mas a imaginação é que é o mal, uma imaginação adusta e
cobiçosa, insaciável principalmente, avessa à realidade, sobrepondo às coisas
da vida outras de si mesmas; daí curiosidades irremediáveis.
A visita dos dois homens (que a namoravam de
pouco) durou cerca de uma hora. Maria Regina conversou alegremente com eles, e
tocou ao piano uma peça clássica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco.
No fim discutiram música. Miranda disse coisas pertinentes acerca da música
moderna e antiga; a avó tinha a religião de Bellini e da Norma, e falou das toadas do seu tempo, agradáveis, saudosas e
principalmente claras. A neta ia com as opiniões do Miranda; Maciel concordou
polidamente com todos.
Ao pé da cama, Maria Regina reconstruía agora
tudo isso, a visita, a conversação, a música, o debate, os modos de ser de um e
de outro, as palavras do Miranda e os belos olhos do Maciel. Eram onze horas, a
única luz do quarto era a lamparina, tudo convidava ao sonho e ao devaneio.
Maria Regina, à força de recompor a noite, viu ali dois homens ao pé dela,
ouviu-os, e conversou com eles durante uma porção de minutos, trinta ou
quarenta, ao som da mesma sonata tocada por ela: lá, lá, lá...
CAPÍTULO 2: ALLEGRO MA NON TROPPO
No dia seguinte a avó e a neta foram visitar
uma amiga na Tijuca. Na volta a carruagem derrubou um menino que atravessava a
rua, correndo. Uma pessoa que viu isto, atirou-se aos cavalos e, com perigo de
si própria, conseguiu detê-los e salvar a criança, que apenas ficou ferida e
desmaiada. Gente, tumulto, a mãe do pequeno acudiu em lágrimas. Maria Regina
desceu do carro e acompanhou o ferido até à casa da mãe, que era ali ao pé.
Quem conhece a técnica do destino adivinha
logo que a pessoa que salvou o pequeno foi um dos dois homens da outra noite;
foi o Maciel. Feito o primeiro curativo, o Maciel acompanhou a moça até à
carruagem e aceitou o lugar que a avó lhe ofereceu até a cidade. Estavam no
Engenho Velho. Na carruagem é que Maria Regina viu que o rapaz trazia a mão
ensanguentada. A avó inquiria a miúdo se o pequeno estava muito mal, se
escaparia; Maciel disse-lhe que os ferimentos eram leves. Depois contou o
acidente: estava parado, na calçada, esperando que passasse um tílburi, quando
viu o pequeno atravessar a rua por diante dos cavalos; compreendeu o perigo, e
tratou de conjurá-lo, ou diminuí-lo.
— Mas está ferido, disse a velha.
— Coisa de nada.
— Está, está, acudiu a moça; podia ter-se
curado também.
— Não é nada, teimou ele; foi um arranhão,
enxugo isto com o lenço.
Não teve tempo de tirar o lenço; Maria Regina
ofereceu-lhe o seu. Maciel, comovido, pegou nele, mas hesitou em maculá-lo. Vá,
vá, dizia-lhe ela; e vendo-o acanhado, tirou-lho e enxugou-lhe, ela mesma, o
sangue da mão.
A mão era bonita, tão bonita como o dono; mas
parece que ele estava menos preocupado com a ferida da mão que com o amarrotado
dos punhos. Conversando, olhava para eles disfarçadamente e escondia-os. Maria
Regina não via nada, via-o a ele, via-lhe principalmente a ação que acabava de
praticar, e que lhe punha uma auréola. Compreendeu que a natureza generosa
saltara por cima dos hábitos pausados e elegantes do moço, para arrancar à
morte uma criança que ele nem conhecia. Falaram do assunto até a porta da casa
delas; Maciel recusou, agradecendo, a carruagem que elas lhe ofereciam, e
despediu-se até à noite.
— Até a noite! repetiu Maria Regina.
— Esperou-o ansiosa. Ele chegou, por volta de
oito horas, trazendo uma fita preta enrolada na mão, e pediu desculpa de vir
assim; mas disseram-lhe que era bom pôr alguma coisa e obedeceu.
— Mas está melhor!
— Estou bom, não foi nada.
— Venha, venha, disse-lhe a avó, do outro
lado da sala. Sente-se aqui ao pé de mim: o senhor é um herói.
Maciel ouvia sorrindo. Tinha passado o ímpeto
generoso, começava a receber os dividendos do sacrifício. O maior deles era a
admiração de Maria Regina, tão ingênua e tamanha, que esquecia a avó e a sala.
Maciel sentara-se ao lado da velha, Maria Regina defronte de ambos. Enquanto a
avó, restabelecida do susto, contava as comoções que padecera, a princípio sem
saber de nada, depois imaginando que a criança teria morrido, os dois olhavam
um para o outro, discretamente, e afinal esquecidamente. Maria Regina
perguntava a si mesma onde acharia melhor noivo. A avó, que não era míope,
achou a contemplação excessiva, e falou de outra coisa; pediu ao Maciel algumas
notícias de sociedade.
