Trina e Una
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A primeira coisa que há de espantar o leitor
é o título, que lhe anuncia (posso dizê-lo desde já) três mulheres e uma só
mulher. Há dois modos de explicar uma tal anomalia: — ou duas mulheres entram
no conto indiretamente, são apenas citadas, e puxam os cordéis da ação do outro
lado da página — ou as mulheres não passam de três gradações, três estados
sucessivos da mesma pessoa. São os dois modos aparentes de definir o título, e,
entretanto, não é nenhum deles, mas um terceiro, que eu guardo comigo, não para
aguçar a curiosidade, mas porque não há analisá-lo sem expor o assunto.
Vou expor o assunto. Comecemos por ela, a
mulher una e trina. Está sentada numa loja, à Rua da Quitanda, ao pé do balcão,
onde há cinco ou seis caixas de rendas abertas e derramadas. Não escolhe nada,
espera que o caixeiro lhe traga mais rendas, e olha para fora, para as pedras
da rua, não para as pessoas que passam. Veste de preto, e o busto fica-lhe bem,
assim comprimido na seda, e ornado de rendas finas e vidrilhos. Abana-se por
distração; talvez olhe também por distração. Mas, seja ou não assim, abana-se e
olha. Uma ou outra vez, recolhe a vista para dentro da loja, e percorre os
demais balcões onde se acham senhoras que também escolhem, conversam e compram;
mas é difícil ver nos movimentos da dama a menor sombra de interesse ou
curiosidade. Os olhos vão de um lado a outro, e a cabeça atrás deles, sem ânimo
nem vida, e depois aos desenhos do leque. Ela examina bem os desenhos, como se
fossem novos, levanta-os, desce-os, fecha as varetas uma por uma, torna a
abri-las, fecha-as de todo e bate com o leque no joelho. Que o leitor se não
enfastie com tais minúcias; não há aí uma só palavra que não seja necessária.
— Aqui estão estas que me parece que hão de
agradar, disse o caixeiro voltando.
A senhora pega das novas rendas, examina-as
com vagar, quase digo com preguiça. Pega delas entre os dedos, fitando-lhes
muito os olhos; depois procura a melhor luz; depois compara-as às outras,
durante um largo prazo. O caixeiro acompanha-lhe os movimentos, ajuda-a, sem
impaciência, porque sabe que ela há de gastar muito tempo, e acabar comprando.
É freguesa da casa. Vem muitas vezes estar ali uma, duas horas, e às vezes
mais. Hoje, por exemplo, entrou às duas horas e meia; são três horas dadas, e
ela já comprou duas peças de fita; é alguma coisa, podia não ter escolhido
nada.
— Os desenhos não são feios, disse ela; mas
não haverá outros?
— Vou ver.
— Olhe, desta mesma largura.
Enquanto o caixeiro vai ver, ela passa as
outras pelos olhos, distraidamente, recomeça a abanar-se, e afinal torna a
cravar os olhos nas pedras da rua. As pedras é que não podem querer-lhe mal,
porque os olhos são lindos, e o que está escondido dentro, como dizia Salomão,
não parece menos lindo. São também claros, e movem-se por baixo de uma testa
olímpica. Para avaliar o amor daqueles olhos às pedras da rua, é preciso
considerar que o raio visual é muita vez atravessado por outros corpos, calças
masculinas, vestidos femininos, um ou outro carro, mas é raro que os olhos se
desviem mais de alguns segundos. Às vezes olham tão de dentro que nem mesmo
isso; nenhum corpo lhes interrompe a vista. Ou de cansados, ou por outro
motivo, fecham-se agora, lentamente, lentamente, não para dormir ou cochilar,
pode ser que para refletir, pode ser que para coisa nenhuma. O leque, a pouco e
pouco, vai parando, e descamba, aberto mesmo, no regaço da dona. Mas aí volta o
caixeiro, e ela torna ao exame das rendas, à comparação, ao reparo, a achar que
o tecido desta é melhor, que o desenho daquela é melhor, e que o preço daquela
outra é ainda melhor que tudo. O caixeiro, inclinado, risonho, informa,
discute, demonstra, concede, e afinal conclui o negócio; a dona leva tantos
metros de uma e tantos de outra.
Comprou; agora paga. Tira a carteirinha da
bolsa, saca um maçozinho de notas, e, vagarosamente, puxa uma, enquanto o
caixeiro faz a conta a lápis. Dá-lhe a nota, ele pega nela e nas rendas
compradas e vai ao caixa; depois traz o troco e as compras.
— Não há de querer mais nada? pergunta ele.
— Não, responde ela sorrindo.
