Tempo de crise
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa, assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.
Quando desembarquei estava o C. à minha
espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:
— Caiu o ministério!
Tu sabes que eu tinha razões para não gostar
do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a
causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os
seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o
que me trazia cá. Perguntei ao C. quem eram os novos ministros.
— Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se
os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias.
Queres comer?
— Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel
da Europa, se houver lugar.
— Há de haver.
Seguimos para o Hotel da Europa que é na Rua
do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.
À porta perguntei-lhe eu:
— Onde saberemos notícias?
— Aqui mesmo na Rua do Ouvidor.
— Pois então na Rua do Ouvidor é quê?
— Sim; a Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro
para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou
do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí
comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.
Ouvi silenciosamente as explicações do C. e
segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito
fumando, e conversando com o caixeiro.
— A que horas esteve ela aqui? perguntava o
sujeito.
— Às dez.
Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito
calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador,
batendo com a bengala na ponta do botim.
— Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu
baixinho ao C.
— Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é
algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.
— Qual! disse eu.
— Por quê?
— Os jardins de Citera são francos; ninguém
espreita as rosas por fora...
— Provinciano! disse o C. com um daqueles
sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa
honra para o jardineiro... Anda sentar-te.
— Não; fiquemos um pouco à porta; quero
conhecer esta rua de que tanto se fala.
— Com razão, respondeu o C. Dizem de
Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que
não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A
certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua
do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra
com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que
exprime todos os sentimentos e todas as ideias...
— Continua, meu Virgílio.
— Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a
elegância fluminense. Aqui acharás a flor da sociedade, — as senhoras que vêm
escolher joias ao Valais ou sedas a Notre
Dame, — os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de
mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, as
evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual
com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês
aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros
negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Comércio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma
Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um
galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou
menos elegante? Não; o operário para aqui também para ter o prazer de
contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza, —
porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, — é que a simples
vista consola.
Saiu-me o C. tamanho filósofo que me
espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um
provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um
cicerone inteligente.
O sujeito que estava dentro chegou à porta,
demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.
— Cansou de esperar, disse eu.
— Sentemo-nos.
Sentamo-nos.
— Fala-se então de tudo aqui?
— De tudo.
— Bem e mal?
— Como na vida. É a sociedade humana em ponto
pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...
Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao
C. a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.
— Não te iludas, disse ele, a melhor lição
deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista;
encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a
experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos
vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...
Estas últimas palavras revelaram no C. um
desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor de morte e do sangue. Eu que
vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de
nosso Padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta,
acompanhada de muitas lembranças minhas.
— Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone,
vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por
enquanto nada sabemos, e...
— Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber
alguma coisa.
O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um
homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos
apresentados um ao outro. O C. perguntou-lhe o que sabia da crise.
— Nada, respondeu misteriosamente o Dr.
Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...
— Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que
havia crise formal, disse o C.
— É possível, disse o outro. Saí agora mesmo
de casa, e vim logo para aqui... Houve Câmara?
— Não.
— Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à
Câmara...
— Para quê? Aqui mesmo saberemos.
O Dr. Abreu tirou um charuto de uma
charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem
está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.
Soube depois que era um meio inventado por
ele para não oferecer charutos aos circunstantes.
— Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C.
passando algum tempo.
— Parece-me que os homens caem. Nem podia
deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.
— Mas por quê? perguntei eu.
— Por várias coisas; e a principal é
justamente a presidência da sua província...
— Ah!
— O Ministro do Império quer o Valadares, e o
da fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do
Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?
— Ora, vivam! Então já sabem da crise?
Esta pergunta era feita por um sujeito que
entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta
noticiosa.
— Crise formal? perguntamos todos.
— Completa. Os homens brigaram ontem de
noite; e foram hoje de manhã a São Cristóvão...
— É o que dizia, observou o Dr. Abreu.
— Qual o verdadeiro motivo da crise?
perguntou o C.
— O verdadeiro motivo foi uma questão da
guerra.
— Não creia nisso!
O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de
tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:
— Sabe então o verdadeiro motivo mais do que
eu que estive com o cunhado do Ministro da Guerra?
A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu
limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...
— Seja qual for o motivo, disse o C., a
verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?
— Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o
nome do recém-chegado).
— Quem sabe?