CAPÍTULO 3: ALLEGRO APPASSIONATO
Maciel era homem, como ele mesmo dizia em
francês, très répandu; sacou da
algibeira uma porção de novidades miúdas e interessantes. A maior de todas foi
a de estar desfeito o casamento de certa viúva.
— Não me diga isso! exclamou a avó. E ela?
— Parece que foi ela mesma que o desfez: o
certo é que esteve anteontem no baile, dançou e conversou com muita animação.
Oh! abaixo da notícia, o que fez mais sensação em mim foi o colar que ela
levava, magnífico...
— Com uma cruz de brilhantes? perguntou a
velha. Conheço; é muito bonito.
— Não, não é esse.
Maciel conhecia o da cruz, que ela levara à
casa de um Mascarenhas; não era esse. Este outro ainda há poucos dias estava na
loja do Resende, uma coisa linda. E descreveu-o todo, número, disposição e
facetado das pedras; concluiu dizendo que foi a joia da noite.
— Para tanto luxo era melhor casar, ponderou
maliciosamente a avó.
— Concordo que a fortuna dela não dá para
isso. Ora, espere! Vou amanhã, ao Resende, por curiosidade, saber o preço por
que o vendeu. Não foi barato, não podia ser barato.
— Mas por que é que se desfez o casamento?
— Não pude saber; mas tenho de jantar sábado
com o Venancinho Correia, e ele conta-me tudo. Sabe que ainda é parente dela?
Bom rapaz; está inteiramente brigado com o Barão...
A avó não sabia da briga; Maciel contou-lha
de princípio a fim, com todas as suas causas e agravantes. A última gota no
cálice foi um dito à mesa de jogo, uma alusão ao defeito do Venancinho, que era
canhoto. Contaram-lhe isto, e ele rompeu inteiramente as relações com o Barão.
O bonito é que os parceiros do Barão acusaram-se uns aos outros de terem ido
contar as palavras deste. Maciel declarou que era regra sua não repetir o que
ouvia à mesa do jogo, porque é lugar em que há certa franqueza.
Depois fez a estatística da Rua do Ouvidor,
na véspera, entre uma e quatro horas da tarde. Conhecia os nomes das fazendas e
todas as cores modernas. Citou as principais toilettes do dia. A primeira foi a de Madame Pena Maia, baiana distinta, très pschutt. A segunda foi a de Mlle. Pedrosa, filha de um desembargador de São Paulo, adorable. E apontou mais três, comparou
depois as cinco, deduziu e concluiu. Às vezes esquecia-se e falava francês;
pode mesmo ser que não fosse esquecimento, mas propósito; conhecia bem a
língua, exprimia-se com facilidade e formulara um dia este axioma etnológico —
que há parisienses em toda a parte. De caminho, explicou um problema de
voltarete.
— A senhora tem cinco trunfos de espadilha e
manilha, tem rei e dama de copas...
Maria Regina ia descambando da admiração no
fastio: agarrava-se aqui e ali, contemplava a figura moça do Maciel, recordava
a bela ação daquele dia, mas ia sempre escorregando; o fastio não tardava a
absorvê-la. Não havia remédio. Então recorreu a um singular expediente. Tratou
de combinar os dois homens, o presente com o ausente, olhando para um, e
escutando o outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão eficaz, que
ela pôde contemplar por algum tempo uma criatura perfeita e única.
Nisto apareceu o outro, o próprio Miranda. Os
dois homens cumprimentaram-se friamente; Maciel demorou-se ainda uns dez
minutos e saiu. Miranda ficou. Era alto e seco, fisionomia dura e gelada. Tinha
o rosto cansado, os cinquenta anos confessavam-se tais, nos cabelos grisalhos,
nas rugas e na pele. Só os olhos continham alguma coisa menos caduca. Eram
pequenos, e escondiam-se por baixo da vasta arcada do sobrolho; mas lá, ao
fundo, quando não estavam pensativos, centelhavam de mocidade. A avó perguntou-lhe,
logo que Maciel saiu, se já tinha notícia do acidente do Engenho Velho, e
contou-lho com grandes encarecimentos, mas o outro ouvia tudo sem admiração nem
inveja.
— Não acha sublime? perguntou ela, no fim.
— Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado
que algum dia, sem o conhecer, pode meter-lhe uma faca na barriga.
— Oh! protestou a avó.
— Ou mesmo conhecendo, emendou ele.
— Não seja mau, acudiu Maria Regina; o senhor
era bem capaz de fazer o mesmo, se ali estivesse.
Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso
acentuou-lhe a dureza da fisionomia. Egoísta e mau, este Miranda primava por um
lado único: espiritualmente, era completo. Maria Regina achava nele o tradutor
maravilhoso e fiel de uma porção de ideias que lutavam dentro dela, vagamente,
sem forma ou expressão. Era engenhoso e fino e até profundo, tudo sem
pedantice, e sem meter-se por matos cerrados, antes quase sempre na planície
das conversações ordinárias; tão certo é que as coisas valem pelas ideias que
nos sugerem. Tinham ambos os mesmos gostos artísticos; Miranda estudara direito
para obedecer ao pai; a sua vocação era a música.
A avó, prevendo a sonata, aparelhou a alma
para alguns cochilos. Demais, não podia admitir tal homem no coração; achava-o
aborrecido e antipático. Calou-se no fim de alguns minutos. A sonata veio, no
meio de uma conversação que Maria Regina achou deleitosa, e não veio senão
porque ele lhe pediu que tocasse; ele ficaria de bom grado a ouvi-la.
— Vovó, disse ela, agora há de ter paciência...
Miranda aproximou-se do piano. Ao pé das
arandelas, a cabeça dele mostrava toda a fadiga dos anos, ao passo que a
expressão da fisionomia era muito mais de pedra e fel. Maria Regina notou a
graduação, e tocava sem olhar para ele; difícil coisa, porque, se ele falava, as
palavras entravam-lhe tanto pela alma, que a moça insensivelmente levantava os
olhos, e dava logo com um velho ruim. Então é que se lembrava do Maciel, dos
seus anos em flor, da fisionomia franca, meiga e boa, e afinal da ação daquele
dia. Comparação tão cruel para o Miranda, como fora para o Maciel o cotejo dos
seus espíritos. E a moça recorreu ao mesmo expediente. Completou um pelo outro;
escutava a este com o pensamento naquele; e a música ia ajudando a ficção,
indecisa a princípio, mas logo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada
a cantiga do tecelão, admirava-lhe as belas formas, sem advertir que a cabeça
era de burro.
CAPÍTULO 4: MINUETTO
Dez, vinte, trinta dias passaram depois
daquela noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não há cronologia
certa; melhor é ficar no vago. A situação era a mesma. Era a mesma
insuficiência individual dos dois homens, e o mesmo complemento ideal por parte
dela; daí um terceiro homem, que ela não conhecia.
Maciel e Miranda desconfiavam um do outro,
detestavam-se a mais e mais, e padeciam muito, Miranda principalmente, que era
paixão da última hora. Afinal acabaram aborrecendo a moça. Esta viu-os ir pouco
a pouco. A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e
eles saíram para nunca mais. As noites foram passando, passando... Maria Regina
compreendeu que estava acabado.
A noite em que se persuadiu bem disto foi uma
das mais belas daquele ano, clara, fresca, luminosa. Não havia lua; mas nossa
amiga aborrecia a lua, — não se sabe bem por que, — ou porque brilha de
empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que por ambas as
razões. Era uma das suas esquisitices. Agora outra.
Tinha lido de manhã, em uma notícia de
jornal, que há estrelas duplas, que nos parecem um só astro. Em vez de ir
dormir, encostou-se à janela do quarto, olhando para o céu, a ver se descobria
alguma delas; baldado esforço. Não a descobrindo no céu, procurou-a em si
mesma, fechou os olhos para imaginar o fenômeno; astronomia fácil e barata, mas
não sem risco. O pior que ela tem é pôr os astros ao alcance da mão; por modo
que, se a pessoa abre os olhos e eles continuam a fulgurar lá em cima, grande é
o desconsolo e certa a blasfêmia. Foi o que sucedeu aqui. Maria Regina viu
dentro de si a estrela dupla e única. Separadas, valiam bastante; juntas, davam
um astro esplêndido. E ela queria o astro esplêndido. Quando abriu os olhos e
viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a criação era um livro falho
e incorreto, e desesperou.
No muro da chácara viu então uma coisa
parecida com dois olhos de gato. A princípio teve medo, mas advertiu logo que
não era mais que a reprodução externa dos dois astros que ela vira em si mesma
e que tinham ficado impressos na retina. A retina desta moça fazia refletir cá
fora todas as suas imaginações. Refrescando o vento recolheu-se, fechou a
janela e meteu-se na cama.
Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de
opala que estavam incrustadas na parede; percebendo que era ainda uma ilusão,
fechou os olhos e dormiu. Sonhou que morria, que a alma dela, levada aos ares,
voava na direção de uma bela estrela dupla. O astro desdobrou-se, e ela voou
para uma das duas porções; não achou ali a sensação primitiva e despenhou-se
para outra; igual resultado, igual regresso, e ei-la a andar de uma para outra
das duas estrelas separadas. Então uma voz surgiu do abismo, com palavras que
ela não entendeu:
— É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a
tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som
desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...
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