E guarda o troco, enfia o dedo no rolozinho
das compras, disposta a sair, mas não sai, deixa-se estar sentada. Parece-lhe
que vai chover; di-lo ao caixeiro, que opina de modo contrário, e com razão,
pois o tempo está seguro. Mas pode ser que a dama dissesse aquilo, como diria
outra coisa qualquer, ou nada. A verdade é que tem o rolo enfiado no dedo, o
leque fechado na mão, o chapelinho de sol em pé, com a mão sobre o cabo,
prestes a sair, mas sem sair. Os olhos é que tornam à rua, às pedras, fixos
como uma ideia de doido. Inclinado sobre o balcão, o caixeiro diz-lhe alguma
coisa, uma ou outra palavra, para corresponder tanto ou quanto ao sorriso
maligno de um colega, que está no balcão fronteiro. É opinião deste que a dama
em questão, que não quer outra pessoa que a sirva, senão o mesmo caixeiro, anda
namorada dele. Vendo que ela está pronta para ir-se e não vai, sorri
velhacamente, mas com disfarce, olhando para as agulhas que serve a uma
freguesa. Daí as palavras do outro, acerca disto ou daquilo, palavras que a
dama não ouve, porque realmente tem os olhos parados e esquecidos.
Já falei das calças masculinas, que de quando
em quando cortam o raio visual da nossa dama. Toda a gente que sabe ler, que
conhece a alma do licenciado Garcia, compreendeu que eu não apontei uma tal
circunstância para ter o vão gosto de dizer que andam calças na rua, mas por um
motivo mais alto e recôndito; para acompanhar de longe a entrada de um homem na
loja. Puro efeito de arte; cálculo e combinação de gestos. São assim as obras
meditadas; são assim os longos frutos de longa gestação. Podia fazer entrar
este homem sem nenhum preparo anterior, fazê-lo entrar assim mesmo, de chapéu
na mão, e cumprimentar a dama, que lhe pergunta como está, chamando-lhe doutor;
mas eu pergunto se não é melhor que o leitor, ainda sem o saber, esteja
advertido de uma tal entrada. Não há duas respostas.
Se ela lhe chamou doutor, ele chamou-lhe D.
Clara, falaram dez minutos, se tanto, até que ela dispôs-se definitivamente a
sair; ao menos, disse-o ao recém-chegado. Este era um homem de trinta e dois a
trinta e quatro anos, não feio, antes simpático que bonito, feições acentuadas
do Norte, estatura mediana, e um grande ar de seriedade. A vontade que ele
tinha era de ficar ali com ela, ainda uma meia hora, ou acompanhá-la à casa. A
prova está no ar comovido com que lhe fala, dependente, suplicante quase; os
modos dela é que não animam nada. Sorriu uma ou duas vezes, para ele, mas um
sorriso sem significação, ou com esta significação: — “sei o que queres;
continua a andar”.
— Bem, disse ele; se me dá licença...
— Pois não. Até quando?
— Não vai hoje ao Matias?
— Vou... Até lá.
— Até lá.
Saiu ele, e foi esperar pouco adiante, não
para acompanhá-la, mas para vê-la sair, para gozá-la com os olhos, vê-la andar,
pisar de um modo régio e tranquilo. Esperou cinco minutos, depois dez, depois
vinte; aos vinte e um minutos é que ela saiu da loja. Tão agitado estava ele que
não pôde saborear nada; não pôde admirar de longe a figura, realmente senhoril,
da nossa dama. Ao contrário, parece que até lhe fazia mal. Mordeu o beiço, por
baixo do bigode, e caminhou para o outro lado, resolvendo não ir ao Matias,
resolvendo depois o contrário, desejoso de tirar aquela mulher de diante de si
e não querendo senão fixá-la diante de si por toda a eternidade. Parece
enigmático, e não há nada mais límpido.
Clara foi dali para a Rua do Lavradio. Morava
com a mãe. Eram cinco horas dadas, e D. Antônia não gostava de jantar tarde;
mas já devia esperar isto mesmo, pensava ela: a filha só voltava cedo quando
ela a acompanhava; em saindo só, ficava horas e horas.
— Anda, anda, é tarde, disse-lhe a mãe.
Clara foi despir-se. Não se despiu às pressas,
para condescender com a mãe, ou fazer-se perdoar a demora; mas, vagarosamente.
No fim reclinou-se no sofá com os olhos no ar.
— Nhanhã não vai jantar? perguntou-lhe uma
negrinha de quinze anos, que a acompanhara ao quarto.