Ferreira tomou a palavra:
— A crise era prevista; eu há mais de quinze
dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar
iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem a
Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e
até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para
apresentar uma moção de desconfiança...
Ferreira disse estas palavras em voz baixa,
com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um
carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.
— Mas então não estão todos em São Cristóvão?
observou o C.
— Este vai naturalmente para lá.
Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a
pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na
crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira
saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa
ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia
relativamente à crise ministerial.
Afirmamos que sim.
— Qual seria a causa? perguntou ele.
O Abreu, que dera antes como causa a
presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da
guerra produzira o desacordo entre os ministros.
— Está certo disso? perguntou o
desembargador.
— Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado
do Ministro da Guerra.
Nunca vi maior facilidade em mudar de
opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois
o C. que me respondeu:
— Não te espantes; em tempo de crise é sempre
bom mostrar que se anda bem informado.
Dos presentes eram quase todos
oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do
cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de César. Alguns
defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor
nem excessiva paixão.
Cada personagem novo trazia uma confirmação
ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e
politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De
quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e
só se colhia a mesma coisa.
Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na
altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência
política.
— Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas,
disse o C.
Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.
A influência política não pôde passar de
outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.
— Venha cá; você que lambe os vidros por
dentro há de saber o que há?
— O que há?
— Sim.
— Há crise.
— Bem; mas os homens saem ou ficam?
Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu
o laço da gravata, e murmurou um: não sei;
assaz parecido com um: sei demais.
Olhei atentamente para aquele homem que
parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os
ocultava de nós.
— Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o
desembargador.
— Eu já disse a vossa excelência o que há,
interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe
lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...
Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi
cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.
— Sabem que há crise; a causa é muito
secundária, mas a situação não podia prolongar-se.
— Qual é a causa?
— A nomeação de um juiz de direito.
— Só!
— Só.
— Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era
negócio pendente há muitas semanas.
— Foi isso. Os homens lá foram ao paço.
— Será aceita a demissão? perguntei eu.
Mendonça abaixou a voz.
— Creio que é.
Depois apertou a mão ao desembargador, ao C.
e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar
o Estado.
— Pois, senhores, eu creio que esta versão é
a verdadeira. O Mendonça anda informado.
Passa defronte um sujeito.
— Anda cá, Lima, gritou Abreu.
O Lima aproximou-se.
— Estás convidado para o ministério?
— Estou; você quer alguma pasta?
Não penses que este Lima era alguma coisa; o
dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.
A única preocupação do Lima eram umas senhoras
que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, — a família do indigitado
presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C. e o
Lima, e seguiram viagem.
— São lindas estas moças, disse um dos
circunstantes.
— Eu era capaz de as nomear para o
ministério.
— Sendo eu presidente do conselho.
— Também eu.
— A mais gorda devia ser Ministro da Marinha.
— Por quê?
— Porque parece mesmo uma fragata.
Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o
desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.
— Quem será? Algum ministro?
— Vejamos.
— Não; é a A...
— Como vai bonita!
— Pudera!
— Ela já tem carro?
— Há muito tempo.
— Olhem, ali vem o Mendonça.
— Vem com outro. Quem é?
— É um deputado.
Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça
não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.
Houve outra trégua na conversa política. E
não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre
crise política com as sedas de uma dama do tom.
Finalmente surgiu de longe o já citado
Ferreira.
— Que há? perguntamos quando ele chegou.
— Foi aceita a demissão.
— Quem é o chamado?
— Não se sabe.
— Por quê?
— Dizem que os homens ficam com as pastas até
segunda-feira.
Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e
foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.
— Mas donde sabe isso? disse o desembargador.
— Soube na Câmara.
— Não me parece natural.
— Por quê?
— Que força moral deve ter um ministério já
demitido e ocupando as pastas?
— Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi
ao primo do Ministro da Fazenda.
Ferreira tinha a particularidade de andar
informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.
— Quem será chamado?
— Naturalmente o N.
— Ou o P.
— Já hoje de manhã se dizia que era o K.
Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma
cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as
luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.
— Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado?
perguntou o desembargador.
— O B.
— Com certeza?
— É o que se diz.
— Eu ouvi que só na segunda-feira se
organizará ministério novo.
— Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o
B. foi ao paço.
— Viu-o?
— Não, mas disseram-mo.
