Três gênios da secretaria
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O meu amigo Augusto Machado, de
quem acabo de publicar uma pequena brochura aliteratada — Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá — mandou-me algumas notas
herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi oficial da Secretaria
dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para a
meditação dos leitores:
“Estas minhas memórias, que há
dias tento começar, são deveras difíceis de executar, pois se imaginarem que a
minha secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notável, bem
avaliarão em que apuros me encontro para dar volume às minhas recordações de
velho funcionário. Entretanto, sem recorrer à dificuldade, mas ladeando-a,
irei, sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a ordem das
coisas e fatos, narrando o que me acudir de importante, à proporção de
escrevê-las. Ponho-me à obra.
Logo no primeiro dia em que
funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado
público. Foi a reflexão que fiz, ao me julgar tão em mim, quando, após a posse
e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me
determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu
tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito
já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para
ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo
cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação.
Com familiaridade e convicção,
manuseava os livros — grandes montões de papel espesso e capas de couro, que
estavam destinados a durar tanto quanto as pirâmides do Egito. Eu sentia muito
menos aquele registro de decretos e portarias e eles pareciam olhar-me
respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das minhas mãos e a doce violência
da minha escrita.
Puseram-me também a copiar
ofícios, e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me
gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das coisas
governamentais.
Mas, como dizia, todos nós
nascemos para funcionário público. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem
desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia;
aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida
medíocre — tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos.
Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie
de esforço a mais para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem
colisões nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos
decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias
feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da
nossa República. De resto, tudo nele é sossego
e quietude. O corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem
efervescências nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas.
Pensei até em casar, não só para
ter uns bate-bocas com a mulher, mas, também, para ficar mais burro, ter
preocupações de ‘pistolões’, para ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não
digo a ente humano, mas ao discreto papel, posso confessar por quê. Casar-me no
meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instrução e
cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me
cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências da esposa. Não
queria uma nem outra coisa. Houve uma ocasião em que tentei solver a
dificuldade, casando-me, ou coisa que o valha, abaixo da minha situação. É a
tal história da criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu
cavalheirismo que me impediram.
Não podia, nem devia ocultar a
ninguém e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era mãe dos meus
filhos. Eu ia citar santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a
minha narração...
Quando de manhã, novo ou velho no
emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há novidade de espécie
alguma e, já da pena, escreve devagarinho: ‘Tenho a honra’ etc. etc.; ou,
republicanamente, ‘Declaro-vos, para os fins convenientes’ etc. etc. Se há
mudança, é pequena e o começo é já bem sabido: ‘Tenho em vistas’... — ou ‘Na
forma do disposto’...
Às vezes o papel oficial fica
semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os mais difíceis,
nos quais o Dr. Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.
O Dr. Xisto já é conhecido dos
senhores, mas não é dos gênios da Secretaria dos Cultos. Xisto é estilo antigo.
Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua
pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela
honestidade que põe em todos os atos de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à
hora regulamentar e entra à hora regulamentar; não bajula, nem recebe
gratificações.
Os dois outros, porém, são mais
modernizados. Um é ‘charadista’, o homem que o diretor consulta, que dá as
informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os
amanuenses. Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a
confiança de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu três passos na
hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é má
pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só
amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata
de promoções. Há casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa
inferência burocrática, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e
aos enigmas pitorescos pôs-lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma
necessidade de impor aos outros adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia,
para tratar do ‘auxiliar de gabinete’. É este a figura mais curiosa do
funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer coisa; pode ser mesmo
engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da
Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer coisa; mas não veio
estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo
da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em
mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.
Instalado no Rio, com fumaças de
estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher,
mas para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer coisa,
solidamente. Quem como ele faz de sua vida tão somente caminho para o
cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que
veem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da espécie.
Na Secretaria dos Cultos, o seu
típico e célebre ‘auxiliar de gabinete’, arranjou o sogro dos seus sonhos, num
antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades,
sacristães, irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros,
fornecedores e mais pessoal eclesiástico.
O sogro ideal, o antigo
professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do
estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer
estabelecimento leigo.
Tinha ele uma filha a casar e o
‘auxiliar de gabinete’ logo viu no seu casamento com ela o mais fácil caminho
para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.
Houve exame na Secretaria dos
Cultos, e o ‘sogro’, sem escrúpulo algum, fez-se nomear examinador do concurso
para o provimento do lugar e meter nele ‘o noivo’.
Que se havia de fazer? O rapaz
precisava.
O rapaz foi posto em primeiro
lugar, nomeado, e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de
‘auxiliar de gabinete’ do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando
foi, pro forma, se despedir do novo
ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro
bateu na testa e gritou:
— Quem é aí o doutor Mata-Borrão?
O homenzinho voltou-se e
respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos:
— Sou eu, excelência.
— O senhor fica. O seu ‘sogro’ já
me disse que o senhor precisa muito.
É ele assim, no gabinete, entre
os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é e
uma prosápia de Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina.
A todos em que ele vê um
concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo, joga, abandona a mulher,
não sabe escrever ‘comissão’ etc. Adquiriu títulos literários, publicando a Relação dos padroeiros das principais
cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, não se esquece de dizer:
‘Como Rui Barbosa, o Chico’ ou ‘Como Machado de Assis, meu marido só bebe
água’.
Gênio doméstico e burocrático,
Mata-Borrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem
no inferno. A vida não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma
coisa e quem a enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu
império; mas a burocracia quer desses amorfos, pois ela é das criações sociais
aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligência, e os influxos
naturais e físicos ao indivíduo. É um expressivo documento de seleção inversa
que caracteriza toda a nossa sociedade burguesa, permitindo no seu campo
especial, com a anulação dos melhores da inteligência, de saber, de caráter e
criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão por aí.
Pela cópia, conforme.”
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