Não respondeu; posso mesmo dizer que não
ouviu. Tinha os olhos, não já no ar, como há pouco, mas numa das flores do
papel que forrava o quarto; pela primeira vez reparou que as flores eram
margaridas. E passou os olhos de uma a outra, para verificar se a estrutura era
a mesma, e achou que era a mesma. Não é esquisito? Margaridas pintadas em
papel. Ao mesmo tempo que reparava nas pinturas, ia-se sentindo bem,
espreguiçando-se moralmente, e mergulhando na atonia do espírito. De maneira
que a negrinha falou-lhe uma e duas vezes, sem que ela ouvisse coisa nenhuma;
foi preciso chamá-la terceira vez, alteando a voz:
— Nhanhã!
— Que é?
— Sinhá velha está esperando para jantar.
Desta vez, levantou-se e foi jantar. D.
Antônia contou-lhe as novidades de casa; Clara referiu-lhe algumas reminiscências
da rua. A mais importante foi o encontro do Dr. Severiano. Era assim que se
chamava o homem que vimos na loja da Rua da Quitanda.
— É verdade, disse a mãe, temos de ir à casa
do Matias.
— Que maçada! suspirou Clara.
— Também você tudo lhe maça! exclamou D.
Antônia. Pois que mal há em passar uma noite agradável, entre meia dúzia de
pessoas? Antes de meia-noite está tudo acabado.
Este Matias era um dos autores da situação em
que o Severiano se acha. O ministro da Justiça era o outro. Severiano viera do
norte entender-se com o governo, acerca de uma remoção: era juiz de direito na
Paraíba. Para se lhe dar a comarca que ele pediu, tornava-se necessário fazer
outra troca, e o ministro disse-lhe que esperasse. Esperou, visitou algumas
vezes o Matias, seu comprovinciano e advogado. Foi ali que uma noite encontrou
a nossa Clara, e ficou um tanto namorado dela. Não era ainda paixão; por isso
falou ao amigo com alguma liberdade, confessou-lhe que a achava bonita,
chegaram a empregar entre eles algumas galhofas maduras e inocentes; mas
afinal, perguntou-lhe o Matias:
— Agora falando sério, você por que é que não
casa com ela?
— Casar?
— Sim, são viúvos, podem consolar-se um ao
outro. Você está com trinta e quatro, não?
— Feitos.
— Ela tem vinte e oito; estão mesmo
ajustadinhos. Valeu?
— Não valeu.
Matias abanou a cabeça: — Pois, meu amigo, lá
namoro de passagem é que você não pilha; é uma senhora muito séria. Mas, que
diabo! Você com certeza casa outra vez; se há de cair em alguma que não mereça
nada, não é melhor esta que eu lhe afianço?
Severiano repeliu a proposta, mas concordou
que a dama era bonita. Viúva de quem? Matias explicou-lhe que era viúva de um
advogado, e tinha alguma coisa de seu; uma renda de seis contos. Não era muito,
mas com os vencimentos de magistrado, numa boa comarca, dava para pôr o céu na
terra, e só um insensato desprezaria uma tal pepineira.
— Cá por mim, lavo as mãos, concluiu ele.
— Podes limpá-las à parede, replicou
Severiano rindo.
Má resposta; digo má por inútil. Matias era
serviçal até ao enfado. De si para si entendeu que devia casá-los, ainda que
fosse tão difícil como casar o Grão-Turco e a república de Veneza; e uma vez
que o entendia assim, jurou cumpri-lo. Multiplicou as reuniões íntimas,
fazia-os conversar muitas vezes, a sós, arranjou que ela lhe oferecesse a casa,
e o convidasse também para as reuniões que dava às vezes; fez obra de paciência
e tenacidade. Severiano resistiu, mas resistiu pouco; estava ferido, e caiu.
Clara, porém, é que não lhe dava menor animação, a tal ponto que se o ministro
da Justiça o despachasse, Severiano fugiria logo, sem pensar mais em nada; é o
que ele dizia a si mesmo, sinceramente, mas dada a diferença que vai do vivo ao
pintado, podemos crer que fugiria lentamente, e pode ser até que se deixasse
ficar. A verdade é que ele começou a não perseguir o ministro, dando como razão
que era melhor não exaurir-lhe a boa vontade; importunações estragam tudo. E
voltou-se para Clara, que continuou a não o tratar mal, sem todavia passar da estrita
polidez. Às vezes parecia-lhe ver nos modos dela um tal ou qual
constrangimento, como de pessoa que apenas suporta a outra. Ódio não era; ódio,
por quê? Mas ninguém obsta uma antipatia, e as melhores pessoas do mundo podem
não ser arrastadas uma para a outra. As maneiras dela na loja vieram
confirmar-lhe a suspeita; tão seca! tão fria!