— Pois acredite que até segunda-feira...
A conversa ia-me interessando; eu já tinha
esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender
simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um
ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.
Cada qual expôs a sua conjetura; vários nomes
foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se
apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:
— Está enganado; pode o F. ficar com a pasta
da Justiça, o M. com a da Guerra, K. Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X.
Império, e C. Estrangeiros.
— Não é possível; o V. é que deve ficar com a
pasta de Estrangeiros.
— Mas o V. não pode entrar nessa combinação.
— Por quê?
— É inimigo do F.
— Sim; mas a deputação da Bahia?
Aqui coçava o outro a orelha.
— A deputação da Bahia, respondia ele, pode
ficar bem metendo o N.
— O N. não aceita.
— Por quê?
— Não quer ministério de transição.
— Chama a isto ministério de transição?
— Pois que é mais?
Este diálogo em que todos tomavam parte,
inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava
uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.
Desta vez íamos ter notícias frescas.
Efetivamente soubemos pelo deputado que o V.
tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.
— Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de
ver outra coisa. A situação é do V.; o seu último discurso foi o que os
franceses chamam discurso-ministro.
Quem são os outros?
— Por ora, disse o deputado, só há dois
ministros na lista: o da Justiça e o do Império.
— Quem são?
— Não sei, respondeu o deputado.
Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas
era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros
por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.
Houve um pequeno silêncio. Conjeturei que
cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os
descobriu, não os nomeou.
O Abreu dirigiu-se ao deputado.
— vossa excelência acredita que o ministério
fique organizado hoje?
— Creio que sim; mas daí pode ser que não...
— A situação não é boa, observou Ferreira.
— Admira-me que vossa excelência não seja
convidado...
Estas palavras, naquela ocasião
inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política como trata
as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de
semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:
— Pois não me admira nada disso; deixo o
lugar aos componentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.
— Perdão, é muito digno!
Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso.
Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:
— Podes dar-me uma palavra?
— Que é? perguntou o deputado levantando-se.
— Vem cá.
Foram até à porta, depois despediram-se de
nós e seguiram apressadamente para cima.
— Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.
— Acredita? perguntei eu.
— Sem dúvida.
Mendonça foi da mesma opinião; e foi a
primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.
Eram duas horas da tarde quando saíram os
dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua
vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia.
Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Um
desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os
nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.
Às três horas já corriam versões de todo o
gabinete, mas era tudo vago.
Determinamos não voltar para casa sem saber
do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois
era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.
— Mas qual será o meio de saber? perguntei
eu.
— Eu vou ver se colho alguma coisa, disse
Ferreira.
Vários incidentes nos iam detendo a marcha:
algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma joia nova em uma
vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.
Nada se soube nessa tarde.
Voltei para o Hotel da Europa a fim de
descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia,
dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos
voltar à Rua do Ouvidor.
— Não era melhor irmos à casa do V., pois que
é ele o organizador do gabinete? perguntei.
— Principalmente, não temos tamanho interesse
que justifique esse passo, respondeu o C.; depois, é natural que ele não nos
possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o
gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.
A Rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão
os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está
iluminado, não imaginas o efeito que faz.
Confesso que me esqueceu o ministério e a
crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do Ouvidor
pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que
os frequentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como
certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os
ministros todos.
Encontramos os mesmos amigos da manhã.
Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha
a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.
— Que há?
— Está organizado.
— Mas quem são?
O desembargador tirou do bolso uma lista.
— São estes.
Lemos os nomes à luz do lampião de um
mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o
Lima, fraco.
— Mas isto é certo? perguntei eu.
— Deram-me agora esta lista; creio que é
autêntica.
— O que é? perguntou por trás de mim uma voz.
Era um sujeito moreno e bigode grisalho.
— Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.
— Tenho uma lista.
— Vejamos se combina com esta.
Costearam-se as listas; havia engano num nome.
Mais adiante encontramos outro grupo lendo
outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista
copiavam uma deles, deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os
todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com
ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da
noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da Rua do Ouvidor, qual era o
gabinete.
O Mendonça ficou alegre com o resultado da
crise.
Perguntaram-lhe por que razão.
— Tenho dois compadres no ministério!
respondeu ele.
Aqui tens o quadro infiel de uma crise
ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os
diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise.
Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...