— Não há dúvida, pensava ele; detesta-me; mas
que lhe fiz eu?
Entre ir e não ir à casa do Matias, Severiano
adotou um meio-termo: era ir tarde, muito tarde. A razão secreta é tão pueril
que não me animo a escrevê-la; mas o amor absolve tudo. A secreta razão era
dissimular quaisquer impaciências namoradas, mostrar que não fazia caso dela, e
ver se assim... Compreenderam, não? Era a aplicação daquele pensamento, que não
sei agora, se é oriental ou ocidental, em que se compara a mulher à sombra:
segue-se a sombra, ela foge; foge-se, ela segue. Criancices de amor — ou para
escrever francamente o pleonasmo: criancices de criança. Sabe Deus se lhe
custou esperar! Mas esperou, lendo, andando, mordendo o bigode, olhando para o
chão, chegando o relógio ao ouvido para ver se estava parado. Afinal foi; eram
dez horas, quando entrou na sala.
— Tão tarde! disse-lhe o Matias. Esta senhora
já tinha notado a sua falta.
Severiano cumprimentou friamente, mas a
viúva, que olhava para ele de um modo oblíquo, conheceu que era afetação.
Parece que sorriu, mas foi para dentro; em todo o caso, pediu-lhe que se
sentasse ao pé dela; queria consultá-lo sobre uma coisa, uma teima que tivera
na véspera com a mulher do chefe de polícia. Severiano sentou-se trêmulo.
Não nos importa a matéria da consulta; era um
pretexto para conversação. Severiano demorou o mais que pôde a solução pedida,
e quando lhe deu, ela pensava tão pouco em ouvi-la que não sabia já de que se tratava.
Olhava então para o espelho ou para as cortinas; creio que era para as
cortinas.
Matias, que os espreitara de longe, veio ter
com eles, sentou-se e declarou que trazia uma denúncia na ponta da língua.
— Diga, diga, insistiu ela.
— Digo? perguntou ele ao outro.
Severiano enfiou, e não respondeu logo, mas,
teimando o amigo, respondeu que sim. Aqui peço perdão da frivolidade e da
impertinência do Matias; não hei de inventar um homem grave e hábil só para
evitar uma certa impressão às leitoras. Tal era ele, tal o dou. A denúncia que
ele trazia era a da partida próxima do Severiano, mentira pura, com o único fim
de provocar da parte de D. Clara uma palavra amiga, um pedido, uma esperança. A
verdade é que D. Clara sentiu-se penalizada. Quê? ia-se embora? e para não
voltar mais?
— Afinal serei obrigado a isso mesmo, disse
Severiano: não posso ficar toda a vida aqui. Já estou há muito, a licença
acaba.
— Vê? disse Matias voltando-se para a viúva.
Clara sorriu, mas não disse nada. Entretanto,
o juiz de direito, entusiasmado, confessou que não iria sem grandes saudades da
Corte. Levarei as melhores recordações da minha vida, concluiu.
O resto da noite foi agradável. Severiano
saiu de lá com as esperanças remoçadas. Era evidente que a viúva chegaria a
aceitá-lo, pensava ele consigo; e a primitiva ideia do ódio era simplesmente
insensata. Por que é que lhe teria ódio? Podia ser antipatia, quando muito; mas
nem era antipatia. A prova era a maneira por que o tratou, parecendo-lhe mesmo
que, à saída, um aperto de mão mais forte... Não jurava, mas parecia-lhe...
Este período durou pouco mais de uma semana.
O primeiro encontro seguinte foi em casa dela, onde a visitou. Clara recebeu-o
sem alvoroço, ouviu-lhe dizer algumas coisas sem lhe prestar grande atenção;
mas, como no fim confessou que lhe doía a cabeça, Severiano agarrou-se a esta
razão para explicar uns modos que traziam ares de desdém. O segundo encontro
foi no teatro.
— Que tal acha a peça? perguntou ela logo que
ele entrou no camarote.
— Acho-a bonita.
— Justamente, disse a mãe. Clara é que está
aborrecida.
— Sim?
— Cismas de mamãe. Mas então parece-lhe que a
peça é bonita?
— Não me parece feia.
— Por quê?
Severiano sorriu, depois procurou dar algumas
das razões que o levavam a achar a peça bonita. Enquanto ele falava ela olhava
para ele abanando-se, depois os olhos amorteceram-se-lhe um pouco, finalmente
ela encostou o leque aberto à boca, para bocejar. Foi, ao menos, o que ele
pensou, e podem imaginar se o pensou alegremente. A mãe aprovava tudo, porque
gostava do espetáculo, e tanto mais era sincera, quanto que não queria vir ao
teatro; mas a filha é que teimou até o ponto de a obrigar a ceder. Cedeu, veio,
gostou da peça, e a filha é que ficou aborrecida, e ansiosa de ir embora. Tudo
isso disse ela rindo ao juiz de direito; Clara mal protestava, olhava para a
sala, abanava-se, tapava a boca, e como que pedia a Deus que, quando menos, a
não destruir o universo, lhe levasse aquele homem para fora do camarote.
Severiano percebeu que era demais e saiu.
Durante os primeiros minutos, não soube ele o
que pensasse; mas, afinal, recapitulou a conversa, considerou os modos da
viúva, e concluiu que havia algum namorado.
— Não há que ver, é isto mesmo, disse ele
consigo; quis vir ao teatro, contando que ele viesse; não o achando, está
aborrecida. Não é outra coisa.
Era a segunda explicação das maneiras da
viúva. A primeira, ódio ou aversão natural, foi abandonada por inverossímil;
restava um namoro, que não só era verossímil, mas tinha tudo por si. Severiano
entendeu desde logo que o único procedimento correto era deixar o campo, e
assim fez. Para escapar às exortações de Matias, não lhe diria nada, e passou a
visitá-lo poucas vezes. Assim se passaram cinco ou seis semanas. Um dia, viu Clara
na rua, cumprimentou-a, ela falou-lhe friamente, e foi andando. Viu-a ainda
duas vezes, uma na mesma loja da Rua da Quitanda, outra à porta de um dentista.
Nenhuma alteração para melhor; tudo estava acabado.
Entretanto, apareceu o despacho do Severiano,
a remoção de comarca. Ele preparou-se para seguir viagem, com grande espanto do
amigo Matias, que imaginava o namoro a caminho, e cria que eles haviam chegado
ao período da discrição. Quando soube que não era assim, caiu das nuvens.
Severiano disse-lhe que era negócio acabado; Clara tinha alguma aventura.
— Não creio, reflexionou Matias; é uma
senhora severa.
— Pois será uma aventura severa, concordou o
juiz de direito; em todo caso, nada tenho com isto, e vou-me embora.
Matias refutou a opinião, e acabou dizendo
que uma vez que ele recusava, não faria mais nada — exceto uma coisa única.
Essa coisa, que ele não disse o que era, foi nada menos que ir diretamente à
viúva e falar-lhe da paixão do amigo. Clara sabia que era amada, mas estava
longe de imaginar a paixão que o Matias lhe pintou, e a primeira impressão foi
de aborrecimento.
— Que quer que lhe faça? perguntou ela.
— Peço-lhe que reflita e veja se um homem tão
distinto não é um marido talhado no céu. Eu não conheço outro tão digno...
— Não tenho vontade de casar.
— Se me jura que não casa, retiro-me; mas se
tiver de casar um dia, por que não aproveita esta ocasião?
— Grande amigo é o senhor do seu amigo.
— E por que não seu?
Clara sorriu, e apoiando os cotovelos nos
braços da poltrona, começou a brincar com os dedos. A teima começava a
impacientá-la. Era capaz de ceder, só para não ouvir falar mais nisto. Afinal
agarrou-se à impossibilidade material; ele vai para uma comarca interior, ela
nunca sairia do Rio de Janeiro.
— Tal é a dúvida? perguntou o Matias.
— Parece-lhe pouco?
— De maneira que, se ele aqui ficasse, a
senhora casava?
— Casava, respondeu Clara olhando
distraidamente para os pingentes do lustre.
Distração do diabo! Foi o que a perdeu,
porque o Matias fez daquela resposta um protocolo. A questão era alcançar que o
Severiano ficasse, e não gastou dez minutos nessa outra empresa. Clara,
apanhada no laço, fez boa cara, e aceitou o noivo sorrindo. Tratou-o mesmo com
tais agrados que ele pensou nas palavras do amigo; acreditou que, em
substância, era grandemente amado, e que ela não fizera mais do que ceder aos
poucos.
Mas essa terceira razão era tão contrária à
realidade como as outras duas; — nem ela o amava, nem lhe tinha ódio, nem amava
a outro. A verdade única e verdadeira é que ela era um modelo acabado de
inércia moral; e, casou para acabar com a importunação do Matias. Casaria com o
diabo, se fosse necessário. Severiano reconheceu isso mesmo com o tempo. Uma
vez casada, Clara ficou sendo o que sempre fora, capaz de gastar duas horas
numa loja, quatro num canapé, vinte numa cama com o pensamento em coisa
nenhuma.
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